Fernanda Sesifredo e Celeste Fé têm esclerose múltipla e não abafaram o sonho da maternidade apesar de todas as contraindicações. É uma doença degenerativa e imprevisível, que progride mas não mata. Entretanto, a ciência pula e avança.
Aos 21 anos, Fernanda Sesifredo foi mãe pela primeira vez. Sofia nasceu e poucos meses depois um mau sinal. Fernanda acordou com uma paralisia facial, boca ao lado, fora de sítio, os médicos a falarem-lhe numa depressão.
Não fazia sentido. “Estava bem, não me sentia ansiosa, sabia que o diagnóstico estava errado.” Nem sequer tocou nos comprimidos. Algum tempo depois, o braço direito perdeu força, fez exames, foram detetadas alterações neurológicas. Ou era um tumor na cabeça ou esclerose múltipla. Tinha um medo terrível da primeira possibilidade, da segunda não fazia a mínima ideia o que era.
Confirmou-se a segunda e o choque quando o médico abriu o jogo. “Percebi que tinha uma doença grave, degenerativa, de evolução muito imprevisível, que podia agravar-se de um dia para o outro”, lembra. Trabalhava na Câmara de Redondo, no Alentejo, no gabinete de comunicação, tratava do site, da agenda cultural, da divulgação para a comunicação social, era escritora.
O cansaço tomou-lhe conta do corpo, as pernas perderam força, chegou a estar um ano sem andar, a parte cognitiva relacionada com os números ficou comprometida, a bengala tornou-se uma companhia permanente. Em 2010 deixou o emprego. “Tive de reaprender a viver. É uma vida muito reservada ao lar, ao meu espaço. Mas tenho de aproveitar, tirar partido da vida, fazendo coisas que me dão prazer fazer, sobretudo a escrita.” A escrita, o seu grande amor.
“Tive de reaprender a viver”
Fernanda Sesifredo
doente com esclerose múltipla
Pelo meio de tudo isto, quis voltar a ser mãe apesar dos avisos de que a doença podia agravar-se. Carlota nasceu em 2001. Os noves meses não foram tranquilos. “Não foi uma gravidez da qual desfrutei, estava ansiosa para que o momento acontecesse para saber o que vinha a seguir”, recorda Fernanda, hoje com 45 anos. Correu tudo bem, mas havia um mau pressentimento em relação à saúde da filha que nunca a largou.
Em abril do ano passado, Carlota estava nos campeonatos nacionais de atletismo no Porto. Na véspera das provas perdeu a sensibilidade na axila, horas depois ficou sem força no braço direito. Não chegou a competir. Hospital de São João, do Porto, para o hospital de Évora, já sem força na perna direita. Exames, internamento, lesões no cérebro, transferida para Lisboa, mais exames e o diagnóstico de esclerose múltipla agressiva.
Deixou de fazer desporto, deixou a dança, cansa-se com muita facilidade, faz tratamentos endovenosos uma vez por mês. Anda no 10.º ano de Humanidades e quer representar. “Sempre sonhei, desde pequena, ser atriz de teatro”, diz Carlota. A doença obrigou-a a refazer a vida e o confronto foi complexo. “Ao início, foi um bocado estranho o que estava a acontecer, ficar doente é estranho. Hoje consigo ter uma vida normal, faço tudo aquilo de que gosto.”
Aprender a dizer esclerose
Aos 24 anos, Celeste Fé, agora com 49, foi mãe de Ana Rita. Quatro anos antes, estava na cama de um hospital com o diagnóstico de esclerose múltipla. Os sintomas da doença confundiram-se até se tornarem claros. Passou a adolescência com a perna direita dormente depois de injeções de penicilina. Aos 15 anos perdeu a mãe e os sinais do organismo misturavam-se com a dor da alma. Aos 20, uma dormência que começou nos pés e subiu até à cintura levou-a ao centro de saúde, daí a uma urgência, daí a um internamento de mês e meio.
Primeiro, negou as evidências, depois reagiu. “Andei dois anos para aprender a dizer esclerose”, revela. De dia pintava louça de Coimbra à mão, estudava de noite para terminar o 12.º ano. Queria ser mãe. A vontade acabou por vencer os avisos médicos. “Queria correr o risco e tive um grande apoio da minha médica de família.” Não foi fácil. “Vivi a minha gravidez debaixo de uma grande pressão na minha cabeça.”
“Andei dois anos para aprender a dizer esclerose”
Celeste Fé
doente com esclerose múltipla
A esclerose podia piorar. Parto com dia e hora marcados e uma equipa de neurologistas a postos. Ana Rita nasceu e Celeste foi atingida por um cansaço extremo que lhe tirou a voz. Mas sempre com a noção de tudo e a confirmação de que um nascimento é um milagre da vida e a melhor sensação do mundo. “A minha filha é a menina dos meus olhos.” Tem 25 anos, é professora de Português e Espanhol, é a sua vida.
A doença não a deixou em paz, teve vários surtos depois do nascimento, tem várias lesões no cérebro e na medula, não aguenta muito tempo em pé, toma banho sentada. Apesar de tudo, e de um cansaço extremo logo que acorda, não é muito dada à cama e ao sofá.
