Má educação, forma de expressão, meio de libertação - há tantas leituras para as asneiras quantos os contextos. Teses de uma ex-freira, de um humorista e de uma psicóloga.
O momento constrangedor não lhe sairá da memória tão cedo. Ana Faria, telefonista, na casa dos 30 anos, natural de Braga, não conta com pormenor o que aconteceu, mas dá para ter uma ideia. “Basicamente, uns colegas, eu e um superior nosso estávamos a falar sobre uma questão de trabalho. E eu dei a minha opinião sem pensar. Descaí-me: ‘Estou-me a cagar’. Saiu. O que disse não foi propriamente um palavrão, mas podia ter usado outro verbo.” Notou que o ambiente ficou tenso por ter dito algo fora de vulgar, mas passou. “Pelo menos à minha frente ninguém comentou o incidente.”
O uso do vernáculo, assume Ana, faz parte da sua maneira de ser há muito.”Não é um exemplo que traga de casa. Não é que os meus pais não dissessem, mas era incomum. E eu à beira deles nunca disse, por respeito. Os palavrões não são necessariamente desrespeitosos, depende também da forma como os empregamos.” Exemplifica: “Se chamarmos ‘puta’ a alguém é ofensivo. Se temos um azar e nos sair um ‘puta que pariu’ é uma forma de libertar má energia. É o que sinto.”
Há outro dado curioso nesta história: Ana Faria já foi freira. Durante o tempo em que viveu numa comunidade religiosa, em Fátima, tentou domar esse seu lado mais impulsivo. “Evitava dizer, mantinha a tal atitude de respeito. Porém, com aquelas que eram muito próximas, com quem me desse mesmo muito bem, como me sentia muito à vontade, de vez em quando lá me fugia a língua. Tudo depende do ambiente em que esteja. Defendo que temos de nos saber comportar. Perante pessoas que não são conhecidas, apesar de ser algo natural em mim, não acho apropriado usar. No trabalho, por exemplo, não digo.”
Automaticamente lembra-se da situação que descreveu há pouco e ri-se. “Aquilo foi sem querer e espero que não se repita. Como se viu, em certos ambientes é tabu e nota-se desconforto porque esse tipo de palavreado não cabe na linguagem formal.” Só são aceites “em contextos de grande intimidade”. Entre amigos. “Os meus já me conhecem. Sabem que é normal eu soltar alguns palavrões. Não é em contexto de raiva. Digo quando conto alguma coisa que me indignou, mas também se estiver a reproduzir um episódio com piada. Não sei se isso é bom ou mau. Só sei que quando estou zangada sinto que um ‘foda-se’, um ‘caralho’ e um ‘merda’ me aliviam o stresse.”
O pipo da panela de pressão
O humorista Fernando Rocha não só concorda como lança um desafio: “Quero ver alguém bater com o dedo pequeno do pé contra a esquina de um móvel e não soltar um palavrão”. O público está habituado a que diga cinco asneiras a cada seis palavras. “Tenho mestrado e doutoramento na área”, brinca, depois de confessar que isso também lhe valeu duras críticas ao longo de 20 anos de carreira. “Principalmente de malta mais elitista. É para o lado que durmo melhor. São os gostos de cada um.” E o de Fernando Rocha passa por fazer comédia dessa forma. “Quando conto piadas uso os palavrões para fazer pontuação verbal. Como vírgulas e pontos finais. Fica um discurso mais bem construído. É uma gramática verbalizada que dá mais ritmo à performance.”
Fora dos palcos a conversa é outra. “Até posso dizer, mas não são tantos. E quando os digo é mais como desabafo. Quando estou mais chateado com alguma coisa. Funciona como o pipo da panela de pressão. Mas para me enervar também é preciso muito.”
O recurso a palavras obscenas ou tidas como feias começou em pequeno. “Mas até aos 18 anos nunca disse em frente aos meus pais.” Muito embora o pai não os usasse, ao contrário da mãe. “É que ele é de Valongo e ela é da Sé, visceralmente tripeira. Dizia, e dizia muitos.” Foi uma espécie de escola que o ajudou a construir personagens.
Da infância salta novamente para o presente. Conversa séria. Ou assim parece. “Tenho amigos padres que não dizem palavrões e tenho outros amigos que dizem. Isso não define a educação de ninguém.” Este não é o único ponto que Fernando Rocha acha importante abordar. “O palavrão pode trazer benefícios à vida. Dependendo dos contextos em que é dito. Na cama é afrodisíaco. Eu já experimentei e aconselho.” Não fica por aqui. “Há mais propriedades benéficas. Pode ser libertador. Pode substituir a admiração. Pode resumir todo o nosso estado de espírito.”
E eis que chega o derradeiro exemplo. “Imaginem que vamos na estrada e sentimos um flash, somos apanhados desprevenidos e dizemos ‘foda-se!’ Logo a seguir, que pode ser um nanossegundo depois, percebemos que a luz vem do carro da polícia e dizemos ‘caralho’. E quando nos damos conta que vamos perder pontos na carta e pagar uma multa dizemos ‘puta que pariu’. Olhe que isto é uma ciência.”
Lidar com o stresse, regular as emoções
A questão é colocada e respondida no livro “Dizer Palavrões Faz Bem”, da neurocientista inglesa Emma Byrne. Baseada em diversos estudos, defende que o uso do calão pode parecer fútil e pouco civilizado, contudo é uma função bastante útil da linguagem, que mostra como os nossos cérebros, emoções e até as sociedades funcionam. Tendo inclusive um papel fundamental na diminuição da dor e mesmo na recuperação da linguagem em pacientes que sofreram AVC.
Além disso, facilita a coesão de grupos e melhora a gestão do stresse. Universidades anglo-saxónicas mostram resultados, facilmente acessíveis na Internet: o calão torna-nos mais racionais, faz-nos parecer mais sinceros – esta foi uma arma utilizada por Donald Trump na campanha eleitoral de 2016 -, ajuda-nos a expressar-nos melhor e reduzem a ansiedade (no caso dos adeptos de futebol).
Rute Agulhas, psicóloga clínica e docente no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, confirma que dizer palavrões pode funcionar “como uma estratégia para lidar com o stresse e regular as emoções”. Acabando por ser um método libertador a que muitos recorrem, ainda que eventualmente de forma inconsciente. No entanto, frisa a importância de “atender ao contexto em que são ditos”. Num ambiente “profissional ou em casa, junto de crianças, poderá ser menos adequado”.
Por outro lado, “há casos em que é bastante aceite, dependendo também da zona do país em que se vive”. Normalmente esse pêndulo cai mais a Norte. “Sabemos que há zonas que têm maior aceitação deste comportamento.” O que torna o uso de palavrões “algo absolutamente natural e espontâneo”.