Marta Temido: “Quem vem para a vida política não pode ser incauto. Tem de desconfiar”

Entrevista de Alexandra Tavares-Teles
Fotografias de Paulo Spranger/Global Imagens

O gabinete ministerial, branco nas paredes, nas portas, nos armários, tem pouco de seu. Meia dúzia de livros técnicos, a fotografia de um encontro de saúde internacional no Camboja e pouco mais, marcas discretas que combinam com a transitoriedade do cargo. Está ali de passagem, vai dizendo, num exercício de desapego e, também, de afirmação: enquanto está, está, e que disso não se duvide. Na mesa de reuniões, há dossiês impecavelmente empilhados e organizados. Sobre um móvel, dois galos em louça para os quais chama a atenção. Pertencem ao Ministério, foram oferecidos numa viagem ao Minho e estão ali para lembrar que a saúde, em Barcelos, precisa de investimento. Marta Temido tem 45 anos – é difícil acreditar. Recebe-nos risonha, enérgica, disponível. É pequena, muito viva, muito expressiva. Fala depressa, com um discurso fluido, entusiasmado, e sempre de caneta na mão.

Vamos começar pela atualidade. Sobre a abolição das PPP na Saúde, proposta tornada pública como definitiva, o Governo começou por dar um passo maior do que a perna?
Nas várias versões que são conhecidas sobre este tema, todas têm o mesmo princípio – a gestão é pública. Quer dizer, há uma clara identificação em termos de matriz. Dito isto, a questão que se coloca é se se dá o passo seguinte, e a que ritmo se dá. Neste processo existiram várias versões trocadas e equacionadas, umas mais num sentido, outras mais no outro, a que se juntou, a pressionar num determinado sentido, uma intenção motivada pelo momento político pré-eleitoral. Mas, repito: há muito mais identificação que divergência.

O que parece é não haver entendimento possível na “geringonça” relativamente à Lei de Bases da Saúde. Qual lhe parece que vai ser o desfecho?
Acredito que as forças que apoiam este Governo e que souberam resgatar o país de uma situação em que não podia continuar, terão a responsabilidade de não manter em vigor a lei de 1990. É um processo fácil? Não é. É um processo que se faça sem aproximações mútuas? Não é. Mas acredito que é possível.

Qual é a opinião da ministra sobre a abolição das PPP?
Acompanho sem dúvida alguma a proposta de lei do Governo.

Qual delas? A que enviou ao BE a 28 de abril, que as abolia, ou a da reviravolta?
Deixe-me ser clara. Eu não enviei nenhuma proposta ao Bloco de Esquerda. Eu e este gabinete não enviámos nenhuma proposta ao BE. Houve troca de documentos entre vários atores do processo, mas a ministra da Saúde nunca enviou uma proposta ao BE.

A proposta chega ao Bloco assinada pela ministra.
Há uma alteração de documentos entregues em “track changes”, problema de ministros que fazem várias coisas pelo seu próprio punho e no seu próprio computador, onde aparece um delete na expressão a seguir a “a gestão dos hospitais é pública”. Sai aquele entrelinhado e é acrescentada uma outra opção.

O delete fez toda a diferença.
Foi uma opção de redação que estava a ser tentada, aquilo a que se chama redações tentativas de aproximação de posições. Fizemos várias. Agora, a proposta de lei do Governo é clara: a nossa preferência é que a gestão dos hospitais seja pública. O que não sei é quando lá conseguiremos chegar.

Quando o PS omite do texto a proibição das PPP não deixa a lei igual à que a direita sempre defendeu?
Não, é completamente diferente. Neste momento, o que a lei diz é que pode ser autorizada a entrega de hospitais e centros de saúde do SNS, através de contratos de gestão, a outras entidades. Ou seja, há uma permissão, uma autorização para. Na proposta de lei do Governo, o que é uma possibilidade passa a condicionante, precedido de uma preferência clara no sentido da gestão pública.

