Casa grande desfeita
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
A casa é grande, eles que se distribuam, pediu a procuradora nas alegações. Mas no fim continuava a demolição, cada palavra um martelo-pilão a bater e um rombo nas paredes-mestras, um desvio nas traves. O telhado, quando cai? Um homem construiu um casarão para toda a família: os pais, os quatro filhos, casamentos, netos. O pai morreu e Georgina, a mãe, envelheceu. Um dia, a mãe e dois filhos acusaram os irmãos Luís e Clara de insultos, violência, de um empurrão grave. Uma vizinha que socorreu a velhota na rua estava arrependida de se ter aproximado deles, de ter sido amiga, de ter tentado ajudar. A casa criava ódio, cobiça.
[lembrei-me da síntese da Tereza Coelho – “Família: portas que batem, refeições que acabam mal”].
No banco dos réus estava Clara, de pescoço levantado, e Luís, olhos claríssimos quase a abrir as comportas hidráulicas.
– A mãe, começou a procuradora, disse que a filha lhe chamou intrometida, linguaruda. Em relação a essa situação não fiquei esclarecida. E disse que, em relação à Clara, estava muito magoada porque lhe deixara de falar desde Janeiro de 2020. Mas falava-lhe aos gritos… ou deixou de lhe falar? A mãe diz que a filha nunca pegou em nada para ajudar, em oito anos. Que toda a casa estava tomada com um objecto da Clara em cada quarto. Em relação à arguida Clara, não me parece que haja algum tipo de crime. Em último caso, seria só um crime de injúria. O que resulta é que não há um bom relacionamento e isso é um pressuposto para tudo correr mal.
Virou-se para Luís, o braço em arco:
– Em relação ao Luís, já penso de modo diferente. Será que ele não tentou ajudar a mãe? Ela aborreceu-se com o filho, saiu de casa e nesse percurso terá caído e magoado a anca…
De facto, fracturou o fémur e sofreu uma contusão no crânio. Mas foi um empurrão dado pelo filho, foi em casa ou na rua? E será que ele tentou ajudar a mãe? Continuou a procuradora:
– A senhora disse, em relação ao filho, que sempre que ela lhe passava na porta, lhe dizia “vai para a puta que te pariu, metes-me nojo, mete-te no carro e vai atirar-te da ponte 25 de Abril, velha de um raio, vais morrer novinha!”.
Como figura de estilo, é um paradoxo. E no estilo em si, violência.
– Há um mal viver e uma parte que ultrapassa tudo o demais. Esta senhora é atacada pelo filho que lá vive em casa. Não estou a dizer que não tem direito a viver lá. Mas a mãe tem 82 anos. Há um mínimo de respeito, entendemos nós. A casa é grande, eles que se distribuam.
Luís poderá ir preso, se mais processos houver, disse a procuradora. O advogado dos irmãos:
– A Clara nunca ofendeu a mãe. Tratou do pai e também da mãe. E os dois nunca usaram violência física. O Luís já em criança revelava alguns transtornos de personalidade. Uma descompensação, porque o seu modo natural de falar é este. É o seu modo de falar, próprio da sua natureza. Desprovido de intencionalidade. Ele tinha discutido com o irmão, saiu para o café e jornal. Quando chegou, viu a mãe na ambulância. Não houve crime, mas sim um circo para tirar estes dois senhores lá de casa. Querem uma sucessão adquirida à força! Se me permitem a expressão, fizeram a cama a estes senhores.
Palavras finais de Clara, que disse que metia baixa no emprego para poder acompanhar os tratamentos dos pais:
– Sempre fui, e considero-me, uma filha espectacular. Sei o que é ser mãe e ser avó. Fiquei magoada com a minha mãe.
Perguntaram a Luís se ainda queria falar e o homem começou a tremer dos sapatos ao cabelo, dos alicerces à chaminé, quase a ruir. Chorou como um miúdo perdido no primeiro dia de escola.
– Senhora doutora, eu só queria dizer… Fui o único filho que foi militar e fui o único que sempre tive algumas dificuldades no meu crescimento, no meu ser, e sempre fui um bocadinho o filho-enteado. Eu… eu tenho problemas emocionais que nem eu sei entender. E quando eu me enervo… sei que tenho uns nervos fora de série… Eu, se bater com o carro, eu bloqueio comigo próprio. Tenho de ter alguém que me conheça, que me acalme! Eu estou a ser sincero! Nunca, por amor de Deus, quis fazer mal à minha mãe, eu tenho é quezílias com os meus irmãos!
Uma casa onde há pão.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)