Rui Cardoso Martins

Vizinhas em guerra

Ilustração: João Vasco Correia

Considero-me tanto um afortunado como ser bizarro, uma vez que há muitos anos me dou bem com os meus vizinhos. É difícil explicar: as reuniões de condomínio, mesmo as financeiramente pesadas, e as de manutenção e limpeza bem desagradáveis (como têm de ser), acabaram de forma historicamente cordata, e entre andares trocamos hoje laranjas do sul por maçãs do norte, e perdizes caçadas por presunto criado, já houve obras de meses com decibéis inverosímeis que não acabaram em corte de relações com o lar de cima, e até há aqui um vizinho que, se um de nós se esquece da chave de casa, entra pela varanda do outro pendurando-se a oito metros de altura no exterior do imóvel como homem-aranha, ou assaltante convidado, de maneira que foi até – preparem-se – no jantar anual de Natal (!) do prédio, quando voltávamos a pé do restaurante para casa, soprando o ar fresco da beira-rio, que contei a história deprimente da D. Felismina e da sua vizinha.

O juiz pegou nos papéis e anunciou que passava à sentença de um caso de injúrias e ofensas corporais simples. A D. Felismina sentara-se de forma humilde, dedinhos cruzados no colo, observando os movimentos das unhas pelos óculos, mas levantou-se com firmeza para ouvir a sua sorte.

O juiz começou a ler a história de umas escadas comuns, há uma pessoa a subir e a outra a descer o prédio, e uma delas atira um cigarro para os degraus e a outra ataca-a com as chaves de casa, em combate corpo-a-corpo, penetrando com as arestas metálicas os joelhos da vítima, provocando-lhe feridas e contusões que obrigarão a sessões de fisioterapia e a 157 dias de impossibilidade para o trabalho. A cena, contada a frio, tem a marca de um recontro entre gangues de bairro, os chicanos contra los diablos desinquietam os subúrbios da capital, polícia tenta evitar novos embates sangrentos, eles usam como armas brancas as simples chaves de casa, é assim que naifam.

Mas eram afinal duas mulheres que se odeiam por motivos que a dona Felismina se encarregou de fazer mais explícitos. O juiz suspirou e leu o que ela disse:

– Puta, és uma prostituta, pões homens em casa, um dia mando-te pelas escadas abaixo, um dia vou-te apanhar. Andas bem vestida, mas às custas da prostituição.

Para aprofundar o contexto, também lhe chamou “puta brasileira”, provocando na vítima “vergonha”, “dores nos joelhos”.

Hipótese: como a D. Felismina é funcionária e vigia os balneários públicos da junta de freguesia e este trabalho é carregado de riscos morais, típicos de um urinol, isto levou-a a endurecer os critérios na própria casa. O juiz preparava o terreno para a sentença, falando em “verborreia menos própria, sempre constante” e em “realidades de diferentes culturas” em choque. “A tentativa de mudança de hábitos existentes acabou por provocar um mal-estar a partir do momento em que se pretendeu impor regras diferentes, ou até à existência de regras que até à altura seriam inexistentes.” Disse também que não se provaram os supostos três meses em que a vítima brasileira andara de muletas – “só nos primeiros dias” – e também se referiu, num curioso aparte linguístico, à “lamechiche bacoca” que detectara neste caso que lhe foi parar às mãos.

– Chamar puta e prostituta e acusar de viver da prostituição não decorre de um linguajar próprio entre pessoas, por isso é injúria.

Pelas ofensas corporais e pelas injúrias, condenou a D. Felismina a 240 dias de multa, a cinco euros por dia, isto é, 1 200 euros ou 160 dias de prisão. Pelos danos morais, mais 2 500 euros.

– As pessoas não têm de gostar umas das outras, as pessoas não têm é de se tratar mal umas às outras.

E assim a D. Felismina saiu mais pobre da sala, atordoada com o que a justiça fez à sua febre justiceira. Falava como se outra vez nas escadas e lá vinha a descer a vizinha.

– Mas o que é que eu fiz?! O que é que eu fiz?! Ela é que me tratou mal!

O autor escreve de acordo com a anterior ortografia