Texto Catarina Fernandes Martins, em San Salvador | Fotografias de Reuters
Maria Teresa Rivera não sabia que estava grávida do segundo filho quando sofreu um aborto espontâneo e acordou com a polícia aos pés no hospital. Mãe solteira de Oscar, na altura com 6 anos, Maria Teresa tinha uma vida dura, desdobrando-se entre a educação do filho e os trabalhos que lhe permitiam pagar as contas da casa e as mensalidades da criança num colégio privado em São Salvador. Apesar de viver com dificuldades, o colégio privado era um luxo que Maria Teresa sentia não poder dispensar num país assolado pela violência de gangues que recrutam rapazes jovens nos bairros mais pobres de todo o país.
Em novembro de 2011, a jovem mãe teve uma emergência obstétrica e foi transportada para o hospital. Quando acordou, soube que tinha abortado. Soube também que estava presa por homicídio do filho, um nado-morto. Foi detida e levada para um estabelecimento prisional no bairro mais violento da capital, Mejicanos. Aí, diz, recusaram- lhe os medicamentos e até a alimentação.
«Diziam-me que tinha matado o meu filho, que tinha comido o meu filho, que me iam matar a mim», conta. Levada a tribunal meses depois, Maria Teresa foi condenada a quarenta anos de prisão por homicídio agravado. «Eu nem sabia que estava grávida, não me deram qualquer justificação na audiência, o médico não foi sequer ouvido. Senti que estava tudo acabado para mim, mas depois lembrei-me de que tinha um filho», diz Maria Teresa, que deixou Oscar aos cuidados dos sogros. «Não sou a mãe perfeita, mas tentei sempre fazer o melhor pelo meu filho. Se soubesse que estava grávida, tinha feito o mesmo por esse filho.»
Em El Salvador, o aborto é penalizado até um máximo de oito anos de prisão. Mas a lei afeta também mulheres que sofreram abortos espontâneos, mas foram denunciadas por homicídio – por médicos, por vizinhos, por alguém.
El Salvador tem uma das leis do aborto mais restritas do mundo. Em 1997, a prática foi totalmente proibida, mas pela primeira vez em duas décadas o país está a debater mudanças à lei. Recentemente, deputados do partido de esquerda FMLN, no poder, introduziram uma proposta de lei para liberalizar o aborto em casos de violação de menores ou quando a gravidez põe em causa a saúde da mulher. Esta aparente abertura é o resultado de várias campanhas de sensibilização levadas a cabo por ativistas favoráveis ao aborto e por quem sofreu na pele as consequências da lei.
Em El Salvador, o aborto é penalizado até um máximo de oito anos de prisão. Mas a lei afeta também mulheres que sofreram abortos espontâneos, mas foram denunciadas por homicídio – por médicos, por vizinhos, por alguém. Nessas situações, as penas a aplicar são substancialmente mais pesadas. Referindo-se a uma sociedade «que restringe duramente as liberdades das mulheres» a ponto de a denúncia por suspeita de aborto ser comum, Zulma Méndez, médica no Hospital Nacional San Rafael em São Salvador, diz que «o medo faz parte da vida de todas as mulheres.»
Na semana passada, a condenação a trinta anos de prisão de uma jovem que teve um aborto espontâneo depois de ter engravidado na sequência de uma violação, acrescentou o nome de Evelyn Beatriz Hernández Cruz às 17, um grupo de mulheres que dizem ter sido injustamente condenadas depois de terem sofrido interrupções involuntárias da gravidez. Entre as 17 – o número real já é mais elevado – há mulheres, convertidas em ativistas pela mudança da lei, que tentam chamar a atenção para as consequências da penalização total do aborto nas famílias deixadas para trás.
E os filhos que já existem?
Mirna Ramirez foi presa por tentativa de homicídio da filha no dia em que esta nasceu. Mirna estava grávida de sete meses quando inesperadamente deu à luz uma menina que caiu inconsciente na casa de banho. Os vizinhos que ouviram os gritos de Mirna correram para ajudá-la, mas ao encontrarem a bebé inanimada decidiram que a mãe tinha tentado um aborto e denunciaram-na às autoridades. Briseida sobreviveu. A mãe foi condenada a 15 anos de prisão. «Foi o pior dia da minha vida. Ninguém acreditou em mim quando eu disse que não tinha tentado fazer um aborto. A minha filha foi deixada sozinha», diz Mirna, que entretanto já cumpriu a pena.
Briseida cresceu com os pais de Mirna e durante doze anos viu a mãe apenas aos domingos, dia em que esta podia deslocar-se a casa. «A minha filha pedia a minha ajuda para os trabalhos da escola, queria que eu ficasse ao pé dela. Sempre que nos despedíamos, ela pedia-me que não a deixasse», diz Mirna. «Vi-a crescer mas não estive ao pé dela… Dizem que esta lei protege as famílias, mas quase destruiu a minha.»
Mirna é uma das 17 cujas histórias, de acordo com Laura Aguirre, uma investigadora salvadorenha que se especializou em violência sexual, criaram abertura suficiente para permitir o debate sobre a liberalização do aborto que está neste momento a decorrer no país. Mas para esta especialista o verdadeiro momento de mudança ocorreu em 2013, com a mediatização da história de Beatriz, o pseudónimo de uma jovem grávida do segundo filho que solicitou uma autorização especial para interromper a gravidez.
