Perdidos no Porto

A juíza pediu-lhe o nome da mãe. O rapaz disse o nome da mãe e depois disse o nome do pai:
– Pai desconhecido.
– E o que é que faz, ou o que fazia?
– Nada.
A juíza, lendo o processo, informou a plateia de que, na altura em que fora preso, o rapaz vivia num estabelecimento que alberga jovens no Porto. O rapaz corrigiu a juíza:
– Não, nessa altura eu vivia na rua.
Agora – há dez meses – é numa prisão que dorme e foi de lá que o trouxeram com os outros dois. Eu estava no Tribunal de S. João Novo, vendo os três de costas: o mais velho de 20 anos, que nunca fez nada na vida; no banco ao lado, o companheiro de aventuras, de 17; e o terceiro perto da janela, com a luz matinal que reverberava lá em baixo no Douro como em folha de alumínio. O terceiro rapaz tem 18 anos.
– Nome do pai?
– Não tenho a certeza. Está no cartão mas eu não decorei.
A juíza disse-lhe um nome completo.
– É capaz de ser, respondeu, com um sopro do nariz.
Nem crianças, nem homens. Cabelos de futebol, de carros quitados, tatuagens de tv, mas tudo filtrado por um pano-cru de pobreza, descrença e solidão. Os três na posição de bandidos: trazidos da penitenciária por dois guardas de pistola no coldre, gás pimenta, algemas, máscaras cirúrgicas, botas blindadas rangendo nas tábuas de madeira centenárias, braços como gruas no porto. A meu lado, a mãe do mais novo, pequena, redonda e triste, chorava.
Os três rapazes foram detidos na rua a 5 de Novembro de 2019, pelas 23 horas, quando decidiram assaltar quem passasse. Eram cinco ao todo, mas dois tinham menos de 16 anos na noite do crime. Primeiro assalto: saindo do metro do Marquês para a Avenida dos Combatentes, viram dois estudantes espanhóis na posição de olharem o telemóvel e um dos rapazes agarrou-os por trás, como se fosse espreitar o ecrã. Um dos espanhóis resistiu e caíram-lhe todos em cima, pontapés e socos que lhe rebentaram o lábio e o levaram ao hospital. Ao outro, esmagaram os óculos no chão. Mais tarde, na zona das Antas, cruzaram-se com dois irmãos portugueses. O terceiro rapaz já conhecia um deles, de assalto anterior. Foi-se o telemóvel e dez euros e 70 cêntimos da carteira. Então, chegou a polícia, que monitorizara as câmaras do metro, já os procuravam há muitos dias para os apanhar em flagrante.
Antes da captura, ao que parece, o primeiro rapaz apanhou a carteira do chão e devolveu-a vazia ao jovem roubado, como se tivesse pena. E foi, creio, levadas pelo pormenor insólito, pela ausência do pai desde o berço, por tanta frase real, cintilante e desencantada, que a juíza e a procuradora do Ministério Público procuraram uma saída, a hipótese de redenção.
– Eu, se soubesse, não tinha feito. Sim, porque se não tivesse feito aquilo, não estava aqui, disse o terceiro rapaz.
– Está arrependido porque “fui preso, tive azar”, ou por ter feito o que fez?, perguntou a juíza.
– Gostava de assaltar?, disse a procuradora.
– Claro que não. Eu às vezes já fazia isso e devolvia as coisas, sei lá, tinha pena. Inicialmente, não queríamos nada disso, só nos queríamos divertir, disse o primeiro rapaz.
– Não disseram “dá-me o telemóvel e a carteira porque tenho aqui uma faca?”
– Tipo isso, admitiu o terceiro.
Alegações do Ministério Público: tiveram a coragem de admitir quase tudo. Se cumprirem um plano de reintegração severo, se prometerem acabar com os crimes, não vão presos desde já. Foram dez meses de preventiva, repetiu.
– Se me derem esta oportunidade, vou agarrá-la com todas as forças, quero meter um risco, riscar esta vida, respondeu o terceiro.
– Eu quero mudar a minha vida, disse o primeiro.
– Eu quero ter dinheiro para educar a minha filha, quero que ela se orgulhe de mim, disse o segundo, aos 17 anos.
A bebé nasceu em Dezembro, estava o pai na prisão por um telemóvel, uma nota de dez euros e 70 cêntimos em moedas pretas.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)