São um exemplo, impõem regras, ajudam no que é preciso, põem comida na mesa, resolvem problemas. Cinco histórias de homens que personificam a figura paternal em diferentes contextos.
Johnson Semedo, 44 anos
O PAI QUE AJUDA A ESTUDAR
Quero que sejas meu pai. Se eu me portar mal, podes ralhar comigo, podes pôr-me de castigo, mas cuida de mim.» Neste trecho de uma das muitas cartas que João Semedo Tavares, de 44 anos, vai recebendo, percebe-se a proximidade que constrói com os miúdos que frequentam a Academia do Johnson, no Bairro do Zambujal, na Amadora.
«Sou o encarregado de educação de muitos deles. Alguns não têm pai ou têm famílias muito complicadas.»
Ali fomenta-se o espírito de entreajuda entre as cerca de 120 crianças e jovens, dos 6 aos 18 anos, que vêm de bairros e freguesias em redor, como a Cova da Moura, Boavista, 6 de Maio, Zambujal ou Reboleira. Todos os dias há atividades desportivas, apoio ao estudo e, à quinta-feira, «o dia da reflexão». «Fazemos uma roda e todos partilham os seus problemas na escola, na família.
Discutimos as coisas em conjunto para estimular a partilha. Eu quero que eles sintam que fazem parte de um grupo». Johnson faz questão de partilhar a sua experiência de vida como ferramenta para os mais novos conhecerem as consequências reais de quem toma más decisões.
«Não me orgulho do que fiz no passado. O que lhes mostro é que se seguem certos caminhos o resultado pode ser mau.»
Johnson sabe do que fala. Aos 10 anos vivia na rua, vendeu droga e consumiu durante anos. O crime foi uma saída. E uma má decisão. Condenado a 14 anos de prisão, cumpriu dez e demorou a ajustar-se à vida cá fora. Quando decidiu procurar ajuda, após algumas recaídas, não voltou a olhar para trás. Já lá vão 13 anos. «Tive alguns cliques que me fizeram querer endireitar. O meu pai morreu quando eu estava na cadeia. O meu irmão, que era o meu pilar, também morreu. Perdi as minhas referências». Johnson lembra as figuras paternais quando, hoje, é ele a imagem do pai que muitas destas crianças não têm.
Francisco Barão, 56 anos
O PAI QUE RESOLVE AS ZANGAS
A conversa é interrompida por uma urgência familiar. Uma sobrinha no hospital está prestes a ser operada aos rins. Com a família não se brinca e Francisco Barão, de 56 anos, apanha rapidamente boleia para o Hospital de Évora. Mas a preocupação assumida com os outros não se fica pelos laços de sangue.
Na comunidade cigana de Moura, no Alentejo, Barão tornou-se a pessoa mais respeitada e a quem todos recorrem em alturas de crise. Até conjugais.
«Ainda há pouco tempo houve um caso assim. Uma moça saiu de casa e queria deixar do marido.» Na tradição cigana, a separação não é bem aceite. Barão foi chamado a intervir. Falou com ambos – e o casal manteve-se junto.
Este é um dos muitos exemplos em que a palavra do patriarca é soberana. Mas ser a voz da razão é diferente de ser a pessoa com mais idade. «Não é o cigano mais velho, é o cigano com mais crédito entre os seus», explica. «E é um processo que demora o seu tempo». No caso de Barão, foram cerca de trinta anos e começou quando decidiu tornar-se pastor evangélico.
Era analfabeto, não se interessava por leituras. Quando um pastor chegou à comunidade e ninguém estava interessado nos seus sermões, ficava a ouvi-lo por solidariedade. Com o tempo, foi prestando mais cada vez mais atenção e acabou por converter-se. Foi assim que aprendeu a ler. Hoje, é o pastor mais velho da região.
«Ele é um homem bom, honesto, de palavra. É de confiança e todos sabem disso», diz Cesaltina, a mulher, que vai ouvindo a conversa com atenção e completando os espaços em branco que a memória dele apagou. É uma cumplicidade com quarenta anos e seis filhos. «Ainda no outro dia, na altura do Natal, houve uma zanga entre uns rapazes novos por causa de dinheiro e teve de ser o meu marido a ir lá resolver», continua, orgulhosa. «É um papel difícil, não desejo para os meus filhos, mas é necessário, é assim que se mantém a ordem aqui», remata Barão. Toda a família segue para Évora, a operação está prestes a começar.
José António Pinto, 51 anos
O PAI QUE DÁ ASSISTÊNCIA
No bairro do Lagarteiro, no Porto, é difícil encontrar quem não conheça Chalana. Talvez impossível. Aliás, o «Dr. Chalana», como muitos o tratam. José António Pinto, de 51 anos, assistente social, movimenta-se com o à-vontade de quem ali trabalha há quase vinte anos. Entrou em 1997 para o Gabinete de Ação Social da Junta de Freguesia de Campanhã, a convite do então presidente, Rodrigo de Oliveira. E ali encontrou o seu lugar.
Às terças-feiras, não há cadeiras suficientes para quem está na fila do seu gabinete. O dia do atendimento à população é o mais caótico mas nenhum é igual. A rotina não se aplica aqui. Chalana desdobra-se em visitas domiciliárias, reuniões com instituições e projetos de intervenção comunitária ou acompanhamento de utentes. «Há dias em que sou o táxi de serviço.»
Usa o próprio carro, a junta não tem recursos para transportes e não pode deixar de estar presente. É esta dedicação que o distingue no que faz – até já ganhou uma medalha atribuída pelo júri do Prémio Direitos Humanos – mas a modéstia não permite que gabe demasiado o seu percurso. «Com certeza, existem técnicos muito melhores do que eu mas com menos visibilidade.»
