A StayAway Covid foi criada com o objetivo de ajudar os portugueses no rastreio da doença. Está no mercado há 21 dias, mas não convence todos. O dever cívico divide palco com o ceticismo e as teorias totalitárias. Estamos a ceder dados para sermos controlados? A app vai mesmo fazer a diferença na evolução da pandemia? Perguntas que poderão ser respondidas com o tempo. Para já, falam os especialistas.
Ana, doida por sapatilhas, procurou no Google um modelo que viu numa loja. Pouco depois, quando abriu a sua conta do Instagram, lá lhe apareceram elas, tentadoras, num anúncio. “Como é que sabiam que era destas que eu gostava?” Catarina confessou no grupo do WhatsApp que estava a pensar remodelar a casa. Desde esse momento, não lhe faltaram sugestões de páginas no Facebook que vendiam sofás, jarras e tapetes. Sem ela sequer procurar. “Que estranho.” O Tiago ficou surpreendido à saída do parque de estacionamento, mesmo antes de inserir na máquina o ticket já pago, o visor do aparelho exibia a matrícula do carro que conduzia. “Isto é assustador.” Exemplos não faltam. Na vida real e na internet. Estão constantemente a provar-nos que sabem quem somos, onde estamos e do que gostamos. E nós, dando ou não conta, estamos constantemente a ceder informações. Dados valiosos de potenciais consumidores, eleitores e usuários de diversos serviços.
Num Mundo cada vez mais construído à medidas das nossas necessidades, quanto mais nos conhecerem mais bem sucedidos serão a vender-nos exatamente aquilo que precisamos e aquilo que não sabíamos que precisávamos. Talvez por estarem conscientes deste modus operandi, quando a StayAway Covid – aplicação criada para ajudar a conter a pandemia – foi anunciada, muitos portugueses torceram o nariz. “Querem controlar-nos.” Será?
As dúvidas são pertinentes. No decorrer do confinamento não faltavam notícias. O roubo de dados pessoais tinha disparado na pandemia. Um aumento de 217%. Somavam-se relatos de atos abusivos perpetrados por governos de outros países, que os disfarçavam no pretexto do bem comum. Da saúde. Da defesa da população. Na China, por exemplo, as autoridades reforçaram a vigilância de movimentos instalando câmaras à porta das casas. Algumas até dentro das habitações. Já o faziam nas escolas, nos restaurantes e nas ruas. Garantindo assim o cumprimento da quarentena obrigatória. Muitos desses dispositivos ainda não foram retirados. Também havia bairros sobrevoados por drones que faziam a função da polícia. Denunciando quem não usava máscara. Por cá, a única tecnologia posta ao serviço da população tendo em vista o bem-estar comum foi uma aplicação lançada há 13 dias e cujo download é gratuito e voluntário. O especialista em dados pessoais Luís Filipe Antunes teme pela soberania dos estados. O sociólogo Jean-Martin Rabot fala em totalitarismo encoberto. Já lá vamos.
Apesar de ter sido muito incentivado pelo Governo, com o primeiro-ministro António Costa a falar em “dever cívico” e Marta Temido, responsável pela pasta da Saúde, a referir ser um “exercício de responsabilidade face ao outro” e também “de solidariedade”, a verdade é que mesmo já tendo passado a barreira do meio milhão de downloads, a app ainda está longe dos seis milhões traçados como meta pessoal por Rui Oliveira, administrador do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) – a entidade que desenvolveu, juntamente com o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, a aplicação para a Direção Geral da Saúde/Ministério da Saúde.
Em maio, quando se começou a falar dessa ferramenta, a organização de defesa do consumidor Deco Proteste lançou um inquérito: 80% dos portugueses reconheceram as vantagens da app para rastreamento de infetados com covid-19 pelas autoridades. Mais, admitiram utilizá-la, desde que a privacidade dos dados fosse garantida. Ora, a app está aí e a Deco não é a única entidade que coloca reservas à instalação da ferramenta que permite que cada utilizador seja informado sobre a exposições de risco à doença, através da monitorização de contactos recentes nos telemóveis. Invoca, primordialmente, a possibilidade de uso não-declarado e indevido de dados pessoais pela Google e pela Apple. Um reparo que, de resto, também já tinha merecido a atenção da Comissão Nacional de Proteção de Dados, que alertou para a excessiva dependência das duas empresas.