Concluindo, a proposta que chegou ao BE não tinha a concordância da ministra.
Era uma proposta de redação pior que esta. Claro que, quando estamos a fazer um caminho de discussão com outros grupos parlamentares, procuramos ver qual é a intencionalidade deles e o BE respondeu que se revia naquela proposta. Mas, quando estamos a fazer redações tentativas, estamos a fazer redações tentativas. Olhe, serviu-me de aprendizagem. Não faças as redações tentativas. Deixa que os outros façam alguma coisa. Mas quem quer que alguma coisa aconteça…

Que mais aprendeu nestes dias?
Que quem vem para a vida política não pode ser incauto. Tem de desconfiar.

Não voltará a deixar sair daqui uma proposta de estudo, é isso?
Não voltarei a ter a ingenuidade de acreditar que todas as pessoas têm o mesmo ponto de vista sobre a forma como devemos relacionar-nos uns com os outros. Não voltarei a cometer certas ingenuidades. Ou procurarei não o fazer. Mas devo dizer que é difícil. Não está na minha natureza não confiar.

Duas semanas extenuantes entre posições diferentes – as do Bloco, as do PCP e de parte do grupo parlamentar do PS?
Em primeiro lugar, as conversas que foram tidas foram sempre conversas de apoio às soluções que os grupos parlamentares quiserem encontrar. Quem tem de fazer esta parte do trabalho são os grupos parlamentares, PS, PCP e BE. O papel da ministra da Saúde é um papel de apoio.

A verdade é que uma vez que o documento vinha do Ministério da Saúde foi tomado como definitivo.
Mas como é possível?! Vieram outros, antes. E houve uma reunião posterior, em que foi afirmado qual era a disponibilidade para aquela redação. Mas não gostaria de ir por aí.
Era realmente viável acabar com as PPP na Saúde? Qual é o entendimento da ministra?
Por decreto e sem acautelar que as PPP são internalizadas pelo menos com igual qualidade à que neste momento é prestada, não.

Esse acautelamento é impossível?
É possível, mas não por decreto. Sabe, os portugueses têm esta fé inabalável de que a lei lhes resolve os problemas. Resultado, legisla-se e nada acontece.

Vários partidos afirmaram que tinha perdido as condições para continuar no Governo. Sente-se desautorizada com a reviravolta?
De forma alguma. Quem pensa que a ministra da Saúde, Marta Temido, ficará fragilizada por aquilo que se escreve sobre ela, está muito enganada. A única pessoa a quem eu devo essa responsabilidade é ao senhor primeiro-ministro, aos colegas de Governo, aos portugueses em geral. Jamais a ministra da Saúde se sentirá fragilizada por aquilo que outros interesses, sejam eles quais forem, dizem, ou escrevem ou pensam. Não sou surda nem sou cega. Como pessoa, sinto-me. Mas como ministra da Saúde, não me faz mossa.

A posição do presidente da República pesou até que ponto, uma vez que estava previsto no guião como proceder em caso de veto?
Se posso garantir que o documento assinalado em “track changes” não foi daqui para o Bloco de Esquerda, igualmente digo que o documento sobre o veto não foi aqui produzido.

Que consequências pode este choque na “geringonça” gerar no futuro?
Espero que este episódio, que não está concluído, tenha um fim que permita reafirmar esta solução governativa.

Foi o Bloco quem trouxe agora a discussão sobre a nova Lei de Bases. Que tem a dizer sobre o timing?
A oportunidade política desta discussão não terá sido a melhor. Desejavelmente, esta discussão deveria ter acontecido no início de uma legislatura, não no momento em que nos encaminhamos para o fim, quando é mais difícil encontrar consensos e mais fácil explorar divergências. Mas os momentos são o que são e não podemos fugir-lhes. Dito isto, o Governo e o PS têm ideias muito claras sobre aquilo que é e deve ser o setor da saúde. Tem uma identidade no seu ADN.

