Entrevista de Sérgio Almeida | Fotografia de Beto Figueiroa
Conseguiria viver sem música?
Acho que não, mas não seria o único. Um mundo sem música seria um local insuportável para qualquer pessoa. A música tem um grande poder, não tenhamos dúvidas acerca disso. Ela reflete o espírito da humanidade.
As preocupações sociais sempre estiveram muito presentes na sua vida. O que prefere ser: uma boa pessoa ou um bom músico?
O mais importante é sermos boas pessoas!
Desde muito jovem foi considerado um prodígio. Essa pressão não retirou o prazer de tocar?
Mesmo em circunstâncias difíceis, tocar música sempre foi um prazer para mim.
Mas não deve ter sido fácil lidar tão jovem com essas expectativas.
Isso para mim nunca foi problema. Por um motivo: nunca me vi como um prodígio. Ainda hoje não me vejo como tal, por muito que digam que o sou. Consigo, isso sim, apontar vários músicos como prodígios.
Então, o papel de «lenda viva» não lhe é confortável?
Como não me acho tal, evito até pensar nisso.
Por falar em prodígios e virtuosismos: perseguir a perfeição pode ser perigoso?
Tudo depende do que estamos a falar. Se nos referirmos à dimensão humana, é um excelente objetivo. Ser uma boa pessoa é o máximo a que podemos aspirar. Já se estivermos a falar da música, tenho as minhas dúvidas… Não que seja mau querermos ser perfeitos. Mas está muito longe do que representa ser boa pessoa.
Para mim, todos os artistas são únicos. Cada qual é diferente e, por isso, não são comparáveis. Não consigo colocar um músico acima de outro.
Não acha que faltam na música atual nomes que atravessem gerações?
O que vejo são músicos empenhados em convocar e homenagear artistas de outras gerações, qualquer que seja o género. Artistas como Kendrick Lamar, cujo produtor, Terrace Martin, é um grande saxofonista de jazz e toca comigo nesta digressão.
Tem boa impressão do Kendrick Lamar?
Absolutamente. Admiro-o bastante. É muito original e tem sempre uma mensagem poderosa.
Trabalhou com alguns dos mais talentosos músicos. Numa escala de genialidade, quem colocaria em primeiro lugar?
Todos [risos].
Mas se tivesse de escolher alguém, quem seria?
Não consigo dizer. Para mim, todos os artistas são únicos. Cada qual é diferente e, por isso, não são comparáveis. Não consigo colocar um músico acima de outro.
Miles Davis foi um dos músicos que mais o influenciou. O que lhe ocorre quando se lembra dele?
Desafio. Inspiração. Escuta. A primeira coisa que reparei quando trabalhei com Miles é que ele conseguia ouvir distintamente cada artista que estava a tocar com ele. Quando estávamos com ele, tocávamos como nunca. Havia um foco.
As parcerias entre artistas nem sempre devem ser fáceis, devido aos egos. Mas, ao longo dos anos, tem feito grandes discos que resultam de duetos. Qual o segredo para contornar esses problemas?
É provável que essa rivalidade exista na música clássica ou na pop, mas no jazz não. Os músicos de jazz não estão habituados a competir uns com os outros. Aprendemos uns com os outros. Claro que é preciso algum ego para subir a um palco e tocar em frente a estranhos. Mas não no sentido de ver os nossos colegas como rivais.
É sobretudo associado ao jazz, mas fez incursões pelo funk, r&b ou até música clássica. Para si não há géneros?
O que o meu coração sente é isso mesmo. Os géneros são compartimentos artificiais que as pessoas utilizam para facilitar a distinção entre os diferentes estilos de música. Mas isso só acontece por conveniência. Não tem que ver com a essência.
Há especialistas que dizem que quem toca jazz é capaz de tocar tudo. Concorda?
Tenho reparado ao longo dos anos na grande facilidade dos músicos de jazz em adaptarem-se a qualquer estilo musical, se as condições assim o justificarem.
O seu concerto em Amarante não será num contexto de um festival de jazz, como da última vez que tocou em Portugal (com Chick Corea, no EDP Cool Jazz, em 2015), mas de um evento artístico generalista. É mais desafiante?
Um concerto é sempre desafiante. E difícil. Qualquer que seja o público. Tentamos sempre ir além do óbvio. Alcançar algo especial e profundo.
A entrada neste concerto vai ser livre. Na sua opinião, o acesso à música devia ser tendencialmente gratuito?
Bem, é preciso que se pague aos músicos. Se os músicos não forem pagos pelo seu trabalho, não haverá muitos músicos [risos]. Os que não querem pagar pela música, esquecem-se que para haver música é preciso que haja músicos. Ora, se ninguém quiser pagar, temos um problema. No seu tempo, o Mozart era pago pela Igreja para compor e dar concertos. Se hoje chegarmos a uma solução que permita que os músicos sejam pagos e as pessoas não paguem, nada tenho a opor.
