Valter Hugo Mãe

Ainda e sempre contra o racismo


Se agora parece tão urgente ir à praia, é muito mais urgente acabar com a perseguição e morte das pessoas negras.

A esta altura do campeonato, com a TAP aberta ao Brasil, onde a situação pandémica vai sem freio e sem honestidade alguma por parte do seu governo, ficar a debater a maior ou menor cautela de nos juntarmos passa a ser assunto um pouco ocioso. Estamos todos responsabilizados ao cuidado. Contudo, vemos por toda a parte as coisas pacificamente mal feitas sem que isso revolte ninguém.

Vejo pelas minhas redondezas os barbeiros atenderem sem máscara. Aliás, a toda a hora e em toda a parte, quem usa máscara mete o nariz de fora para falar. As portas de tantos serviços estão fechadas, obrigando a que se usem as maçanetas ou puxadores. As crianças já vão à creche e à escola sem que seja possível cumprir distanciamento ou sequer impedir partilha de brinquedos e materiais. Nunca por aqui vi a polícia, a DGS ou aquele carro da Câmara de Vila do Conde que dizem que passa no centro, ou passava, a dizer para as pessoas terem cuidado e ficarem em casa. Nas Caxinas, na verdade, pareceu-me que estivemos sempre à nossa vontade e discernimento.

Dito isto, sair pela luta contra o racismo é o mais decente que se pode fazer. Fique-se lá com os pruridos para aquilo que todos os dias está mal feito e escuse-se a infernizar quem levantou os cartazes a favor de todas as raças de todas as pessoas. Se agora parece tão urgente ir à praia, a julgar pela enchente constante que aqui comparece, é muito mais urgente acabar com a perseguição e morte das pessoas negras, crime que matou muito mais do que qualquer vírus e se repete há séculos.

Pena que exista sempre algum excesso. Pena que algum imbecil levante cartazes de ataque à polícia de que todos necessitamos. O que se quer é o controlo e a formação. Não pode haver racistas nem na polícia nem no governo, nem nas pastelarias nem na praia. O racismo é crime. Não pode haver.

Contudo, compreendo o manifesto do desespero. Fosse eu negro e habituado à discriminação pela vida inteira, talvez também precisasse de escrever minha fúria, como faz a belíssima poeta negra, Gisela Casimiro: “Quando for grande quero ser polícia / para bater nos pais de outros meninos / em frente aos outros meninos. // O meu pai sempre me disse: / cuidado a quem dás bastonadas. / Nunca dês bastonadas a um preto / senão vão achar que és racista. / Se deres bastonadas a um branco / estarás apenas a ser polícia. // Ainda bem que não somos pretos. / Imaginem se fôssemos pretos. / Já não podia ser polícia.”.

Se este poema não pode ser universalizado, também não pode ser ignorado. Nos países ditos brancos os negros são mais intimados, intimidados, agredidos e mortos pelas polícias. A ideia não pode ser acabar com ela nem criar o seu demérito. Muito ao contrário. A ideia tem de ser a de requalificar as polícias, estreitar o acesso à carreira, garantir que criamos uma força de bons homens e de boas mulheres, paga com salários dignos e metidos em instalações que não pareçam barracões ao abandono. Então, talvez seja possível esperar apenas dignidade.

Até lá, sim, com o cuidado possível, manifestar, manifestar e manifestar. Até que acabe. Até que se cumpra a lei. Porque o racismo é crime. É um nojo.