Valter Hugo Mãe

A Palestina


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O Holocausto mascara a acção, parece inibir a comunidade internacional na hora de responsabilizar Israel pelo seu fito criminoso.

O povo judeu foi sujeito ao mais insuportável horror e por isso mesmo se torna inaceitável que seja usado como escudo para que o regime do Estado de Israel leve a cabo um inacabável ataque genocida contra os palestinianos. O Holocausto, que precisamos de lembrar, estudar, impedir a todo o custo que se repita contra qualquer nação, qualquer etnia, não pode ser aquilo que legitima a acção predatória e opressiva do Estado de Israel.

O Holocausto mascara a acção, parece inibir a comunidade internacional na hora de responsabilizar Israel pelo seu fito criminoso. E é importante deixar clara a rigorosa distinção entre o regime desse Estado e o povo judeu. A crítica às opções políticas e estratégicas criminosas e prepotentes de um Estado não se pode confundir com a dignidade do povo judeu. A crítica e o combate necessário ao modo como o Estado de Israel oprime e mata o povo palestiniano não é um manifesto de anti-semitismo, é um grito humanista, um apelo urgente à salvação do empobrecido povo que se vê circunscrito num território descontínuo que o Estado de Israel ocupa, estrangula, massacra.

Não há qualquer paridade nestas posições em que um vizinho se arroga ao direito de posse e destino sobre o outro, subjugando-o até ao desespero e obrigando-o a uma reacção. Porque à esmagadora maioria dos palestinianos já adiantaria a simples liberdade, o serem deixados em suas terras, autodeterminados, plenamente capazes de edificar, comerciar, entrar e sair em segurança e paz.

Alguém escreveu que era importante dividir Jerusalém com a precisão com que é dividido o interior de uma romã. Amos Oz explicava que o problema de Jerusalém era da ordem do imobiliário. Duas culturas disputam o mesmo lugar que, por certa maldição, profetas algo opostos assinalaram. Na verdade, Cristo caminhou por ali, ali se viu morto. Já Maomé esteve apenas num sonho, o que para o Islão não difere na importância, confiscando o espaço para a sacralização suprema depois de Meca. Mas não é só o império sobre a cidade sagrada que explica a opressão do poderoso sobre o enfraquecido, é a História de milénios em que o povo judeu deambulou sem Estado, sem terra. Na verdade, Israel consuma-se como um Estado de refugiados. São refugiados que o compõem e essa consciência de que aquele lugar é a glorificação material de uma certa nação explica muito do modo violento como o regime instituído reage.

O Estado de Israel não usa apenas o Holocausto como escudo moral para sua opressão, ele alimenta-se do pânico de os judeus se verem devolvidos a uma diáspora sem mais soberania; o pânico de não haver uma soberania judaica em lugar nenhum do Mundo, questão que não pode deixar de nos merecer a todos um delicado cuidado e respeito também. Mas, alguma soberania se legitima se faz do genocídio dos outros um gesto fundamental, diria, fundacional? Ao menos enquanto os outros conseguirem sobreviver, o testemunho da ilegitimidade estará presente e à comunidade internacional só resta a decência de impedir que prossiga. Não pode prosseguir a opressão sobre a Palestina.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)