É possível, mas a verdade é que foi Chalana que colocou o Lagarteiro no mapa apesar de todas as contrariedades que foi enfrentando no caminho. «Há dias muito difíceis», lembra, ao falar «dos despejos habitacionais cruéis de famílias que perderam a casa, os cortes de luz que a EDP ordenou com a colaboração da polícia e a barbaridade de expulsão da comunidade cigana do Bacelo». A emoção é inevitável. «Sou mais emocional do que racional. A minha lágrima é fácil. Sou um pinga-amor. Sei que existem estratégias e metodologias de distanciamento, mas não consigo aplicá-las.»
Chalana sabe que há muito por fazer e não se retrai ao estabelecer objetivos para o futuro: «Eu gostava que o meu trabalho conseguisse erradicar a pobreza em Campanhã.» É por isso que está sempre disponível, ainda que não tenha telemóvel que isso é coisa «muito útil mas sobretudo muito controladora».
Joaquim Sá, 54 anos
O PAI QUE ALIMENTA
Rissóis de carne com arroz de grão e cenoura. É a ementa de sábado e Joaquim Sá, de 54 anos, está a preparar o refogado. Todos os dias, é ele que prepara o almoço e jantar para dezenas de pessoas carenciadas nas Caldas da Rainha. Tem fornecedores no Mercado da Fruta e em algumas lojas e mercearias que lhe doam os produtos.
É conhecido por todos, já lá vão trinta anos desde que embarcou numa missão que considera ser «o propósito da sua vida».
«Nunca consegui virar a cara às pessoas que viviam na rua, mesmo quando era jovem.» Começou a fazer sandes para distribuir, mas teve de lidar com a desconfiança. Foi preciso algum tempo para criar laços e levar as pessoas a aceitarem a sua ajuda. Hoje, há quem o considere um pai e quem dependa deste apoio. «Tenho a certeza que se não fosse o Quim muitas destas pessoas morriam de fome», diz José Martins, enquanto lava três vezes a salada, com vinagre. Conhecem-se há muitos anos, como grande parte do grupo que vai chegando para comer na pequena garagem que Joaquim conseguiu arranjar perto da estação de comboios, há dois anos, para o projeto Volta a Casa.
Nem sempre foi assim. Já serviu as refeições na rua, já teve um espaço da Câmara Municipal mas acabou por não renovar contrato porque não queria impor regras a quem precisa de apoio. «Aqui pode entrar quem quiser, eu não cobro nada, só quero ajudar».
A missão ocupa-lhe todo o tempo livre que tem fora do trabalho como assistente técnico na Escola Secundária Rafael Bordalo Pinheiro. As férias são passadas por ali. Tem tido ajuda, há voluntários que podem assegurar as refeições, mas Joaquim prefere tratar de tudo pessoalmente. Até no Natal. «Estou um bocadinho com a minha mãe e depois venho para cá fazer a ceia.» Nunca casou, não tem filhos. Esta foi a família que escolheu. A comida está pronta, alinha-se uma fila ao pé do fogão. Há quem coma na mesa e quem leve para casa. Mas ninguém fica de barriga vazia.
Mário Carneiro, 43 anos
O PAI QUE TRATA DOS PAPEIS
A energia de Mário Carneiro é contagiante. Professor do 1º ciclo, de 43 anos, tem sorriso rasgado, conversa fácil e todos o conhecem na Prootica de Campo de Ourique, em Lisboa. É um dia importante. Feliciano Boa Morte, de São Tomé, vai receber uns óculos novos. Mário acompanha-o e cuida de todos os pormenores. Tariel Tsitsvidze, da Geórgia, vai fazer o teste e também terá, em breve, o próprio par.
Fazer esta ponte é uma das vertentes do trabalho de Mário no projeto Programa de Mentores para Migrantes do Alto Comissariado para as Migrações (ACM).
O foco de um mentor centra-se na «orientação social, profissional, formação de língua portuguesa e apoio na aquisição de cuidados inacessíveis de saúde». Mas, na prática, o envolvimento é maior. Muito maior.
Um dos seus quatro mentorados, o Sr. Floriano, que Mário acompanha desde junho de 2016, é exemplo disso. «É um antigo jogador de futebol, viajado e um homem dos sete ofícios. Um exemplo para mim. Conhece a minha família, frequenta a minha casa. O meu telefone e e-mail estão sempre disponíveis.» A relação com o guineense valeu-lhe, até, o Prémio de Mentor do Ano 2016 (a par de outros oito mentores), atribuído pelo ACM.
A colaboração com a organização começou quando, em 2014, promoveu, com o Clube Intercultural Europeu e a Sementes a Crescer, uma formação de 150 horas de alfabetização à população cigana. Desde então, não tem parado. «Este é um processo que requer investimento pessoal, sem dúvida».
Mas esse é o objetivo. «Achamos que é mais eficaz que uma empresa ou pessoa exerça a sua responsabilidade social em vez de apenas disponibilizar uma verba anual para «ajudar» uma causa ou instituição.»
É inevitável que nestes processos «demasiado burocráticos» existam alguns momentos de frustração. Mas quando esses entraves são ultrapassados e os objetivos são cumpridos, o retorno vale muito. Vale tudo. «Um sorriso ou um abraço são uma enorme recompensa! Às vezes, acho que são eles que me dão esperança e não o contrário», diz emocionado. Com os novos óculos em mão, Feliciano e Mário abraçam-se. Está tudo dito.