Como sobreviver aos vizinhos

Texto Sofia Teixeira | Ilustrações Sérgio Condeço/WHO

Mário Montez, 43 anos, e Eunice Duarte, 38, moram há cerca de três anos num prédio na zona da Estefânia, em Lisboa. Comércio tradicional e todos os serviços à porta, muitos transportes, jardins, ambiente bairrista e até uma creche para a filha de 20 meses, ao virar da esquina. Podia ser perfeito. Não fossem os vizinhos de cima. Desde que ali moram já chamaram a polícia quatro vezes por causa de ruído fora de horas.

A PSP registou durante o ano de 2016 um total de 4029 ocorrências, a nível nacional, com deslocações de um carro patrulha e agentes ao local, por causa de queixas relativas
a vizinhos barulhentos. A estas juntam-se as 89 registadas pela GNR no mesmo período.
Ocorrem mais nas grandes cidades, onde vive mais gente e há mais prédios: a grande fatia das queixas atendidas pela PSP vem do Porto, com 1489 ocorrências, seguidas das 858 de Lisboa e das 388 de Braga.

«Qualquer cidadão que se sinta incomodado com ruído de vizinhança pode e deve chamar as autoridades policiais» explica o major Bruno Marques, chefe da Divisão de Comunicação e Relações Públicas da GNR.

A nível legal os ruídos de vizinhança têm a sua própria categoria e definição, que não se confunde com os ruídos exteriores, associados a bares ou festas na rua. De acordo com o Decreto-Lei 9/2007, de 17 de janeiro, o ruído de vizinhança está «associado ao uso habitacional e às atividades que lhe são inerentes, produzido diretamente por alguém ou por intermédio de outrem, por coisa à sua guarda ou animal colocado sob a sua responsabilidade, que, pela sua duração, repetição ou intensidade, seja suscetível de afetar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança».

Ou seja: todo o barulho que fazemos dentro de casa, mas que chega a casa dos vizinhos e os incomoda: saltos altos, máquinas a trabalhar, vozes, música, televisão, cães a ladrar. O mesmo diploma é claro no que toca às medidas que podem ser tomadas. «Qualquer cidadão que se sinta incomodado com ruído de vizinhança pode e deve chamar as autoridades policiais» explica o major Bruno Marques, chefe da Divisão de Comunicação e Relações Públicas da GNR.

A ideia de que só de noite é que não se pode fazer barulho é um mito que subsiste, embora a lei faça distinção entre o período noturno e o diurno no que toca à atuação das forças policiais: entre as 7h00 e as 23h00, as autoridades podem fixar ao produtor do ruído um prazo para fazer cessar a incomodidade; das 23h00 às 07h00, ordenar a extinção imediata do ruído. «Ao não cumprir a ordem emitida pela autoridade policial, o produtor de ruído incorre numa contraordenação, sendo que para ser constatada, a autoridade policial necessita de voltar uma segunda vez ao local e constatar que o ruído permanece», explica o major da GNR.

Investigadores do Grantham Research Institute on Climate Change and the Environment, sediado em Londres, analisaram o impacte do ruído de vizinhança e perceberam que as consequências são mais nocivas do que os barulhos da rua.

Incomodidade é a palavra usada na lei, mas os danos provocados pelo ruído vão além de um mero incómodo. Sofia Lima, jurista da Deco, refere que tipicamente os ruídos estão associados a televisores ou aparelhos de som com volume alto, crianças a correr fora de horas e cães a ladrar. A associação de defesa do consumidor recebeu, até maio deste ano, 133 contactos com este tipo de queixas e um total de 626 durante o ano de 2016. «Quando o barulho é persistente, estão em causa os direitos de personalidade que abrangem, entre outros, o direito ao repouso, ao descanso e ao sono que, quando não são respeitados, colocam em causa a saúde dos afetados.»

O impacte do ruído de indústrias, aviação e trânsito rodoviário tem sido amplamente estudado, mas o do ruído doméstico nem tanto. No entanto, investigadores do Grantham Research Institute on Climate Change and the Environment, sediado em Londres, analisaram o impacte do ruído de vizinhança e perceberam que as consequências são mais nocivas do que os barulhos da rua. O estudo foi conduzido entre 2007 e 2013, acompanhando cinco mil adultos nos Países Baixos, e a autora ficou surpreendida com as fortes ligações entre o barulho de vizinhança e problemas de saúde a nível cardiovascular, doenças articulares e ósseas e dor de cabeça.

«Bum, bum, bum», entoa Mário. «A vizinha anterior parecia o Hulk a andar. Passava a noite a pé de um lado para o outro, arrastava móveis, fazia limpezas à meia-noite, punha a máquina a lavar com a centrifugação às duas da manhã.» Quando se foi embora e chegaram os novos vizinhos, um casal na casa dos 30 anos, Mário e Eunice tiveram esperança de ter mais sorte, mas não foi o caso: dão jantares e festas em casa que, com frequência, se prolongam até muito tarde.