Sobre PPP, a opinião é volátil e o ADN muito dividido.
O Partido Socialista também é essa pluralidade, essa diversidade de opiniões, dentro de uma matriz de esquerda.

A crise provocada por António Costa na sequência da aprovação na Comissão de Educação da contagem integral do tempo de serviço dos professores fez sentido?
Essa é uma questão que tem sido respondida pelo senhor primeiro-ministro.

Que espera da negociação final? Haveria margem para o PS anular o recuo?
Espero que isso não aconteça porque não corresponderia à identidade do Partido Socialista. E este Governo, antes de tudo o mais, tem de respeitar a matriz identitária do principal partido que o suporta. Independentemente das várias sensibilidades que há no PS.

Qual é a sua, apesar de independente?
É evidente que estou numa linha mais à esquerda – aliás, esquerdista é subtítulo que não me ofende – mas não de proibição das PPP. Não podemos pensar que uma lei nos defende. O que nos defende é o combate político diário. Não baixar a guarda, permanecer atento. Uma lei que diga “são proibidas as PPP” é tão fácil de revogar quanto uma lei que diga o seu contrário. Uma lei de bases tem de permitir alguma amplitude governativa, independentemente de ser veemente quanto aos princípios. Esta lei de bases, a que neste momento está como proposta de lei do Governo, é totalmente diferente da lei que temos e vale a pena dizer aos portugueses aquilo que lhes interessa: taxas moderadoras, acesso, profissionais de saúde em dedicação plena. Os partidos à esquerda querem prescindir disso?

O SNS foi pensado e assenta em três pilares: equidade, solidariedade e dignidade. Em consciência, consegue dizer que há dignidade?
É um dos aspetos em que temos de trabalhar. Durante muitos anos, preocupámo-nos muito com a qualidade técnica e não há dúvida de que os atendimentos do SNS a garantem. Mas, em termos hoteleiros, de amenidades, de conforto, de privacidade, há um grande caminho a fazer.

As listas de espera são também uma indignidade.
Sem dúvida.

Por que razão não estão já resolvidas? Prometeu o fim das listas de espera com mais de um ano, até ao final do ano. Mas só tem quatro meses.
Pois, eu sei. É uma preocupação, mas estamos a trabalhar com os hospitais, com os secretários de Estado, sobre esse tema. Conto cumprir até ao fim do ano. Se conseguirmos cumprir em quatro meses, tanto melhor. Estamos a falar de listas de espera para consulta com mais de um ano e num SNS que faz qualquer coisa como 13 milhões de consultas hospitalares/ano. Não sei se os portugueses têm a noção de quantas consultas há com mais de um ano? Cerca de 99 mil. Ou seja, é possível com algum esforço de organização e de empenho chamar estes utentes. Há um outro objetivo que visa as sete especialidades onde há maiores problemas e aí a solução é de médio prazo.

Qual é o plano de ação?
Num caso estamos a falar de cem mil consultas, cem mil pessoas, rostos, homens, mulheres e crianças, que estão identificados e que é preciso contactar e dar resposta. Os hospitais já têm neste momento um plano e estamos agora na chamada desses doentes. Não podemos aceitar que este objetivo, que já de si é inferior ao da lei, não seja atingido.

Há a ideia de que morrem doentes em lista de espera a quem uma consulta e um diagnóstico atempados poderiam salvar. É assim?
Diria que não, por uma razão muito simples. As situações de urgência não vão para lista de espera. Que os portugueses percebam isto de uma vez por todas: não há lista de espera para situações urgentes. Isso não evita que seja desejável dar resposta mais rápida e que a evolução do estado de saúde das pessoas pudesse ser outra se o tratamento fosse mais célere. É isso que estamos preocupados em garantir.