Seja quem for o eleito, temos que dar o nosso melhor enquanto cidadãos. Não dependo de nenhum presidente para isso.
O jazz ganhou respeitabilidade académica, mas na maioria dos casos não chega às massas. É um género que cristalizou?
A música funciona muito por ciclos, como sabemos. Nas décadas de 20 e 30 do século passado, o jazz era a música popular por excelência. Quando comecei, nos anos 60, transitou dos pequenos clubes para salas de espetáculo. Tornou-se moda ir a concertos. Exercia uma grande atração para um público mais erudito. Agora, acredito que estamos a assistir a um renascimento do jazz. Há muitos jovens músicos que estão a entrar no circuito, o que tem atraído aos concertos também novas gerações de público. É um jazz que muitas vezes resulta da fusão com o hip-hop e a eletrónica. Mas não deixa de ser jazz, mesmo que aqueles que o tocam desconheçam isso.
É budista. Como é que as suas convicções religiosas influenciam o seu trabalho musical?
O budismo ajuda-me a ver a vida de um modo muito mais claro e influencia-me na forma como interajo com as outras pessoas. Ao fazê-lo, também influencia a minha música. É, acima de tudo, uma grande inspiração. Tenho muito mais ideias do que dantes. As ideias, agora, vêm-me de muitos lados, porque a minha vida está a expandir-se. É uma das grandes vantagens de praticarmos budismo. O sentido de expansão mental que adquirimos. Embora esteja a envelhecer, sinto-me cada vez mais novo.
Sente que os artistas têm uma responsabilidade social acrescida?
Com a atenção pública que muitas vezes têm, os artistas devem encorajar as pessoas a aproximarem-se mais. É importante que saibamos expressar essa capacidade, desde que seja de uma forma respeitosa.
Tem-se envolvido em vários projetos de cariz social. Há algum de que se orgulhe em particular?
É com grande honra que sou Embaixador da Boa Vontade da UNESCO. Uma das minhas tarefas é promover o Dia do Jazz. A edição deste ano foi em Havana, Cuba. Sinto que de ano para ano superamos as expectativas. Tem crescido de forma espantosa e neste momento já é o maior evento promovido pela UNESCO ou ONU.
A sua fé no povo norte-americano sofreu um rombo com a eleição de Donald Trump?
Os norte-americanos votaram nesse sentido. Qualquer que seja o eleito, temos que nos certificar de que damos o nosso melhor enquanto cidadãos. Não apenas para o desenvolvimento dos Estados Unidos, mas para que a humanidade progrida e se aproxime. Não dependo de nenhum presidente para isso. A minha responsabilidade é dar o melhor. Sempre.
Foi um grande entusiasta de Barack Obama. Qual o seu maior legado?
Ele fez tanta coisa! Pela primeira vez na história, os Estados Unidos tiveram um sistema universal de saúde. Não era perfeito e ele sabia-o. Mas esperava que fosse aperfeiçoado com os anos, o que, infelizmente, não está a acontecer. Não sei quando ou como, mas estou certo de que no futuro esse modelo, devidamente melhorado, pode vir a ser de novo colocado em prática, mesmo que os créditos não sejam atribuídos a Obama. Outro grande mérito da sua presidência foi o reconhecimento da igualdade de direitos da comunidade LGBT. Foi um grande avanço. Por isso, e por muito mais, acredito que foi um dos grandes presidentes da História dos Estados Unidos.
O mundo já sente a sua falta?
É a impressão que tenho, sem dúvida.
A que características associa Portugal?
Penso em música… na Ana Moura. Comida. Sobretudo sobremesas. E acima de tudo no espírito de generosidade dos portugueses.
Vamos ouvir temas do novo disco no concerto de Amarante, no Festival Mimo?
Vou tocar alguns temas extraídos do novo disco. É certo que ainda não está terminado, mas iremos tocar excertos deste novo disco.
O MÚSICO COMPLETO
Para situarmos as origens da carreira de Herbie Hancock temos de recuar até 1961, mas o invulgar talento deste pianista, que chegou a cursar Engenharia, não tardaria a ser reconhecido. Em menos de dois anos já tinha sido convidado por Miles Davis para integrar o seu famoso quinteto. Mais rápida ainda foi a admissão no catálogo da prestigiadíssima editora Blue Note Records. Nos fervilhantes anos 60 e 70 do século passado editou boa parte das suas obras-primas – discos decisivos para a evolução do jazz, influenciando de modo flagrante novas gerações de músicos. Adepto da experimentação, Testou desde essa altura fusões jazzísticas com géneros como o funk, r&b, eletrónica ou música clássica, o que contribuiu tanto para alicerçar o seu prestígio como para colocar-lhe uma aura de polémica. O prestígio pode ser facilmente comprovado pelos 14 Grammy que já recebeu, o último dos quais de carreira, mas também pelas parcerias com artistas de outras esferas musicais como Dave Matthews, Jeff Beck, John Legend, James Morrison ou Chaka Khan.