Rui Cardoso Martins

A grande desilusão

(Ilustração: João Vasco Correia)

O homem já tinha falado em sua defesa, quando lhe perguntaram:

– O senhor sabia que a senhora sofria do coração?

– Sim, eu marquei várias consultas para ela.

Ederson pegou na pochete de plástico brilhante com dois dedos onde, num dia extravagante, fez pousar anéis com brilhantes tipo Rainha de Inglaterra (só que imitações) e um enorme insecto (mas tatuado, um desenho de moscardo). Todo ele era pinças a sentar-se no banco dos réus, numa espécie de zanga, de estupefacção delicada por estar ali acusado de burla. Os lábios e pálpebras de botox pagos pela senhora, o implante capilar – aquela espécie de lã negra no alto da cabeça – cobrado à conta da senhora. Ederson era cabeleireiro em Portugal, um bom cabeleireiro cheio de clientes, até que quis subir na vida e deixar de cabeleirar. Depois mandou vir do Brasil o pai, a mãe, a irmã, o companheiro, todos a viverem do dinheiro da dona do salão. À noite, tirava-lhe as chaves do carro e andava no BMW da patroa. Uma espécie de Parasitas* um pouco pífios, um filme luso-tropical sem caves nem homicídios, sem abismos de classe social. Ederson disse que o dinheiro que levantava da conta da patroa não foi roubado, foi para as obras e para os móveis das casas de alojamento local que os seus familiares estavam a construir para a senhora. Mas a primeira coisa que a velha empresária disse, ao entrar na sala, foi:

– Trabalhou para mim mais de dois anos. Conheço-o bem de mais… Deixou de trabalhar para me andar a enganar. Parecia um santinho. Não sabia que me andava a roubar. Assim que passou a gerente e teve acesso aos meus cartões…

Guilhermina mal sabe ler mas tem contas, casas e negócios.

– No dia em que se descobriu isto, eu desmaiei! Foi ele que me deu o copo de água. Dei-lhe o meu cartão, confiava nele. As outras empregadas traziam-me as provas, os recibos dos levantamentos, mas ele nunca. Dizia que a máquina estava avariada. Passava logo 2 000 ou 2 500 euros para a conta dele.

– Mas a senhora nunca desconfiou de nada?

– Sotôra, quem é sério nunca pensa que os outros vão roubar.

– Quantas vezes é que ele lhe tirou dinheiro?

– Ai, não sei. Foram muitas. Nem eu sei se ele sabe quanto me roubou. Era para o pai dele, a mãe, o amigo… Tudo à minha conta!

Os pais de Ederson vieram do Brasil para fazer as obras de um futuro alojamento local de Guilhermina. Segundo ela, cada um recebia 50 euros por dia. O problema era que Ederson desviava. Às vezes ia-lhe à mala e levava o cartão por umas horas. Foi outra empregada que descobriu o roubo sistemático.

– Eu disse-lhe: “Não ando bem, não sei o que tenho”. E ele foi-se aproveitando como quem tinha uma louca que estava ali. À noite pegava no meu carro para mostrar aos amigos que tinha um BMW, depois vi no Facebook. Eu nunca lidei com uma pessoa como o Ederson. Depois soube que dizia às minhas empregadas: “Meninas, tomem conta dela, que eu não a posso ver…” Andava a roubar-me e não me podia ver?

– Porque é que neste acordo estava em 43 mil e acabou por aceitar a devolução de 25 mil?, perguntou a juíza.

– Porque ele não podia pagar e eu só queria ver-me livre dele! Ele foi para os Açores, para o Brasil, para a Inglaterra, para a Espanha, tudo com o meu dinheiro!

– Como é que eu sei que dinheiro era o seu, em concreto?

– Não me importo de perder tudo, sotôra, porque ele não tem nada. Mas a realidade é esta, juro pelos meus três netinhos.

A juíza e a procuradora olhavam para a senhora, para os papéis, entre si. E agora? Ela dava-lhe os cartões, ela fê-lo gerente.

– Ele que leve o castigo que a sotôra entender, que eu sei que ele não tem nada. Nunca conheci ninguém mais falso. Fui como uma mãe para ele. Não sei porque é que me fez isto.

E pelo bico do olho viu Ederson cruzando o ténis branco no joelho.

– Quando chegava uma cliente, dizia sempre que já tinha uma cliente… E afastava as clientes que chegavam, porque ele não precisava de trabalhar. E assim me deu cabo do salão.

Quando o confrontou, ele ameaçou-a, chamou-lhe nomes. O pai fugiu para o Brasil, “com a vergonha”. Ederson conferia agora as suas unhas, anéis, o moscardo tatuado. Ao levantar-se, a velha empresária abanou.

– Até parece que estou com os copos!…

*Bong Joon-ho, Palma de Ouro de Cannes, Oscar Melhor Filme.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)