Empresas empurradas para o salto digital

Portas fechadas, feiras canceladas, negócios suspensos. E todas as plataformas em movimento. Videochamadas, visitas virtuais, redes sociais, tecnologia com o olho no futuro. Há empresas que veem oportunidades nas dificuldades e aceleram. A distância já não se mede em quilómetros, mede-se em segundos.

A pandemia, um rol de restrições, um soco duro e seco da realidade. O Ginásio K Gym na pequena vila de Caranguejeira, Leiria, fechou a 14 de março de 2020. Felisbela Barbosa, proprietária do espaço, psicóloga social com formação em gestão do desporto, sentiu-se num trapézio sem rede. “Vamos aos livros de História e vemos o início, o meio e o fim das guerras. Não podíamos fazer isso. A economia estava em crescimento e, de repente, entrámos no desconhecido.” Percebeu que não reabriria em 15 dias e recusou atirar a toalha ao chão. Jorge Barbosa, o marido, professor de Música, mostrou-lhe como dar a volta e o filho ensinou-lhe a mexer no Instagram.

Foi uma roda-viva. Encheram a carrinha com bicicletas, steps, trampolins, bolas, pesos, barras, tudo o que podia sair do ginásio, para distribuir pelos clientes que não tinham materiais em casa. Compraram câmaras para aulas, ecrãs para ver toda a gente, placas de som, cabos, muitos cabos. O ginásio voltou ao ativo com aulas online, sessões interativas, vídeos, open day, show cooking ao vivo, presença assídua nas redes sociais. No início, com problemas no som, falhas na net. Depois, tudo melhorou. “Nada profissional, é genuíno, é aquilo que somos”, refere Felisbela Barbosa. Um investimento nunca feito em 11 anos de ginásio e que teve impacto. A quebra de 40% de clientes no primeiro confinamento diminuiu para 18% no final de 2020.

O ginásio reabriu em junho de 2020 e voltou a fechar a 15 de janeiro deste ano. Não foi fácil. “Os clientes, no final de março, entraram em colapso, perguntavam por soluções, estavam baralhados, com medo. De repente, as novas tecnologias começaram a vender muita plataforma online.” Felisbela Barbosa notou que tinha concorrência. Uma aplicação fitness com plano de exercício, plano alimentar, não chegava aos oito euros por mês. Percebeu, porém, que tinha trunfos insubstituíveis, relações de confiança, gente que se conhece cara a cara, 255 clientes, sete instrutores. Apostar no online, sim, mas com identidade. “Queria uma plataforma online genuína que tivesse a nossa mão, o nosso dedo.” Nada chapa cinco. “A solução mágica não existia, tivemos de parar, não olhar tanto para a parte económica. Servimos a comunidade e as pessoas acreditam em nós.”

Jorge Barbosa, professor de Música, diretor do Instituto Jovens Músicos, deu a volta à escola que fica numa primária reabilitada da Caranguejeira, perto do ginásio da esposa. Reagiu de imediato, reuniu os 30 docentes, arrancou com aulas online logo no início do primeiro confinamento. “Foi pegar num telemóvel e começar, de forma arcaica, a testar as aulas com péssima qualidade de imagem, a nível de som nem se fala”, lembra. Testar e seguir em frente com melhor capacidade de transmissão.

Felisbela Marques, dona de um ginásio, e o marido, Jorge Barbosa, que detém uma escola de música, na vila de Caranguejeira, Leiria, investiram em tecnologia para darem aulas personalizadas online
(Foto: Nuno Brites/Global Imagens)

Distribuiu instrumentos por casas de alunos, pianos e baterias. Instalou duas câmaras para dar aulas, uma virada para si, outra apontada ao teclado do piano. Em quase 400 alunos, perdeu 140 no primeiro confinamento. Não parou, criou os concertos lá de casa com a família dos alunos, vídeos da quarentena, tudo divulgado nas redes sociais. Manteve as aulas de grupo, de coro e de orquestra, apesar das dificuldades inerentes, com todos a cantar e a tocar ao mesmo tempo. “O online é espetacular para a interação, a escola de música fica à distância de um clique.” Uma coisa é certa para o professor de Música. “Os projetos não podem parar, a escola não pode parar, é possível fazer, é possível continuar online.”

Mostrar peças e máquinas sem sair da fábrica

Não muito longe dali, em Alcobaça, a PPA – Perpétua, Pereira & Almeida, Lda., empresa de peças decorativas de cerâmica, prepara o lançamento das novas coleções num formato nunca antes experimentado. Será online com ‘lives’ no Instagram e no YouTube, no início de abril, com as designers a apresentar os frutos do seu trabalho. Além disso, ultimam-se detalhes de um vídeo 360ºº, em 3D, que dará a conhecer o showroom, de forma virtual, da firma que detém a marca S. Bernardo. Um vídeo que será enviado aos atuais e hipotéticos clientes interessados nos objetos decorativos – jarras, taças, candeeiros, pratos. O catálogo será apenas digital, não será impresso, e o site tem notícias mensais desde o ano passado.