A situação não começa e acaba na polícia. Idealmente, defende o comissário, deve começar numa conversa civilizada entre vizinhos, para tentar resolver o problema sem a intervenção das autoridades.

O casal começou por tocar à porta dos novos vizinhos nos dias seguintes para explicar o incómodo da noite anterior e pedir delicadamente que procurassem ter mais cuidado. Mas sem sucesso. «Negavam sempre e diziam que não tinham feito barulho nenhum», diz Eunice. Numa ocasião, numa sexta-feira «deram um jantar até às duas ou três da manhã: saltos altos, cadeiras a arrastar, algazarra. Custou, mas deixámos estar. Tem de haver tolerância».

Mas a tolerância desapareceu quando, no dia seguinte, sábado, o filme se repetiu. Mais música alta, mais conversa em voz alta. «Ao ponto de acompanharmos as conversas cá em baixo», reforça Mário. Às duas da manhã, depois das clássicas batucadas no teto com o cabo da vassoura, ensonados e maldispostos, acabaram por telefonar para a polícia. Depois de os agentes lhes baterem à porta, a festa acabou, mas ao saírem do prédio muitos dos convivas, claramente desagradados, fizeram mais barulho, desta vez de propósito, batendo com os pés com força nas escadas e falando-lhes alto à porta.

A polícia faz o que pode: se comprovar o ruído, ordena que cesse, mas não pode depois ficar de guarda ao local. Eventualmente pode voltar a deslocar-se se houver nova chamada e, caso comprove que há ruído, preencher um auto de notícia, a dar conta da contraordenação. A participação é enviada às câmaras municipais, que podem optar pela aplicação de uma coima, embora sejam raros os casos em que o fazem a particulares.
«Notamos que, muitas vezes, o ónus fica só na polícia.

Mas esta é uma situação em que estamos um pouco limitados: não podemos entrar em casa das pessoas e muitas vezes quando chegamos ao local o barulho já cessou e nós só podemos registar o que presenciamos. E, embora sejam casos mais raros, há pessoas que nem abrem a porta», diz o comissário Pedro Grilo, do Departamento de Operações da Direção Nacional da PSP.

«O ónus da prova cabe a quem se queixa. Nesta situação, pressupõe a apresentação de um relatório de medição de ruído, feito por uma empresa certificada, como elemento de prova», explica Sofia Lima, da Deco.

A situação não começa e acaba na polícia. Idealmente, defende o comissário, deve começar numa conversa civilizada entre vizinhos, para tentar resolver o problema sem a intervenção das autoridades. Quando esta não basta, há outras opções. «Muitas vezes o reclamante sabe que a polícia não vai conseguir resolver a situação mas interessa-lhe que haja um registo na polícia para depois haver provas para iniciar uma ação nos julgados de paz ou no tribunal», explica o comissário.

Para que um pedido de indemnização possa ter alguma hipótese de ser atendido, há regras mínimas a cumprir. De acordo com a Deco, é necessário provar os danos causados pelo ruído através da apresentação de testemunhas e relatórios médicos. Além disso, para que o ruído seja provado, é necessário um relatório de medição feito por uma empresa certificada. «O ónus da prova cabe a quem alega o facto, neste caso ao vizinho que se queixa. Nesta situação, pressupõe a apresentação de um relatório de medição de ruído, feito por uma empresa certificada, como elemento de prova», explica Sofia Lima, da Deco.

Nos últimos anos, tem havido decisões favoráveis a quem se queixa, tanto nos julgados de paz como nos tribunais. Mas a maioria acaba com factos não provados, seja do ponto de vista do ruído excessivo, seja na sua relação com os danos. Se, por um lado, há o direito ao sossego, por outro, há o direito à utilização da propriedade privada. Se fosse fácil de resolver, esta questão não existiria sequer… Importante, dizem as autoridades, é não deixar de reclamar sempre que se verifica que o sossego e o direito ao descanso estão comprometidos.

TEM UM CÃO QUE LADRA SEM PARAR? EDUQUE-O

Os cães barulhentos em apartamentos estão entre as queixas mais frequentes. O problema costuma manifestar-se na idade adulta do animal, mas tem origem muito cedo. «Os cães só devem ser separados da mãe e da restante ninhada às oito semanas de vida, para que seja respeitado o seu processo de desenvolvimento cognitivo», diz Nuno Coelho, treinador no Centro de Instrução Canina de Benfica, Lisboa. «Quando isso não acontece, em adultos ladram porque estão a sofrer de ansiedade de separação dos donos, de quem se tornam dependentes.» Um animal educado desde cedo não apresenta este problema, mas quando isso acontece, há duas soluções práticas possíveis. Uma delas é a coleira de citronela, com um sensor que dispara borrifadelas de cheiro cada vez que ladra (o cão associa depressa o ladrar ao cheio a perfume, de que não gosta). Outra é deixar a televisão ou a rádio ligados, para que o animal se sinta mais acompanhado.