Texto de Helder Gomes
Morreu o Chris Cornell. Suicidou-se aos 52 anos. Quarta-feira à noite, num quarto de hotel em Detroit, EUA, apagou-se uma das últimas luzes que ainda sinalizavam a adolescência e a entrada na vida adulta de muita gente. E agora? Agora, faz-se o que sempre se faz nestas situações: limpa-se o pó aos discos dos Soundgarden e voltamos a ouvir.
Quem era pré-adolescente em pleno furacão grunge e sobreviveu à morte de Kurt Cobain andará agora nos 30 e muitos. De cada vez que se cala uma voz como a de Cobain, ou agora a de Cornell, é uma memória viva da adolescência que se perde para sempre, um retrato que se rasga diante dos nossos olhos. Se o egoísmo é consentido nesta hora de perda, é também a morte da nossa adolescência, mil vezes adiada, que se decreta.
Mas não é só isso. A morte de Cornell, vocalista dos Soundgarden e dos Audioslave, leva muita gente a quase olhar a morte de frente. É mais um elo de cumplicidade que se parte. Sentem-se mais sós e mais velhos. Reganham consciência do seu próprio fim.
«Perder alguém que marcou a nossa juventude pode ser sentido como uma perda também, em parte, dessa fase da nossa vida», diz a psicóloga e psicoterapeuta Ana Sevinate.
O ano passado foi uma poderosa debulhadora e já muito se escreveu sobre isso: David Bowie, Prince, Leonard Cohen e, no dia de Natal, George Michael. Em 2015, poucos dias depois do natal, deixava-nos Lemmy Kilmister, dos Motörhead. E, anos antes, a morte inesperada de Michael Jackson e depois a mais expectável de Amy Winehouse. A contabilidade não acaba e muitos ficam sempre (e sempre injustamente) de fora. Qualquer destas mortes, se os falecidos não nos forem completamente indiferentes, põe-nos a fazer contas à vida, deixa-nos primeiro perplexos, depois desamparados.
«Perder alguém que marcou a nossa juventude pode ser sentido como uma perda também, em parte, dessa fase da nossa vida», diz a psicóloga e psicoterapeuta Ana Sevinate. «Tendo em consideração o contexto especifico em que se insere Chris Cornell, importa não esquecer que o grunge marcou uma geração também por ser um movimento caracterizado precisamente por levantar questões de ordem existencial e social, sendo a angústia um aspeto predominante».
No entanto, o impacto de uma morte como a de Cornell pode variar de acordo com a faixa etária de quem recebe a notícia. «A morte de alguém da mesma idade pode trazer, de uma forma muito imediata, a consciência da própria finitude e a consciência daquilo que se designa por angústia de morte. Nesse contexto, pode trazer, à superfície, questões de ordem existencial, nomeadamente sobre o sentido da vida. Faz-se como que uma revisão da vida. Alcancei o que queria? Tornei-me quem queria ser?» No caso de um jovem que cresceu com a música de Chris Cornell, o impacto «pode depender do nível de identificação com o cantor e/ou de idealização que lhe é atribuído», acrescenta Ana Sevinate.
Ana Moniz, também psicóloga e psicoterapeuta, refere, contudo, que «alguém que não está deprimido faz um processo de luto saudável, simbólico, como se viu no caso do David Bowie». Esse luto «não desencadeia nada de patológico», até porque «não há reciprocidade, é uma relação fictícia». Quanto aos obituários mais ou menos inspirados ou sentidos que se fazem nas redes sociais, Ana Moniz relativiza: os fãs «querem partilhar muito, querem partilhar aquela música de que pouca gente gosta». A especialista vê nisso uma «competição saudável e pública, um lado solar».
Dos líderes do quarteto de bandas que, inadvertidamente ou não, enformaram o som de Seattle, já só resta agora Eddie Vedder, dos Pearl Jam. Layne Staley, dos Alice in Chains, morreu em 2002, ironicamente no mesmo dia em que Kurt Cobain, dos Nirvana, pôs termo à própria vida oito anos antes. Agora, Chris Cornell enforcou-se num quarto de hotel em Detroit. O músico «pode ter sido visto como um sobrevivente do movimento», alerta Ana Sevinate, e, por isso, a sua morte «pode ser sentida como um choque maior». Sabendo-se que a causa foi o suicídio, isso «pode exacerbar a incredulidade, o choque e a zanga». De resto, concorda a especialista, «é natural que o processo de idolatria seja reforçado, levando as pessoas a ritualizar uma dor e um luto que são sentidos em partilha».