O relatório de um grupo técnico independente criado pelo governo conclui que a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) “limpou” doentes das listas de espera para consultas, colocando-a sob suspeita.
Sobre isso, apetece-me ironizar, mas como estou proibida de o fazer pergunto apenas se as pessoas acham mesmo que é chegar ali ao botão de um computador e carregar? Não, não se eliminam listas assim. Ainda sou do tempo em que as listas de espera eram papéis nos bolsos das batas dos profissionais de saúde. E não foi há muito tempo – no início deste século ainda era assim. Seguiu-se um trabalho de informatização das listas, que não se faz tão rapidamente quando gostaríamos. Infelizmente, o que nós temos – e apetece-me gritá-lo – é um problema nos sistemas de informação, concretamente na área da saúde. É algo que se arrasta há demasiado tempo.

A acusação de adulteração das listas foi a mais dura?
Ofendeu muito. Muito mesmo. Ofendeu-me na altura em que saiu o relatório do Tribunal de Contas e ofendeu agora, que a questão foi de novo levantada.

Como reage nessas alturas?
Choro. Depois passa.

O objetivo anunciado pelo Governo de atribuir a cada português um médico de família não foi atingido. Porquê?
Ainda não está atingido, mas vamos ver em que é que ficamos no final da legislatura. Porquê? Temos cerca de 600 mil portugueses, quase 700 mil portugueses, sem médico de família atribuído (dados de abril), número inferior ao de 2015 – tínhamos mais de um milhão de portugueses sem médico de família -, ainda assim abaixo do objetivo. Porém, estamos neste momento a preparar o concurso para colocação dos recém-especialistas da primeira época de 2019. A esse concurso irão apresentar-se expectavelmente perto de 400 especialistas de medicina geral e familiar. Se conseguirmos que todos eles fiquem no SNS, ficaríamos mais próximos do nosso objetivo. Durante os meses de maio e junho, a luta é a de oferecer a estes jovens um projeto suficientemente aliciante que os leve a escolher o SNS.

Que explicação encontra para o facto de estar a aumentar a taxa de médicos que opta por sair do serviço público? Como se combate a tendência?
Com soluções mais duras ou mais soft. Defendo as mais soft e, por isso, estamos neste momento a tratar desse processo com as ARS. Fazendo uma identificação rigorosa das necessidades de colocação de especialistas de medicina geral e familiar e promovendo um contacto cara a cara com esses jovens, falando-lhes do projeto, esclarecendo-lhes todas as dúvidas.

Oferecendo-lhes melhores remunerações?
Também. Mas, na medicina geral e familiar, a questão é também de geografia. A mobilidade determina as escolhas. E, por isso, o concurso para medicina geral e familiar é antecedido de um concurso de mobilidade dentro do sistema. Que as pessoas se mobilizem dentro do sistema deve ser a lógica. A realização do concurso num tempo muito curto após a realização do internato é outro sinal que queremos dar. A orientação dada às ARS para o contacto o mais próximo possível com os jovens no sentido de os esclarecer é uma terceira estratégia. E a quarta passa pelo reforço de meios em locais em que são frágeis. O nosso sucesso ou insucesso irá medir-se no dia seguinte à escolha de lugares. O concurso abre a 16 deste mês.

Em caso de insucesso defende medidas mais duras, ou seja, a vinculação a um período de permanência?
Não é linha que defenda. Espero que não venha a ser necessária.

Tem médico de família?
Tinha. Deixei de ter quando mudei de área de residência, de Coimbra para Lisboa.

Usa o SNS ou os privados?
Pessoalmente, o SNS.

Que experiência tem do SNS?
Tenho a experiência de todos os portugueses: as listas de espera.

Já como ministra, usou o SNS?
Com um familiar e foi uma experiência muito boa. Estávamos no pico da greve cirúrgica e a determinado momento os senhores enfermeiros reconheceram-me. E brincaram: “Não se preocupe que não lhe fazemos mal, mas tem sido muito má para nós.”

Tem seguro de saúde?
Não tenho. Assim como não tenho nenhum subsistema de saúde. Tenho o SNS.

