Texto de Sofia Teixeira
Quando se desenha a si própria ou à sua família, quando desenha a sua casa, os amigos ou um momento das férias, a criança está a comunicar. O desenho como forma de expressão não tem idade mas, para os petizes, ele revela-se uma ferramenta essencial na medida em que lhes permite comunicar de forma mais natural. “A criança organiza as ideias predominantemente através de imagens e o desenho permite que consiga fazer uma transposição direta do que está pensar”, explica o psicanalista Nuno C. Sousa. Por outro lado, sobretudo até por volta dos sete anos, as ilustrações permitem colmatar capacidades ainda pouco desenvolvidas, como a linguagem verbal.
O tipo de desenho da criança passa por várias fases ao longo do crescimento. Algumas teorias mais antigas alegam que é possível aferir o desenvolvimento e maturidade através dos rabiscos que os pequenotes fazem, mas Sofia Salgado Mota, educadora de infância e autora do blogue Pedaço de Nós, defende que deve haver cuidado com interpretações muito lineares: no que diz respeito ao crescimento, não há idades certas para nada. “Cada criança tem o seu ritmo e o desenho que faz depende também do seu grau de envolvimento e apetência. Há crianças com um nível cognitivo bastante bom que são péssimas a desenho, enquanto outras com uma série de dificuldades desenham muito bem. Não devemos avaliar uma criança tendo apenas em conta como ela desenha”, alerta.
Certo é que o desenho dos miúdos na pré-escola passa por várias etapas definidas e bem estudadas. Sofia Salgado Mota diz que a “criança começa por riscar de forma descontrolada, a chamada garatuja”. Esta é a fase de primeiro contacto com o papel, não havendo qualquer representação dela ou dos outros, o que acontece, por norma, até cerca dos dois anos. Com o passar do tempo, diz a educadora, estes riscos torna-se mais coordenados e a criança começa a fazer círculos.
“A etapa seguinte é a chamada fase do girino, na qual se desenha uma espécie de figura humana, com um círculo – a cabeça – e alguns riscos que representam as pernas e braços.” Pelos três anos, exemplifica, “costumam desenhar tudo no ar, sem grande ordem, como se as coisas aparecessem caídas do céu”. Depois é esperado que a quantidade de cores e elementos vá aumentando, que tudo apareça mais ordenado e, geralmente pelos cinco anos, “já é capaz de fazer o registo, através de desenho, de histórias ou situações com grande pormenor”.
Os mais pequenos encontram natural obstáculo na expressão oral de ideias complexas mas, como refere Rute Agulhas, especialista em psicologia clínica e da saúde e ainda em psicologia da justiça, “essa dificuldade pode ser acrescida se aquilo que desejarem verbalizar for uma situação negativa, uma memória traumática ou algo que lhes gere maior ansiedade”. A também perita do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e docente no ISCTE-IUL, em Lisboa, garante que muitas vezes as crianças dizem que não querem falar sobre algo e, ao desenhar, “acabam por começar a revelar, de forma mais subtil, o que sentem, os seus receios, desejos ou vivências”.
O desafio da descodificação
Por essa razão, em consultório, os psicólogos fazem frequentemente uso do desenho como ferramenta de comunicação e interação. Rute Agulhas revela que com crianças a partir dos três ou quatro anos – que já têm geralmente capacidade de se representar a si próprias e aos outros – é muito frequente sugerir ao pequeno paciente que desenhe. “Pode ser um desenho livre, que nos ajuda a perceber os temas do seu interesse ou as áreas que deseja abordar, ou desenho de si próprios, o desenho da família, real ou imaginária. Depende do que se pretende, da idade da criança e do que está em causa no seu processo terapêutico.”
E deixa um exemplo: uma jovem de nove anos, vítima de maus tratos físicos e emocionais, desenhou a sua família. Era feita de monstros, alguns com muitas cabeças e braços, com expressões faciais muito assustadoras. Depois explicou o desenho: “São monstros, maus, e têm muitas cabeças e muitos braços, batem e andam aos beijos na boca uns dos outros, casam uns com os outros”.
Esta narrativa “traduz uma perceção da família como geradora de ansiedade e medo. As interações são bizarras e disfuncionais e o facto de não desenhar figuras humanas também é atípico para a idade”, interpreta a psicóloga. Outros casos há em que não se ilustra a perceção da realidade, mas antes os desejos. “Recordo-me de uma criança que tem os pais separados e em conflito e que desenha, de forma repetida, em todas as sessões, os pais a casar, com ela no meio, todos de mãos dadas. Este desenho parece relacionar-se com a idealização de reunificação familiar, a idealização de uma família feliz.”
