Manifesto contra o Pai Natal

Notícias Magazine

A ação de graças. Prazer de dar, sem preocupações sobre o que se vai receber. Pagar adiantado os favores que teremos no futuro. Cerimónia do desperdício, ou potlatch. Todas estas são origens para o Natal – época de troca de presentes e ofertas. São origens boas.

São tradições ancestrais que radicam antropologicamente nas épocas tribais, e por isso mesmo algumas perduraram até aos nossos dias. Todas elas são humanas. Algumas são, até, demasiado humanas – como humana é a superstição, ou achar que se chama a sorte ou desafia o azar de desperdiçar alguma coisa para ter muitas mais.

Em todas elas, os envolvidos são os presentes – os membros da tribo que se dão a ver nas suas fragilidades. Não vem alguém de repente, que chega, à última hora, vestido de vermelho, para nos julgar. Nenhuma delas envolve a figura de um ser do Além – ainda que seja apenas muito parecido com um avô de barbas, puxado por renas.

Serve isto tudo para dizer que já ando a pensar há uns tempos que, no fundo, o Pai Natal serve apenas para dar cabo do espírito natalício no que ele tem de melhor. Que o Natal era lindo se não houvesse Pai Natal. Não falo das várias formas que a figura assume – em ruas e supermercados pelo mundo, vestidinho de vermelho, mais gordo ou mais magro disfarçado, dando balões, fazendo ho ho ho ou posando para selfies e outras fotografias.

Isso tudo é folclore que vive por sobre a ideia basilar do Pai Natal. E essa, a ideia, é a que me incomoda verdadeiramente. E incomoda-me ainda mais que seja a que é dedicada às criancinhas, que são, na maioria dos casos, as que acreditam nessa figura.

A ideia é, sobretudo, paternalista. Envolve o julgamento de uma entidade externa sobre uma conduta – que terá uma sanção ou uma compensação. Enquanto a troca de presentes – posterior, para quem já não acredita nessa figura – implica a reciprocidade de atenção, o carinho ou o amor, a vontade de se dizer que se gosta de alguém, ou mesmo que se pretende agradecer algo, nada disso se passa enquanto existe a troca tutelada por um ser exterior, que simplesmente dá, e cujo juízo se baseia numa avaliação.

Já pensaram na quantidade de erros de educação que estão contidos nos diálogos habituais nesta época? Portaste-te mal? Então não vais receber o que querias no Natal? O que é que pediste ao Pai Natal? E portaste-te bem? Então ele vai trazer-te isso de certeza. Pois é. Passamos o ano inteiro a transmitir às crianças a ideia de que se deve ser bom intrinsecamente, por ser bom, e não com motivos interesseiros.

Explicamos-lhes que devemos partilhar. Tentamos dar um sentido comunitário à existência de seres que vêm egoístas ao mundo e assim continuam até serem confrontados com esse mundo.

Mas, em dezembro, tudo muda. Aliás, para dizer a verdade, em meados de novembro a coisa já começa a complicar-se, com os anúncios de brinquedos e afins que enxameiam os intervalos dos desenhos animados nos canais temáticos. As promoções assolam os supermercados. E o mundo das compras toma conta das crianças, e nem as menos materialistas escapam.

As cartas ao Pai Natal são, muitas vezes, das primeiras que eles escrevem, naquele curto espaço em que eles já sabem escrever mas ainda acreditam nele. No Natal, miúdos fixes passam a recoletores de folhetos de supermercado marcados com etiquetas post-it. No Natal, miúdos que até aí eram desinteressados passam a interesseiros, sempre com o fito no presente que o Pai Natal lhes há de trazer.

Ou seja, o Natal é a pior época do ano para as crianças. Não deixemos que o mesmo aconteça com os adultos.