O poder da Google e da Apple
Cerca de 700 mil pessoas já descarregaram a StayAway Covid. E isto é grosso modo o que se sabe sobre ela: cada utilizador que tenha testado positivo poderá inserir o código do teste na app; depois da validação da Direção-Geral da Saúde, a aplicação irá alertar outros utilizadores que tenham estado a menos de dois metros de distância – durante 15 minutos ou mais -, sempre sem revelar a sua identidade, os seus contactos ou os de outros utilizadores; Esses identificadores, gerados ao acaso, são apagados a cada 14 dias. Quando não há registo de contactos de proximidade com elevado risco de contágio, a página inicial da app apresenta uma cor verde que mudará para o estado amarelo sempre que o utilizador tenha estado próximo de alguém a quem foi diagnosticada covid-19. Se a aplicação mudar de cor, a decisão de contactar as entidades de saúde é do utilizador, uma vez que, para além dele, ninguém saberá essa informação; a StayAway Covid depende de Bluetooth, uma tecnologia de comunicação sem fios de curto alcance. Não são guardados dados sobre as coordenadas geográficas do utilizador. Para garantir a compatibilidade entre diferentes telemóveis e gastar menos bateria, a app utiliza a nova interface de programação de aplicações (API) para rastreio de contágio desenvolvida pela Apple e pela Google.
Para Luís Filipe Antunes, diretor do Centro de Competências em Cibersegurança e Privacidade da Universidade do Porto, é nestes dois gigantes tecnológicos que começa o problema. Ambos são responsáveis pelo “código” que permite que apenas uma aplicação por país tenha acesso às ferramentas que só podem ser desenvolvidas pelo Governo ou pelas autoridades de saúde pública. Segundo o especialista, há um detalhe nesse protocolo que o desagrada: foi imposto. Ou os países aceitam e respeitam um conjunto de requisitos ou não podem ter acesso a essa tecnologia. “O que me incomoda é que há comprometimento da soberania de países de não poder escolher e de serem obrigados a trabalhar com a imposição destas duas empresas.” Luís Filipe Antunes explica que como a Google e Apple não libertam o tal código que usam desconhecemos o alcance da nossa informação a que elas têm acesso. Resta “confiar”. Essa dependência protocolar “a que estamos reféns” é um problema que “parece não incomodar os países da UE e devia, porque estes dois gigantes têm mais poder do que a própria União Europeia”. E, antes que se pergunte, o especialista responde: “Não, o Governo português não quer ser o Big Brother, não quer geolocalizar ninguém. Temos de ser honestos. O Governo não está interessado nisso”. Contudo, nas redes, não faltam teorias. E há quem garanta que, ao contrário do que é anunciado, para que a app funcione é necessário ter a geolocalização ativada. “É verdade. A Google para ativar o Bluetooth força a que se ative também a geolocalização. Não é um problema da app, mas do sistema operativo. Mesmo que a aplicação não use a geolocalização pode haver outras apps no telemóvel que usem. Portanto, se outras vão começar a fazer o tracking da minha localização porque estou a usar a StayAway Covid, isso só mostra que estamos reféns da Google e da Apple. O que pode trazer-nos efeitos secundários nefastos.”
Não fosse esse aspeto, o professor catedrático da Universidade do Porto não via grandes entraves à sua instalação. O curioso é que também não vê vantagens. Há alguns estudos italianos que dizem que para a app ser eficaz 60% da população teria de a ter. Só que, em Portugal, há telemóveis com sistemas antigos, aparelhos que não conseguem usar este sistema operativo, “o que deve corresponder a cerca de 25% da população”. Se descontarmos as crianças “até 6/7 anos, que não têm telemóvel e idosos que não os sabem usar”, Luís Filipe Antunes acredita que 30% da população não fará uso da app. “Os governos dizem que isto é melhor do que nada. Como não tenho dados científicos não me posso pronunciar.”