O peso político dos ministros é fundamental para negociar verbas orçamentais?
O peso político na discussão do orçamento da saúde deve ser perguntado ao anterior titular da pasta.

Como comenta a ministra da Saúde os 4,8% do PIB atribuídos em orçamento ao SNS, o mais baixo de toda a Europa ocidental?
A discussão do orçamento estava feita, foi feita por outro titular da pasta. Sobre isso, no entanto, até porque a minha atividade profissional original é de administrador hospitalar, digo que o problema tem dois lados: de acordo com vários estudos, todos os sistemas de saúde irão precisar de mais meios, lado da equação incontornável mas que entronca no outro – a boa gestão. Não posso limitar-me a dizer que são necessários mais meios sem acrescentar a necessidade de gerir melhor os que temos. Caso contrário a reivindicação é coxa.

Que relação tem com o ministro das Finanças?
Excelente.

E com António Costa?
Muito boa. Aliás, tenho recebido da maioria dos meus colegas de Governo muita ajuda, até em coisas muito simples, procedimentais. Em Conselho de Ministros encontrei uma disponibilidade total. E um espaço que não está fechado ao sentido de humor.

Como vê a polémica à volta das ligações familiares no Governo?
Não comento.

E como reagem os outros ministros a gafes e a frases polémicas que já proferiu?
Não senti nenhum juízo negativo, mas tenho perceção de que são erros comunicacionais que penalizam.

Qual é o conselho das assessoras que mais ouve?
“Disciplina-te.” Que evite frases comuns. Que seja mais política. “Mas vamos dizer isso?” é uma pergunta que oiço várias vezes à minha chefe de gabinete. As pessoas acham que às vezes corro demasiados riscos.

Quais foram os maiores?
A requisição civil. A sindicância. Não aceitar determinados conselhos dados telefonicamente.

Por quem?
Por pessoas variadíssimas, atores.

Ameaças?
Avisos.

Como reage?
Mal. A primeira reação é de fúria. Depois, tendo a ter alguma tolerância com o meu interlocutor. (ri)

Sei que lhe custa abdicar da ironia.
A ironia passa mal. Infelizmente, porque é uma forma de tornar as coisas menos pesadas. Não quer dizer que sejam menos sérias, importantes ou graves. Mas menos pesadas. A vida é muitas vezes irónica e não renego nenhuma parte da vida.

É uma ironia ocupar hoje o lugar de Adalberto Campos Fernandes? E por que motivo não foi reconduzida no cargo de ACSS pelo anterior ministro?
Está a deduzir que a não recondução foi uma opção do anterior titular do cargo. Pois não foi. Fui eu que não quis ser reconduzida.

Gosta de ser ministra?
Sempre trabalhei no setor da saúde. Olho para esta experiência e para este trabalho por esse prisma. É um trabalho com condicionantes às quais não estava habituada, mas é um trabalho. Se houver o entendimento para ser continuado por estes atores muito bem, se não, a 7 de outubro, volto com grande tranquilidade à minha vida profissional, ao meu hospital (IPO Porto), para trabalhar com colegas médicos, enfermeiros, administradores hospitalares. Voltar ao meu lugar de soldado é muito bom e muito pedagógico.

Como acha que vai ser tratada?
Custa-me que as pessoas não estejam preparadas para nos tratarem de uma forma normal. Eu farei com o mesmo empenho qualquer tarefa que me venha a ser confiada.

Gostava de continuar no cargo?
Nestes cargos não há desejos, caprichos, vontades pessoais. Há, sim, um dever muito sério de serviço. No final da passagem por esta pasta, gostaria muito de poder entregar ao senhor primeiro-ministro um mapa com os objetivos identificados que foram, ou não, atingidos.

A filiação no PS é uma possibilidade?
Pensei nisso várias vezes em momentos anteriores a esta minha incursão, mas estou muito bem na minha pele de independente. Independência que poderá ser uma vantagem para todos.