A pergunta para um milhão de dólares é: ao olhar para um desenho infantil, o que é que deve deixar preocupado um pai, mãe ou educadora, sendo um possível motivo para uma avaliação da rapariga ou rapaz por um psicólogo? “A técnica de avaliação do desenho infantil é complexa e não devem fazer-se deduções precipitadas a partir de partes isoladas”, aconselha Nuno C. Sousa. O psicólogo concede que há elementos que podem ser indicadores do estado emocional genérico da/o jovem, mas apenas serão alarmantes caso surjam recorrentemente ao longo de vários desenhos. “É normal a criança fazer um desenho que represente mal-estar e que poderá ser consequência de um episódio isolado”, alerta.
Genericamente, Nuno conta que desenhos com tonalidades muito escuras podem representar estados emocionais de tristeza ou zanga, rabiscos sem forma e desenhados com uma atitude tensa podem indicar sentimentos de angústia intensa e personagens com proporções exageradas podem refletir um papel predominante na vida do petiz. Mas alerta para uma questão essencial: “Independentemente do que for desenhado, é importante perguntar sempre à criança o que o desenho significa, para não se correr o risco de fazer uma dedução precipitada”. Ou seja, mais do que tentar descodificar o que está no papel, importa pedir a quem o fez que explique o que desenhou.
Rute Agulhas insiste na mesma ideia: há que ter em conta vários desenhos e não apenas um, há que perguntar à autora a história daqueles traços e mesmo assim os desenhos, só por si, não podem sustentar um processo de avaliação. “O desenho não é uma prova, é um facilitador de comunicação, especialmente importante para crianças mais novas. Por vezes, há interpretações que eu chamo de ‘selvagens’ porque não têm qualquer base, não se apoiam na narrativa da criança nem nos outros dados do processo de avaliação. E os cuidados têm de ser acrescidos com crianças em idade pré-escolar, em que a diferenciação entre realidade e fantasia nem sempre é conseguida.”
A psicóloga deixa alguns exemplos das referidas “interpretações selvagens” que assegura já ter visto serem feitas, sendo depois espelhadas em relatórios que seguem para um processo judicial, com consequências nefastas. Num desenho uma criança fez uma horta e nessa horta muitas cenouras. Interpretação: as cenouras têm um formato fálico, o que pode ser indicador de abuso sexual. Noutro caso, a criança desenhou uma família e a figura que representava o pai tinha as mãos maiores do que as das outras pessoas do agregado. Interpretação: o pai era percecionado como agressivo e ameaçador.
A Rute Agulhas não faltam exemplos de desenhos infantis que guarda na memória, por boas ou más razões, mas um dos que considera mais marcantes remete para esta importância da narrativa. Foi pedido a um jovem – que estava em famílias de acolhimento há anos e com dois processos de adoção que não correram bem – que projetasse uma família. “Este menino, com oito anos, desenhou um balão no ar e explicou: ‘Este sou eu a flutuar sozinho. Não há mais ninguém’. Um desenho que espelhava bem a ausência de vínculos afetivos. Não tinha sequer figuras humanas, traduzindo apenas a ausência de apego, o vazio interior.”
Cores e formas como auxiliar de diagnóstico
A distinção entre os vários tipos de dor de cabeça, nomeadamente entre as enxaquecas e as cefaleias de tensão, é feito sobretudo com base na descrição dos sintomas feitos pelo paciente. Em crianças pequenas, pedir que seja feito um desenho sobre as suas dores de cabeça pode ajudar o neurologista a reconhecer as características da dor, facilitando o diagnóstico diferencial.
Um estudo publicado há mais de duas décadas na revista “Pediatrics” pelo neurologista Carl Stafstrom, do Hospital Johns Hopkins, em Baltimore (EUA), mostra isso mesmo: o diagnóstico do tipo de dor de cabeça com base nos desenhos das crianças tem uma sensibilidade e valor preditivo de diagnóstico acima dos 80%. Pelo que se conclui que, atendendo à simplicidade e baixíssimo custo, deve ser incentivado o uso de desenhos na avaliação de qualquer rapariga ou rapaz com dor de cabeça, como complemento à história clínica e exame físico.