A Confraria Vermelha, única livraria feminista do país, no Porto, não é apenas o lugar onde se vendem obras escritas por mulheres. É também – e sobretudo – um espaço para se falar e prestar homenagem à literatura no feminino.
«Cada texto é uma ilha.» Esta frase, dita já nos últimos momentos do encontro, é uma bela metáfora para descrever as sessões das Leitoras de Pandora. É final de tarde, numa rua pouco movimentada do Porto, e as participantes começam a chegar.
O ambiente é mais do que informal, é familiar. Aida Suarez, 35 anos, proprietária da Confraria Vermelha, única livraria feminista em Portugal, quer garantir que toda a gente se sente confortável.
Afinal, é ali que vão partilhar opiniões, experiências, ocasionalmente, uma ou outra confissão e, acima de tudo, falar sobre livros. Os livros, sempre os livros. É esta a «paixão (sim, é uma paixão) das mulheres que se juntam todas as últimas quintas-feiras de cada mês neste lugar.
Ter um espaço próprio era um sonho antigo de Aida. Tão antigo quanto aprender a ler. «Acho que quis ter uma livraria desde que recebi o meu primeiro livro», diz. Cresceu numa família de mulheres. Mulheres que liam. Esta foi a primeira grande influência feminista, cimentada, mais tarde, com viagens a Barcelona e Madrid, onde se cruzou com livrarias do género que existiam há mais de quarenta anos.
Porque não abrir também em Portugal? «Não se trata de um aproveitamento da visibilidade que o feminismo tem. Nada disso. Eu queria que a Confraria fosse sobretudo uma livraria que fizesse homenagem a tantas autoras geniais.» É por isso que não se vendem apenas livros sobre temas feministas. Há várias secções de livros escritos por mulheres – história, literatura infantil, sexualidade, filosofia, política, viagens, saúde ou arte – e uma biblioteca para consulta.
Da vontade de Aida à prática foram um par de anos e um crowdfunding para dar o empurrão final. Abriu finalmente as portas em 2015. Na montra, Clarice Lispector, Virginia Wolf, a madrinha da Confraria, ou Florbela Espanca saúdam os transeuntes e convidam a espreitar o interior.
Há molduras das autoras por todo o lado, pequenos objetos com frases retiradas de obras, um gira-discos no fundo da sala com um vinil da Janis Joplin, uma máquina de café e outra de chá, bolachinhas na mesa, que nada se discute de estômago vazio.
Está tudo pronto, o grupo vai ficando completo. Desta vez, cada leitora trouxe um livro que tenha sido marcante. Aida inicia a conversa com a apresentação de duas novidades. Mulheres, de Carol Rossetti, e Las Chicas Son Guerreras, de Irene Civico e Sergio Parra. De mão em mão, folheiam-se páginas, discutem-se ilustrações. A primeira a apresentar o seu livro é Sara Riobom, que não vem só falar de Maria Teresa Horta, vem lê-la. Ao partilhar um excerto sobre o corpo, que está sujeito a várias interpretações, nomeadamente se é de homem ou de mulher, a discussão centra-se na forma como percebemos o nosso corpo. Maria Teresa é uma das mulheres que está nas prateleiras há mais tempo e Aida não pode deixar de recomendar a leitura das Novas Cartas Portuguesas.
Maria João Coelho, que vem pela primeira vez ao Clube, segura o livro A Metáfora do Coração, de Maria Zambrano. «É uma filósofa do coração», é assim que justifica a escolha. Segue-se a pergunta «porque é que as mulheres são punidas por serem emocionais?». «Agir com o coração pode ser uma escolha absolutamente racional», diz Júlia Jardim, de Minas Gerais, Brasil. Parece haver consenso em torno da necessidade de interpretar a emocionalidade como força e não fraqueza.
Marta Reis atravessa o oceano para revisitar Alexandra Lucas Coelho. Vai Brasil é a publicação, as viagens são o mote. A escolha foi simples, livros de viagens fazem parte do crescimento de Marta. «Sempre vi os meus familiares a partir para lugares remotos, sempre li livros sobre o tema. É fascinante viver uma viagem através das palavras de outra pessoa.»
Sara identifica-se, é blogger de viagens, vai sozinha para todo o lado. «É um prazer tão grande, é uma disponibilidade muito maior para tudo o que nos rodeia», garante. Aida, acabada de chegar de viagem, teve a primeira experiência a solo há pouco tempo. «Foi libertador!», confessa. «Sempre que eu digo que vou viajar, não há vez que não oiça a pergunta: Mas vais sozinha porquê?», brinca Sara. Partilham-se momentos, há risada geral sobre uma ida a Moscovo onde vodka foi a única palavra entendida. E a única salvação.
A brasileira Júlia trouxe Harper Lee e o livro Não Matem a Cotovia. Fala-se de infância. O crescimento da personagem, o crescimento de cada uma de nós. «A primeira vez que ela sentiu que todos queriam que ela fosse menos do que ela era foi naescola», diz. O segundo livro, que Harper Lee não queria lançar, é alvo de críticas, como se fosse uma versão não trabalhada do primeiro. «Ela queria ser autora de um grande livro. Uma única obra memorável», defende Aida.
Há uma pausa para tisanas.
As tisanas de Ana Hatherly, autora e amiga de Helena Topa, que traz consigo dois livros visivelmente marcados pelo tempo e pelas releituras. 351 Tisanas e 463 Tisanas, duas obras que juntam textos soltos, sem ligação, entre si. São pequenas infusões de ideias, mantras, resoluções, conselhos. Helena diz que «são parecidos com os haiku japoneses» e escolhe cinco ou seis para ler. Acaba por ler mais. Há sorrisos pela sala, anotam-se finais de frases. Nem toda a gente conhecia, é a surpresa da tarde. «Cada texto destes é uma pequena pintura da natureza.» Novamente, uma metáfora que encaixa no momento.
As autoras mencionadas são descritas como se de amigas se tratasse. Marcaram fases da vida, ajudaram a superar fases menos boas, volta-se a elas sempre que é preciso. É isso a amizade, não é? Mais do que falar de feminismo, falasse da devoção pela literatura.
«A Confraria é um projeto feminista, na sua criação, por termos maioritariamente autoras femininas. Mas os homens são bem-vindos, já tivemos alguns a participar do Clube e a conversa é sempre muito boa», explica a proprietária, de livro na mão.
Falta uma novidade. O Clube de Leitura de Jane Austen, que já foi inclusive adaptado para o cinema, é a escolha. «A Jane merece uma oportunidade, é sempre retratada como uma autora romântica. Mas há um outro lado que nós temos de explorar aqui. Há-de ser uma das próximas autoras!»
A vontade de desconstruir ideias é um dos motes destes encontros. Para além das Leitoras de Pandora, há outras atividades de grupo a acontecer regularmente. Nas tertúlias Ler para Conviver, o objetivo é celebrar o nascimento de uma escritora e discutir a sua obra. E a provar que aqui pode falar-se de tudo, há sessões de leitura agendadas sobre… o Harry Potter.
OUTROS CLUBES DE LEITURA
As Leitoras de Pandora não são o único clube de leitura do Porto. Conversas Para Lê-las é um clube que se junta regularmente para discutir a temática lésbica e livraria Flâneur também tem o seu próprio clube literário. Em Lisboa, o Chá de Letras é um evento que convida os participantes a trazerem não só autores admirados como também textos próprios para discussão. O Instituto Cervantes, em Lisboa, também organiza eventos onde são lidos, na sua grande maioria, autores espanhóis.