Rui Cardoso Martins

A besta calma

Ilustração João Vasco Correia

O homem no banco dos réus disse:

– Para já não desejo falar.

A juíza explicou-lhe que a qualquer altura podia levantar o braço e esperar a vez, se quisesse dizer alguma coisa. O tempo passou pela manhã como uma massa de ar pesada, cinzenta, mas o homem não levantou o braço. Ficou sentado a ouvir, num casaco magro. Eu não esperava que um homem tão calmo, de olhos negros e sentimentais, fizesse aquelas coisas. Mas os factos começaram a chegar devagarinho – as palavras por cima da montanha – e caíram-nos em cima como saraivadas de granizo.

Entrou a ex-mulher. A juíza explicou-lhe que podia pedir dispensa, como ex-mulher e mãe do filho do acusado, mas ela disse que queria falar. Na última noite em que viveram juntos, ele estava tão bêbedo que fez um escândalo no prédio, com a mãe dela que vivia por cima, os filhos refugiados noutro andar e o homem a insultá-la, a partir portas e móveis. A ex-mulher, agente de fiscalização, começou o inventário.

– Quando estava alcoolizado, era muito agressivo. Gostava muito de discutir. Qualquer discussão lhe servia, nem que fosse um copo em cima da mesa. Ou alguma atitude do meu filho. Além de me chamar puta, vaca, ameaçava que acabava comigo e com o meu filho mais velho. Chamava-lhe gordo. Dizia que me matava, dizia “eu mato-te, eu acabo contigo, vais desaparecer”.

A procuradora olhava os papéis da acusação.

– “Acabo com tudo e com todos, não prestas para nada.” Também disse isto?

– Era habitual.

– O seu filho presenciou estas situações?

– Sim.

Ela já tinha um filho antes de namorar este homem. Apaixonaram-se, casaram, ela engravidou. Agora precisamos de abrigo:

– Na véspera do meu filho nascer, na madrugada do parto, eu estava em casa em repouso. A dormir. Ou melhor, a esperar, a fingir que dormia, como às vezes fazia. Chegou pela uma da madrugada e foi ter comigo à cama. Acordou-me, começou a querer discutir, começou a insultar a minha mãe. E, quando eu vou à casa de banho, agride-me com três socos de mão fechada.

– Onde, aí no pescoço?

– Sim, e no maxilar. Também houve, quando eu estava grávida, outro episódio. Um empurrão. Ele estava alcoolizado, eu não queria que saísse de casa porque ia beber. Empurrou-me aqui [toca no peito] contra o móvel, caí.

Passou o tempo sobre esta família infeliz.

– Recordo-me de uma estalada na cozinha. O meu filho era pequeno. Não me lembro qual era o motivo. Mas aí agredimo-nos mutuamente, porque ele bateu-me e eu empurrei-o. Várias vezes tive que recorrer a uma vizinha…

– Recorda-se se essa situação das estaladas tinha a ver com os filhos estarem na vizinha?

– Foi exactamente isso.

A segunda parte da tormenta:

– A senhora teve uma doença do foro oncológico?

– Tive um linfoma folicular. É um cancro no sangue. O linfoma pode-se manifestar por glândulas que inflamam, e no meu caso foi no pescoço.

O homem bateu na mulher sabendo da doença, está na acusação. Houve então uma aberta, uma fatia de céu limpo.

– Nós deixámos de viver juntos e depois ele ia lá ver o filho. E eu achei que ele estava melhor e que o meu casamento merecia uma segunda oportunidade. Começámos a namorar novamente.

E ele a beber de novo. O recomeço foi em Setembro de 2017, o fim a 3 de Maio de 2018. Só depois, a bonança.

A juíza marcou a continuação do julgamento. Faltava o relatório de integração social do homem.

O homem que bateu na mulher grávida a poucas horas do parto do filho, que agrediu a mulher doente de cancro, deu a volta à grade de ferro. Ao sair, cumprimentou-a com um suave aceno, quase só um deslizar da omoplata, um fio da sobrancelha. Ela fez o mesmo.

Ele parecia ter vergonha, ela pena.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)