Está disponível para fazer campanha pelo PS.
Naturalmente. Pelo PS e por esta Lei de Bases do grupo parlamentar do PS. Foi aquela que esta ministra levou para Conselho de Ministros e foi a que saiu de Conselho de Ministros. Muitas histórias que se contam não são reais. Passaram algumas mulheres por este cargo.

Tenho hoje a perceção que há algum preconceito relativamente as mulheres na política. Já sentiu?
Somos mais visadas. Um homem mais objetivo nos comentários é assertivo. Uma mulher corre o risco de ser considerada malcriada ou histérica. Esse preconceito, esse juízo subliminar existe e sinto-o. Nasci em 1974, cresci com pais que dividiam funções simetricamente e, portanto, essa questão nunca foi tema. Até sentir na pele a discriminação. Hoje, sei muito bem que ainda existe.

Foi nomeada ministra da Saúde em 2018. Um cargo pesado, que mexe diretamente com a vida das pessoas. Que angústias leva para casa?
A maior frustração é perceber que há muitos conflitos de interesse no setor que não são claros para a opinião pública, que é quem nos avalia e julga; para a comunicação social, que é quem escreve sobre nós; para os comentadores, que nem sempre têm os dados todos para poderem fazer uma avaliação profunda. A maior gratificação é andar na rua. Porque as pessoas têm reações muito positivas, mesmo quando as notícias vão sendo menos positivas.

Anda muito na rua?
Ando muito de metro, vou ao supermercado ao fim de semana. Sabe qual é a palavra que mais ouço? “Aguente.”

Como reagiu a família ao convite?
Dizer a alguém nosso familiar para aceitar um cargo público é assumir um grande sofrimento. Se é certo que há muitas pessoas que passam pelos lugares de forma mais levezinha, há outras – e creio que a minha família me conhece – que não passam de forma levezinha pelos cargos. Na família não houve entusiasmos. Pelo contrário, houve grande preocupação.

Tem uma irmã bastante mais nova que é médica.
Os familiares que trabalham nos mesmos setores sofrem imenso. Mas, se eu sou dura, a minha irmã também é. Não me poupa à crítica.

A maior crítica que lhe fez?
“Tu não ouviste, eu avisei-te.”

O ar resoluto corresponde à realidade?
Gosto de ouvir e ouço sempre. Mas, sim, penso que sou resoluta. Só uma coisa me faz titubear – a sensação de que posso não estar a ser justa, numa ou noutra situação. A sensação de que, neste ou naquele momento, o trabalho e a dedicação de alguma instituição não estão a ser devidamente valorizados causa-me insónia.

Tem momentos de insegurança?
Tenho bastante autocrítica e humildade. Raramente acho que uma coisa está suficientemente bem feita. É penalizador para mim e para os que trabalham comigo.

Dura, resoluta, que imagem julga que os portugueses têm de si?
Acho que me consideram simpática e teimosa. E não tenho a certeza de que não estejam certos.

“Pespineta”, dizem?
Sim, é verdade. Reconheço. Sou mesmo. Desde miúda. Tem a ver com a teimosia. Não tenho a preocupação de ter uma imagem construída. Acho que sou afável, empática, gosto das pessoas, mas não suporto que me pisem os calos.

O Ministério tem estado debaixo de fogo. Desde logo pela sindicância à Ordem dos Enfermeiros. Acha que pode ser vista como vingança, instinto menos democrático?
Pode haver algum interesse em construir essa ficção, mas não me parece que alguém pense que uma instituição de um Estado de direito democrático se mova por instintos persecutórios ou de vingança. A sindicância faz sentido. Os portugueses têm pouca memória e esse é um problema. Não podemos esquecer que, no início deste ano, tivemos um conjunto de circunstâncias que levou a uma greve cirúrgica apoiada, salvo melhor opinião, por uma associação pública profissional. Ora, a intervenção das instituições públicas profissionais em matérias sindicais e de regulação económica de área profissional é interdita. E, portanto, sendo certo que o Ministério da Saúde tem uma obrigação de tutela administrativa sobre as ordens profissionais setoriais, como podia não cumprir o dever de intervenção? A minha perplexidade é essa.