As videoconferências são agora uma rotina da empresa que tem 60 funcionários e que, todos os anos, desenvolve cerca de 250 novos modelos e mil amostras, mais de 95% para exportação. Uma forma de manter a ligação aos clientes que, em determinadas fases, se deslocavam à empresa para acompanhar a produção.

O ano de 2019 tinha sido o melhor ano na faturação, 2,3 milhões de euros, 2020 começou bem, em fevereiro, presença numa feira em Frankfurt, uma das mais importantes do setor. E depois veio o estado de emergência, feiras canceladas. Era preciso reagir. “Não havia hipótese. Um dos primeiros trabalhos foi perceber quais as plataformas digitais que estavam no mercado, como funcionavam, e fazer parte delas”, adianta Elsa Almeida, uma das sócias da PPA. “Tudo repensado e readaptado à atual situação.”

Elsa Almeida, Fernando Perpétua e Jorge Horta, da PPA – Perpétua, Pereira & Almeida, Lda., empresa de peças decorativas de Alcobaça, fazem vídeos 360º, em 3D, para darem a conhecer virtualmente o showroom
(Foto: Nuno Brites/Global Imagens)

A empresa registou-se na plataforma da feira de Frankfurt para colocar as suas peças online. Pesquisou plataformas de venda online, contratou uma pessoa para a área de marketing e comunicação, antes tratada por uma colaboração externa, deu mais visibilidade ao Instagram, alimentou o site e a rede social de negócios LinkedIn com publicações semanais.

“Colocar a marca mais perto dos clientes foi a maneira de encurtar a distância e estar sempre em contacto, acelerámos este processo de comunicação”, sublinha Fernando Perpétua, engenheiro cerâmico e um dos sócios da empresa. “Se não o fizéssemos, estaríamos com um ano de atraso, estaríamos a ficar para trás”, acrescenta Jorge Horta, outro sócio. Em junho de 2020, a produção parou totalmente, entretanto, a empresa recuperou o fôlego. Não houve cancelamentos, apenas adiamentos de encomendas. Mesmo assim, 2020 fechou com uma quebra de 25% na faturação. “A componente digital não vai deixar de existir, 2020 foi um ano-piloto, uma experiência nova”, comenta Elsa Almeida.

Mais a norte, em Vila Nova de Famalicão, trabalha-se a todo o gás na VLB Group, metalomecânica que produz máquinas e ferramentas de produção para vários tipos de indústria, desde automóvel a mobiliário metálico, numa unidade que ocupa quase dois campos de futebol. As ferramentas digitais, os recursos online, os aparelhos tecnológicos, são espremidos com maior intensidade por causa da pandemia. O ano passado terminou bem, com mais trabalhadores, mais clientes, e mais ambição movida pelas plataformas que não têm descanso: Instagram, Facebook, LinkedIn, YouTube.

Só este mês, Luís Ribeiro, responsável de marketing e pelas relações com o mercado externo da VLB, abriu caminho para a entrada nos Estados Unidos numa videochamada com um cliente do outro lado do Atlântico, fez uma visita virtual pela fábrica em tempo real para um outro interessado americano, mostrou a uma empresa japonesa a máquina que vai produzir a peça de que precisa. Tudo sem sair de Famalicão. O site da empresa apresenta-se em português, inglês, espanhol, holandês e italiano. Agora, fruto das recentes negociações, terá um site em inglês-americano, outro em francês-canadiano, e outro em espanhol-mexicano. “Temos de nos adaptar ao vocabulário local”, explica Luís Ribeiro.

A VLB transformou, em maio de 2019, uma empresa de serviços de metalomecânica numa empresa de produção de equipamentos técnicos altamente qualificados. Luís Barros tem experiência de uma vida no ramo e idealizou num projeto ambicioso que nem a covid conseguiu curvar. “A pandemia bloqueou-nos bastante em termos de feiras e de divulgação.” Mas nunca se parou. “Fomos à guerra e saímo-nos bastante bem. Criámos um produto inovador, tecnológico, crescemos muito em 2020, um ano acima de bom, um ano excelente”, revela o mentor do projeto. Em 2019, com 30 trabalhadores, faturou 4,5 milhões de euros num semestre, terminou 2020 com 70 trabalhadores e dez milhões de faturação. Neste momento, tem 80 funcionários e espera fechar o ano com 15 milhões.