Pode Rui Oliveira, professor na Universidade do Minho e membro da Administração do INESC TEC: “Reafirmamos que se duas pessoas instalarem a app já poderá valer a pena”, assegurou à “Notícias Magazine”. Até ao dia 8 de setembro, 14 das 684 795 pessoas que tinham instalado a StayAway Covid registaram na app que estavam infetadas. Os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, falavam em nove códigos, que teriam gerado 20 chamadas para o SNS 24.
Luís Filipe Antunes também tem reservas em relação a esse procedimento. Por isso, lança uma questão aos vários governos europeus que estão a usar plataformas idênticas no rastreio de possíveis contactos com o vírus – Portugal, Espanha, França, Alemanha, Suíça, Itália, Reino-Unido, Islândia e Noruega – “Prepararam uma estratégia para esta aplicação?”
Caso prático. “Vamos supor que hoje ficamos a saber que há mais 646 pessoas infetadas e que todos inseriram o seu código na app. Vamos também partir do princípio que cada uma dessas pessoas esteve em contacto com quatro pessoas por dia, ao longo dos último 14 dias. Isso ia significar que amanhã estariam 36 176 pessoas a ligar para o SNS24.” Nova questão. “O Estado está preparado para isto?” Mais. Para o especialista, o problema da eficácia pode constatar-se em diversas situações. “Numa ida ao banco onde há um acrílico a separar as pessoas, em que tanto nós como quem nos atende usa máscara. O telemóvel marca o contacto, mas a probabilidade de haver infeção é baixa. Numa superfície comercial, se as medidas de segurança forem cumpridas, o potencial de infeção também é muito baixo. Numa fila de trânsito eu vou marcar um contacto que está à minha frente, atrás, ao meu lado, e estamos dentro de carros diferentes.” Exemplos que servem apenas para perceber que “o número de falsos positivos que a app vai dar e que na prática não são potenciais infeções é muito elevado”. Tudo porque o Bluetooth “não sabe se há máscaras, acrílicos ou viseiras”, frisa. Motivo que o leva a defender a existência “de um número específico, que não a SNS24, para atender a app”. Para essa linha estar livre “para quem realmente precisa.”
Prevendo o alarmismo, a ministra da Saúde já tinha pedido “prudência”, dizendo que “a exposição não significa infeção”. E pediu àqueles que descarregarem a aplicação que façam com tranquilidade os contactos necessários para as autoridades de saúde depois de saberem que estiveram em contacto com alguém infetado. “O facto de haver uma exposição não é sinal de infeção”, frisou.
Os falsos alertas
Luís Filipe Antunes adiciona mais questões ao debate. “Os responsáveis de bancos devem sugerir aos funcionários para instalar a app? E os dos supermercados? Os profissionais de saúde de um hospital devem instalá-la? Se essas pessoas receberem alertas de potencial infeção, “falsos alertas”, não vão trabalhar nesse dia. “Vão pelo menos fazer um teste e ficar à espera do resultado. E há testes?” O banco poderá não abrir nesses dias, sabendo de antemão que o potencial de infeção nas instalações é muito baixo. O supermercado também poderá fechar. “Qual o potencial de infeção de um profissional de saúde ser marcado como infetado, no Queimódromo do Porto, onde uma equipa de profissionais de fato, máscara e viseiras estão a fazer testes? Se tiverem a app, o alerta vai ser dado e vão todos para casa.” Moral da história: “Acho que a app não vai ser eficaz porque não há estratégia para ela”.