Dos encontros que tiveram, com que impressão ficou da bastonária?
(sorri enquanto pondera a resposta) A de uma pessoa muito empenhada na defesa daquilo em que acredita, veemente, com grande capacidade de mobilização social.

Com a Ordem dos Médicos a relação também não é a melhor. Estão por cumprir várias promessas.
O senhor bastonário gostaria que o Ministério da Saúde avançasse mais rapidamente com um conjunto de matérias e eu compreendo a expectativa dos médicos relativamente ao seu enquadramento, nomeadamente ao ato médico. Mas, porque são matérias algumas delas bastante sensíveis, não podemos precipitar-nos na sua definição. Diria até que se corrermos numa pista nova sozinhos há o risco de ficarmos isolados. O diploma ainda não está fechado e estou convencida de que reuniões futuras aclararão as más interpretações.

Começou por tirar Direito.
Por alguma influência familiar – o meu pai era magistrado, tenho alguns familiares na área da magistratura -, e porque a noção de Direito, do que está certo, de verticalidade e de justiça atraem-me. Uma certa exigência pessoal que depois se transporta para os outros. Se calhar, um bocadinho daquela dureza que alguns me assacam.

Nasceu em Coimbra, a 2 de março de 1974. Cresceu em várias terras. Fale-me dessa miúda.
Vivi em vários sítios e por força das profissões dos meus pais – o meu pai era delegado do Ministério Público e a minha mãe professora. Andei por todo o país. Até aos 12 anos, vivi em Viseu, em Castelo Branco, em Évora. Essa foi uma enorme vantagem. A minha escola primária, uma escola pública em Castelo Branco, era muito modesta, as casas de banho ainda eram de buraco no chão, o lanche na escola ainda era para muitos meninos uma refeição. Uma menina que cresceu numa cultura de esquerda, rodeada de adultos porque sou a mais velha.

Sonhadora e perdida em fantasias, dizem.
Sempre fui. E tímida. E ainda sou, apesar de ser daquele tipo de pessoas que, estando na paragem de autocarro, em menos de um bocadinho estão a falar com a pessoa do lado.

Quando percebe que Direito não a fazia feliz?
O Direito enquanto advocacia, no estágio, que iniciei no escritório de António Arnaut. Aí, nunca seria feliz. Porém, gostava de ser representante do Ministério Público. A defesa dos interesses do Estado, não querendo ser imodesta, está nos meus genes familiares. Mas aconteceu que fui-me apaixonando pela administração hospitalar.

O que lhe tirou este cargo?
Privacidade, e muita. Embora vá muitas vezes para casa a pé. Gosto muito, sobretudo no verão. Sem motorista e sem seguranças. De resto, não tenho segurança, nem nunca tal me passou pela cabeça.

Dorme pouco?
Preciso de dormir muito. Aos fins de semana faço curas de sono. Curas de sono, vou ao teatro, dou passeios a pé.

O que a relaxa?
Pôr uns óculos de sol que blindem um bocadinho e andar pela cidade. Mas mesmo assim reconhecem-me. As pessoas falam e com simpatia. Dão conselhos. A propósito da Lei de Bases da Saúde, uma senhora disse-me o seguinte esta semana: “Olhe, não estamos a perceber nada do que estão a discutir, façam uma mensagem mais simples”. São bons conselhos. Relaxa-me ler, ir ao teatro, ouvir música muito alto.

Que música escolhe?
Depende do estado de humor e as variações são muito grandes. Quando estou muito irritada, costumo ouvir o hino da CGTP Intersindical. Cá está, esta é daquelas que não devia dizer, mas é a verdade.