A VLB nasceu com uma mentalidade mundial. “A pandemia veio baralhar as contas, preparávamo-nos para ir a feiras, a Chicago, a Dusseldorf. Somos todo-o-terreno e já nascemos virados para a indústria 4.0. Temos uma imagem muito redonda, muito agradável, muito vendável, para captar clientes para distribuírem os nossos produtos”, realça Luís Ribeiro. Usa-se tudo o que está à mão, ao mesmo tempo, redes sociais, atualizações constantes no site, animações 3D das máquinas, visitas virtuais, demonstrações online. O cliente envia o desenho, faz-se uma simulação 3D com software avançado, uma videochamada, mostra-se a máquina a produzir a peça. Há ainda software de assistência online que assume o controlo da máquina para resolver problemas à distância. A VLB fez o trabalho de casa e enfrentou os dissabores de cabeça erguida.

“Nascemos para competir internacionalmente com as melhores marcas. Não produzimos um bem de consumo, produzimos uma máquina que custa muito dinheiro para fazer muito dinheiro”, resume Luís Ribeiro.

Procurar soluções, novos nichos de mercado

André Ferreira, sócio-gerente da Culto da Imagem, empresa de publicidade, instalada no Linhó, Sintra, sabe que uma imagem desfocada ou uma fotografia mal tirada não são bons cartões de visita. Não faria sentido uma empresa que trata da imagem não cuidar da sua. É um trabalho de projeção e os likes são o que são e são importantes. Tudo importa, o que se escreve, a forma como se comunica, imagens, vídeos. Contratou mais duas pessoas para tratar da comunicação digital, potenciar Facebook, LinkedIn, TikTok, Instagram. Todas as semanas, são feitos filmes. “Cada vez mais e cada vez melhor.”

A Culto da Imagem produz stands para feiras, eventos, festivais de verão, reclamos luminosos, lonas, trata da produção gráfica, da parte visual da comunicação, faz impressões em pequeno e grande formato, monta e desmonta, tem carpintaria e serralharia. Nunca parou de trabalhar e de projetar nas plataformas digitais o que estava a fazer. Não é coisa pouca e foi uma reviravolta. No ano passado, as 11 impressoras foram encostadas a um canto, apenas uma continuou a funcionar para imprimir a palavra “Frágil” vezes sem conta. A empresa começou a produzir viseiras, firmou um contrato com o Serviço Nacional de Saúde. Começou a produzir divisórias em acrílico, que exportou para Espanha e França, e com as sobras das viseiras, que iam para o lixo, fez fixadores e tiras para máscaras que ofereceu aos profissionais de saúde. Chegou a fazer porta-máscaras. Enquanto isso, tinha duas pessoas inteiramente dedicadas a produzir conteúdos para as redes sociais.

A Culto da Imagem, empresa de publicidade de Sintra, passou a produzir viseiras e alocou duas pessoas à produção de conteúdos para as redes sociais
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

André Ferreira reestruturou a produção com os conhecimentos em manusear o acrílico. Os 57 trabalhadores nunca estiverem parados. “Quando fechou tudo, foi um bocadinho assustador”, admite. Valeu-lhe a agilidade, o negócio com o SNS, e os 70% da produção alocada à covid-19 salvaram 2020 com um crescimento de 30% e um fecho de 4,5 milhões de euros. O investimento em nova maquinaria rondou os 600 mil euros e tudo tem o seu destino. “Fizemos coisas que nunca tínhamos feito na vida. Salvou o ano e a todos que trabalhamos aqui.”

Os ventos da pandemia também trouxeram mudanças à AMF Safety Shoes, empresa de calçado de segurança, em Guimarães. Na produção, no mercado, no mundo digital. A falta de matéria-prima parou a produção de calçado técnico de 15 de maio a 15 de junho de 2020 e a empresa apostou em dois novos produtos: máscaras sociais e socas hospitalares. Transformaram-se linhas de produção, compraram-se máquinas, redefiniram-se horários para os 140 trabalhadores. As socas hospitalares chegaram ao mercado alemão a partir de uma fotografia no Instagram e, em junho, as máscaras estavam a ser vendidas por toda a Europa.

Em novembro, a empresa, que exporta 90% da sua produção em 32 mercados, organizou uma convenção online de cinco dias sobre o setor com 40 palestrantes de 20 países e mais de duas mil pessoas registadas. Se antes da pandemia o tempo dedicado à componente digital rondava os 10%, agora anda pelos 60%, no LinkedIn, em showrooms virtuais, na realidade aumentada. O investimento no online aumentou entre 10 e 20% e, nas últimas semanas, sucedem-se recordes de vendas online e já se anda a matutar em novas soluções digitais.