O aval do especialista é que a curto e médio prazo, tal como aconteceu noutros países da Europa que usam tecnologia idêntica, a app vai revelar-se um “falhanço”, porque “estamos a atirar tecnologia para um problema”. E garante: “Com o pouco que comprometemos da nossa privacidade ao instalar esta app, se ela fosse eficaz, eu como especialista em proteção de dados viveria confortável. Mas eu só não me importaria de perder 0,01% da minha privacidade se de facto a app funcionasse”. Resume o homem que defende que “a tecnologia nos pode ajudar”, que trabalha todos os dias “para que a tecnologia ajude ao bem comum”. Caso contrário, “estamos a dar uma falsa sensação de segurança às pessoas”.
É nesse ponto que bate Jean-Martin Rabot. O professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, que se destaca em áreas como a sociologia da cultura, da comunicação e média e tem desenvolvido trabalho de investigação no domínio da sociologia do quotidiano e dos media interativos, chama a atenção para o facto da StayAway Covid “parecer auxiliar as pessoas, preveni-las, protegê-las”. No entanto, defende o sociólogo, “nós sabemos que, desde sempre, o princípio da proteção dos indivíduos anda de mãos dadas com a dominação dos mesmos”. No entender do especialista, temos vindo a ser sujeitos passivos dessa dominação durante a pandemia. “Em nome da proteção exerce-se uma dominação, razão pela qual muitos falam em ditadura sanitária. Pretende-se preservar a vida, a saúde das pessoas, mas em troca confisca-se a liberdade. Entramos numa sociedade de controlo, de vigilância. E a verdade é que, essa aplicação, cujo uso é voluntário, é perigosa porque os extravasamentos são sempre possíveis.”
O professor universitário vai mais longe e compara a separação de infetados e não infetados com a Rússia estalinista e a Alemanha nazi, que obrigava os judeus a terem uma estrela de David no braço, para os identificar na rua. “A ideologia é sempre a mesma. É na separação dos indivíduos, fazendo com que não haja reuniões entre familiares, entre amigos, proibir os grandes ajuntamentos, evitar contacto físico entre as pessoas.” Uma espécie de dividir para reinar, apregoa o sociólogo. “E, assim, o primeiro objetivo desta política é criar desconfiança no outro, evitá-lo. Denunciá-lo, como vimos quando, em diversos prédios, foi pedido ao médicos que habitassem outra casa. Ou quando atiravam pedras aos idosos infetados. O segundo é infantilizar os indivíduos, tratá-los como crianças, têm de lavar as mãos tantas vezes ao dia, não se pode tocar em tudo, etc.”
Para Jean-Martin, vive-se a negação dos grandes ideais do século das luzes. Desconfiando até que há algo de Franz Kafka nisto tudo, ao quererem que sejamos “polícias de nós mesmos”. O autor citado falava na existência de uma colónia penal. “Nós estamos assim. As sociedades que descarregam essa aplicação tornam-se prisões.” Por esse motivo, no seu entendimento, estamos a caminhar “para um totalitarismo mole, suave” e “nem damos por isso”. Sendo que, a única solução para fugirmos dele e evitarmos, ao mesmo tempo, uma evolução negativa da pandemia é “o bom senso popular”, que repudiaria, por exemplo, a utilização de “sistemas de rastreio”.
Recorde-se que o decreto publicado em diário da República a 11 de agosto diz que a app “deve respeitar a legislação europeia e nacional aplicável à proteção de dados pessoais” e regula a intervenção do médico que introduz no sistema as informações do doente. Rui Oliveira, do INESC TEC, reafirmou à “Notícias Magazine” que a StayAway Covid “não utiliza quaisquer dados pessoais” pelo que estes, “como não estão lá, não podem ser roubados”. Mas ao terminar, acaba por reforçar as preocupações de Luís Filipe Antunes, o director do Centro de Competências em Cibersegurança e Privacidade da Universidade do Porto. A app “não manipula dados pessoais”. Desse modo, “o eventual acesso não declarado e desconhecido da Google a da Apple aos dados pessoais nos nossos telemóveis será independente da StayAway Covid”. Instalar ou não, eis a questão.