“Ando sem apoio, mas ando muito devagar.” E a ciência tem dificuldade em explicar a sua recuperação. “Pela localização das minhas lesões no cérebro, era para não estar a andar. Dizem-me que as minhas lesões são de ferro.”
Um peso tremendo
Madalena Martins, 58 anos, tem duas filhas, Ana Sofia de 38 anos e Ana Rita de 30. A esclerose é uma condição recente, diagnosticada há pouco mais de um ano, depois de consultas e mais consultas, das dores nas pernas que desconfiava que eram varizes, das quedas sem explicação e de um andar aos esses. “Ia na rua e, de repente, via-me no chão, do nada.” Um peso tremendo na perna esquerda, que lhe travava os passos, levou-a ao hospital e desvendou o seu mal.
Ficou internada na neurologia duas semanas, percebeu que a sua vida ia dar uma volta. “Era muita ativa, muito independente, comecei muito cedo a trabalhar porque não quis estudar, e, de repente, ‘tau’, foi um sopapo.” Ainda voltou à sua tabacaria na baixa de Coimbra, mas já não aguentava muito tempo em pé.
“Era muita ativa, muito independente, comecei muito cedo a trabalhar porque não quis estudar, e, de repente, ‘tau’ foi um sopapo”
Madalena Martins
doente com esclerose múltipla
Este ano, foi a uma junta médica, reformou-se com 70% de incapacidade. Fez fisioterapia para recuperar o caminhar, tem a ajuda de uma bengala, um banco na banheira, almofadas no banco do carro no lugar do passageiro. Tem recuperado, tenta dar um passeio todos os dias, de quatro em quatro semanas passa duas horas no hospital para a medicação injetável. “Nunca pensei que recuperasse tão bem; também tenho força de vontade.” E o apoio total e incondicional das filhas e do marido, Jorge Manuel.
Doença sem padrão
A esclerose múltipla afeta sobretudo mulheres e manifesta-se em idades precoces. É uma doença que confunde o sistema imunitário, que ataca células saudáveis como se fossem intrusas. “Não sabemos muito bem a causa da doença, pensa-se que é o próprio sistema de defesa do corpo que desenvolve uma resposta inflamatória”, refere Carlos Capela, neurologista do Hospital dos Capuchos, em Lisboa.
“A principal angústia de um doente com esclerose múltipla é que a doença não tem um padrão. Ninguém sabe, quando tem o primeiro diagnóstico, como estará daqui a 30 anos, se terá uma vida normal com mais ou menos medicação”, explica Susana Protásio, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM), que tem vários serviços e presta apoio aos doentes. Neste momento, uma das batalhas da SPEM é fazer um registo nacional de doentes, integrado num projeto europeu.
No mês passado, a Merck, a farmacêutica mais antiga do mundo, com 350 anos, foi sponsor de um congresso em Berlim onde juntou especialistas que se dedicam à investigação e ao tratamento da esclerose múltipla. Entre conferências e partilhas de conhecimentos, foi anunciado um novo ensaio clínico para uma medicação que poderá atacar todos os mecanismos da esclerose, divulgado em primeira mão um estudo internacional sobre os cuidadores e exibido, em antestreia mundial, o documentário “Vendo a esclerose múltipla de dentro para fora”, com uma doente da Argentina, um cuidador dos Estados Unidos e um profissional de saúde de Itália. Testemunhos intensos e reais de quem vive e sente a doença que se cruzam em conversas com artistas que personalizaram essas experiências em retratos.
“A principal angústia de um doente com esclerose múltipla é que a doença não tem um padrão. Ninguém sabe, quando tem o primeiro diagnóstico, como estará daqui a 30 ano”
Susana Protásio
vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla
E os cuidadores?
Um estudo que abrangeu mil cuidadores de sete países – Estados Unidos, Itália, França, Alemanha, Reino Unido, Espanha e Canadá – revela que 48% dos cuidadores de doentes de esclerose múltipla assumem esse papel com menos de 35 anos de idade. Há números que mostram o impacto da doença na vida de quem cuida: 43% sentem alterações na saúde mental e emocional, 44% falam em repercussões negativas em planos futuros, 34% garantem que essa situação tem repercussão na sua situação financeira e laboral.
Maria Rivas, vice-presidente dos assuntos médicos da Merck, salientou a importância da comunicação entre profissionais e doentes que, “por vezes, não estão focados nos mesmos aspetos. Um em cada três cuidadores passa 11 anos a cuidar de um doente de esclerose múltipla com os consequentes impactos físicos, emocionais, profissionais e financeiros”.
A Merck, que lançou medicação oral de curta duração para formas reincidentes da doença, permitindo controlá-la durante quatro anos, o que ajuda a planear uma gravidez, prepara um ensaio clínico para uma nova terapêutica. “Será um mecanismo diferente para não destruir células, não debilitar o sistema imunitário, não ter efeitos secundários”, adiantou Andrew Paterson, da farmacêutica.
Durante o congresso, foi montada uma casa para experimentar como é viver com esclerose múltipla: dificuldade em levantar-se do sofá, objetos de cozinha com pesos impensáveis, confusão em decorar informações, problemas de concentração em tarefas de trabalho como responder a emails e atender telefonemas. Uma forma de sentir na pele o que é viver com uma doença que tolhe o corpo e confunde a cabeça.