Albano Fernandes e Domingos Almeida, sócios da AMF Safety Shoes, sabem bem o poder da presença online e pressentiram o que estava para vir. “Não conseguíamos marcar reuniões com os clientes, as feiras foram anuladas, várias coleções foram adiadas”, recorda Albano Fernandes. Era preciso dar ao mercado o que ele necessitava, puxar pela versatilidade, capitalizar tudo online com todas as ferramentas. As máscaras e as socas tornaram-se um novo nicho de mercado, criaram-se soluções técnicas, digitalizaram-se produtos para chegar a outros clientes, o que permitiu fechar 2020 com 15,5 milhões de euros e manter a previsão de 15% de crescimento ao ano. “Foi por esta nossa resiliência e capacidade de adaptação”, vinca Albano Fernandes.

Albano Miguel Fernandes e Domingos Almeida procuraram novos mercados para a AMF Shoes, de Guimarães, que aumentou de 10% para 60% o tempo dedicado à componente digital
(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

A AMF Shoes quer fabricar óculos de proteção, criar uma fábrica-laboratório para desenvolver software que permita fazer calçado sem costura e sem montagem. “A pandemia veio alertar para a dependência que temos de mercados externos. Estes momentos de reflexão e de adaptação são úteis e fazem-nos ficar mais fortes.” A crise da covid-19 abriu horizontes. “O conceito online é o mais eficiente e mais barato para chegar a mais pessoas e tem de ser mais trabalhado”, conclui Albano Fernandes.

A bazuca, a burocracia, o colinho

A pandemia reforçou a importância do digital, mas Portugal continua atrás da Europa. Apenas 16% das empresas nacionais têm presença nas redes sociais, abaixo dos 25% da média europeia. O país está em 19.º lugar no Índice de Digitalização da Economia e da Sociedade e em 16.º lugar na integração de tecnologias digitais nas empresas. O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a bazuca europeia, apresenta a transição digital como uma das três dimensões estruturantes. São 400 milhões de euros para a transição digital das empresas, 150 milhões para a capacitação digital do tecido empresarial, mais cem milhões para a catalisação dessa transformação da indústria.

Luís Ribeiro, da VLB, tem uma posição clara. “O dinheiro não muda mentalidades. É preciso abrir horizontes e pensar que a distância, agora, se mede em minutos e não em quilómetros.” Se a ideia é competir com os melhores, mudem-se formas de pensar, formem-se técnicos. “A transformação digital é uma transformação de mentalidades e uma transformação de mentalidades não se faz com dinheiro. O dinheiro ajuda se as pessoas souberem acompanhar os tempos.” Albano Fernandes, da AMF Safety Shoes, já leu o PRR e os planos parecem-lhe bem pensados, esperando que as regras sejam ágeis. Sem transformação digital, morre-se. “Ou és ou não existes”, frisa.

Os propósitos estão definidos. O PRR quer apoiar 30 mil pequenas e médias empresas (PME), requalificar 36 mil trabalhadores, reforçar competências digitais, modernizar modelos de negócio, desmaterializar fluxos de trabalho, criar novos canais digitais de comercialização de produtos e serviços.

Elsa Almeida, da fábrica de cerâmica, leu o PRR na diagonal e tem perfeita noção de que a digitalização e as novas tecnologias de informação são o futuro de todas as relações. O que empanca a engrenagem é um problema. “Pela nossa experiência, a burocracia é demasiado complexa para conseguirmos acesso fácil a esse tipo de apoios. Há muita burocracia, muitas entidades pelo meio, e o valor é maior para as consultoras que entram nesse processo do que para as empresas.” Jorge Horta fala dessa falta de apoios. A empresa está a criar um armazém digital de modelos e não encontrou ajudas nos programas nacionais ou comunitários. “Há uma grande dificuldade com a realidade, com o que as empresas precisam.”

A Culto da Imagem vai trabalhar projetos para a chamada bazuca, nomeadamente uma plataforma online para vender os seus produtos e planos para apostar em tecnologias verdes. “Estamos preparados e alinhados para as linhas estabelecidas”, assegura André Ferreira, que espera que se explique bem o que fazer e como fazer. “Era importante ser sincero e ajudar mesmo as pessoas.”

Felisbela Barbosa entende o poder do digital. “O ginásio está fechado, estamos todos juntos, estamos online. É uma alternativa, mas tudo o que é impessoal, perde”, repara. Faltam elementos importantes, em sua opinião. “Falta a parte social, o colinho, o desabafar, o contar alegrias e mágoas.” Seja como for, o pé das empresas continua no acelerador digital na infinita autoestrada da comunicação.