Texto de Cláudia Pinto
Apesar de nunca ter tido um cancro, Lucas Costa já foi submetido a tratamentos de quimioterapia. Com seis anos, na sua curta história de vida conta também com dois transplantes de medula.
“O meu filho fez um rastreio genético em pequeno e foi-lhe detetada uma doença rara autoimune”, conta Arlene Silva, a mãe, com 47 anos. A patologia chama-se granulomatosa crónica e não tem dado descanso à família, que vive há mais de ano e meio na Associação Acreditar, do Porto, para que Lucas possa estar perto do hospital onde é tratado, o Instituto Português de Oncologia (IPO) da Invicta.
No pós-operatório do primeiro transplante, realizado em fevereiro do ano passado, “a medula deixou de funcionar” e Lucas teve de ser submetido a um novo transplante em novembro. “Está a recuperar aos poucos, vivemos um dia de cada vez.” Arlene ficou apreensiva quando percebeu que o filho tinha de ser submetido a quimioterapia na preparação de cada transplante em regime de internamento.
“No início foi muito assustador porque eu desconhecia a doença e os procedimentos”, explica a mãe, enquanto relata que já estão “a meio da caminhada”. Tudo dito entre um suspiro, num misto de cansaço e desejo de ver o filho bem, ele que nunca teve uma infância normal nem foi saudável.
A utilização de quimioterapia fora do contexto de oncologia é um procedimento antigo. “Sabemos que as doenças autoimunes são muito sensíveis a alguns medicamentos de quimioterapia. Mesmo em doses baixas e com pouca toxicidade, conseguimos ter um efeito destruidor de linfócitos que é importante em termos de regulação do sistema imunitário”, revela o médico hematologista do IPO de Lisboa, Nuno Miranda. “Apesar de esta não ser habitualmente a primeira opção, em casos muito graves de algumas doenças – como lúpus ou artrite reumatoide – a quimioterapia acaba por ser um procedimento absolutamente banal.”
Dependendo das doenças, os fármacos “podem não ser tratamentos de primeira linha. Em alguns casos, pode ser preciso esgotar outras alternativas e reservar a quimioterapia para quando a situação se torna mais difícil de tratar”, partilha Rui Alves, médico nefrologista do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC). O objetivo é então muito mais seletivo. “Conhece-se hoje em dia, relativamente bem, toda a cascata de resposta inflamatória, e os mecanismos imunológicos onde esses fármacos/agentes biológicos são direcionados, atuando especificamente naquela molécula X causadora da doença.”
Na área de nefrologia, os fármacos de quimioterapia podem ser usados, por exemplo, no “transplante renal, e em certas doenças glomerulares”. Nesta área, “os agentes biológicos, graças à sua ação nos locais alvo, têm proporcionado excelentes resultados com menos efeitos adversos”, acrescenta Rui Alves.
Uma espécie de “reset” do sistema imunitário
O autotransplante de medula, no caso de doenças que atacam o sistema imunitário do organismo do doente, é realizado com “uma dose de quimioterapia muito alta pois queremos fazer uma espécie de ‘reset’ ao sistema imune do doente”, prossegue Nuno Miranda.
Assim acontece em doenças como a esclerose múltipla, ou do foro da reumatologia, como a esclerose sistémica. “Primeiro, colhemos medula, colocamo-la fora do organismo e congelamo-la. Internamos o doente na nossa unidade com uma dose muito alta de quimioterapia, e depois devolvemos-lhe a medula que ficou guardada fora do organismo e que não foi atacada por fármacos, para que ele possa refazê-la”, pormenoriza o médico hematologista.
No caso de doenças congénitas, hereditárias, de imunodeficiências, ou quando, por algum motivo, a medula deixou de funcionar, o transplante será realizado com um dador. “A variedade de doenças em que se pode usar quimioterapia é muito grande, e por vezes nem são doenças de medula.”
Um dos casos mais frequentes é a aplasia medular e o objetivo do transplante é sempre curativo. “A ideia é que os doentes tenham uma vida absolutamente normal, embora nunca tenham alta hospitalar, pois terão de ser sempre vigiados”, sublinha Nuno Miranda. O doente transplantado há mais tempo na Unidade de Transplante de Medula do IPO de Lisboa, em 1987, tinha quatro anos, foi diagnosticado com uma aplasia medular e continua a ter uma vida sem problemas. Os IPO do país estão, assim, em articulação com outros hospitais e centros de referência para tratar outro tipo de doenças, como as referidas, e que não são oncológicas.
Uma esperança ao fundo do túnel
Noutras patologias, o objetivo da quimioterapia passa por retardar a progressão da enfermidade, melhorar a sintomatologia e tornar os doentes mais independentes e autónomos. “Existem efetivamente manifestações de doenças sistémicas, como a nefrite do lúpus ou a trombocitopenia imune, que são tratadas com medicamentos também usados em quimioterapia. Os exemplos são a ciclofosfamida e o rituximab. No entanto, as doses usadas e os esquemas de tratamento são menos intensivos e não têm os efeitos laterais da quimioterapia”, esclarece António Marinho, internista e coordenador do Núcleo de Estudos de Doenças Autoimunes da Sociedade Portuguesa da Medicina Interna.
E como é a reação dos doentes perante esta possibilidade? O médico internista diz que é feita uma introdução ao tema, sendo fornecido material explicativo e salvaguardando que, dependendo das patologias, “é muito improvável que venham a ter o mesmo sofrimento do que os doentes oncológicos. A maioria dos doentes não tem efeitos laterais e melhora muito o seu estado clínico”.
Rui Alves refere que estes fármacos representam, para alguns, “uma esperança ao fundo do túnel” enquanto alternativa. A mesma a que se agarra Arlene Silva enquanto acompanha Lucas a quilómetros de distância das duas filhas mais velhas, que podem visitar e passar algumas temporadas na Acreditar do Porto, mas que continuam a morar na casa da família, em Viseu. “Temos uma vida dividida desde que a doença do Lucas foi diagnosticada”, partilha. Apesar do cansaço, não perde a fé. “Sei que a taxa de sucesso é grande e confio que tudo vai acabar bem.”
Um mito tóxico
É errado pensar-se num só tipo de quimioterapia. “São demasiados medicamentos para ter uma única visão sobre eles”, concretiza o médico hematologista Nuno Miranda. “Não é correto associar quimioterapia a um sinal de muita toxicidade e com muitos efeitos secundários porque não é verdade que assim seja. Em muitos casos, há medicamentos usados há muitos anos, bem tolerados e que melhoram a qualidade de vida das pessoas.”
Há largas dezenas de doenças que podem ser tratadas com estes fármacos. O objetivo varia entre a cura e a melhoria sintomática. Por esse motivo, o médico desaconselha a crença em ideias preconcebidas, pois não se trata de uma só terapia. “Preocupamo-nos e tentamos escolher, dentro das nossas possibilidades, tratamentos que tenham menos efeitos secundários, a prazo.” O facto de os doentes serem vigiados ao longo do tempo permite que os médicos aprendam com cada caso e percebam a toxicidade dos fármacos utilizados há 20, 30 anos. “Esta experiência é fundamental para melhorar a prática clínica”, defende.
Rui Alves, do CHUC, nota que, globalmente falando, a experiência com a quimioterapia tem cerca de 80 anos, e no que respeita a medicamentos biológicos, o conhecimento tem uma década. “Ainda estamos a tentar perceber melhor o alcance da sua eficácia, e dos seus eventuais efeitos colaterais a longo prazo. É sempre uma experiência que se constrói ao longo do tempo.”