Os médicos determinaram que o bebé de Beatriz não sobreviveria e que a gravidez acarretava riscos para a vida da mãe, mas o Supremo Tribunal de El Salvador recusou o pedido. O bebé nasceu de cesariana ao sétimo mês de gravidez e morreu em poucas horas. Beatriz sobreviveu e a sua história dividiu a sociedade, como lembra Laura Aguirre.
«Neste país falamos sempre dos direitos dos fetos mas nunca falamos das crianças que já existem. Há uma crença de que as mães devem sacrificar tudo pelos filhos, mas essa crença não se aplica às crianças que são deixadas sozinhas quando elas são presas», diz Laura Aguirre.
Um dos argumentos utilizados por Beatriz para conseguir a interrupção da gravidez foi o direito de o filho mais velho crescer com a mãe, continua a investigadora. «Neste país falamos sempre dos direitos dos fetos mas nunca falamos das crianças que já existem. Há uma crença de que as mães devem sacrificar tudo pelos filhos, incluindo a própria vida, mas essa crença não se aplica às crianças que são deixadas sozinhas quando elas são presas», diz Laura.
Maria Teresa Rivera viu o filho apenas duas vezes durante os quatro anos em que esteve presa. À prisão chegavam notícias desencorajadoras sobre a situação do pequeno Oscar. «Na escola, diziam-lhe que a mãe tinha matado o irmão. Ele ficou com uma depressão, quis desistir de tudo. Chumbou um ano», conta. Maria Teresa Rivera foi exonerada em 2016 e meses depois de ser libertada viu-se obrigada a pedir asilo fora de El Salvador, pois os procuradores do país interpuseram um recurso para que a condenação inicial fosse novamente aplicada. Com a ajuda de um grupo de ativistas salvadorenhos, fugiu para a Suécia com o filho, agora com 12 anos, e diz que vive tranquila e que o rapaz está a adaptar-se ao novo país e aos novos amigos.
Mirna Ramirez está a ter mais dificuldades em encontrar a paz de espírito que perdeu quando foi presa. Saiu da prisão em liberdade condicional há três anos e vive novamente com a filha. «Ela cresceu bem, é esperta. Não percebe ainda o que aconteceu comigo, mas está sempre a dizer-me para esquecer o passado, mas eu não consigo deixar de sentir uma enorme tristeza pela vida que perdi», conta.
Se os casos de Mirna e Maria Teresa tiveram finais mais ou menos felizes, o mesmo não se pode dizer de Teodora del Carmen Vásquez, condenada a trinta anos de prisão pelo homicídio do filho na sequência de ter perdido a criança aos nove meses de gravidez.
Se os casos de Mirna e Maria Teresa tiveram finais mais ou menos felizes, o mesmo não se pode dizer, por enquanto, de Teodora del Carmen Vásquez, condenada a trinta anos de prisão pelo homicídio do filho na sequência de ter perdido a criança aos nove meses de gravidez. Ou de Manuela, também condenada a trinta anos de prisão depois de ter dado à luz um nado-morto. O filho de Teodora, Gabriel, tem 13 anos e ficou aos cuidados dos avós maternos e dos tios.
Cecilia Vásquez de Ramos visita a irmã sempre que pode na cadeia de mulheres de El Salvador, Ilopango, mas são poucas as vezes em que se faz acompanhar do sobrinho, que vive a muitas horas de distância. «Ele ficava doente quando vinha visitar a minha irmã e então evitamos que o faça muitas vezes.»
Os filhos de Manuela, no entanto, não poderão voltar a ver a mãe. Em 2010, dois anos depois de ter sido presa, morreu na prisão com um cancro.
A irmã de Teodora diz que, rodeado de uma família alargada, o rapaz está a crescer bem e a tornar-se independente, acrescentando que as dificuldades maiores estão relacionadas com as despesas, divididas entre todos os irmãos. Mas, de repente, o rosto de Ceci fecha-se numa certa nostalgia quando repete as palavras que o sobrinho lhe pede repetidamente para transmitir à mãe na próxima visita. «Diz-lhe que ou sai rápido da prisão ou eu caso-me entretanto», lembra a tia do rapaz.
Os filhos de Manuela, no entanto, não poderão voltar a ver a mãe. Em 2010, dois anos depois de ter sido presa, morreu na prisão com um cancro. O advogado Dennis Muñoz, conhecido em El Salvador como o «advogado do aborto», defende as 17 há dez anos, mas é do caso de Manuela que fala primeiro. O advogado continua a representar a família contra o Estado salvadorenho, pedindo que os dois filhos recebam algum tipo de compensação. «A Constituição de El Salvador diz que a família é um princípio fundamental, mas as histórias destas mulheres contrariam essa ideia», diz.
Um crime de mulheres pobres
Num relatório publicado em 2015, a Amnistia Internacional chamava a atenção para os efeitos da lei nas vidas dos filhos já existentes e das famílias destas mulheres. No mesmo relatório, a organização realçava que as mulheres pobres estão «particularmente vulneráveis» a condenações em situações de aborto ou abortos espontâneos tratados como homicídios.
As mulheres de grupos sociais privilegiados podem deslocar-se ao exterior ou procurar o procedimento em clínicas privadas, como explica um dos poucos médicos que praticam o aborto no país e que prefere ser identificado pela alcunha dos tempos de faculdade, Dr. Hell. «As mulheres ricas nunca acabam na prisão», diz. Enquanto estudante de Medicina, o Dr. Hell era contra o aborto. Um professor fê-lo mudar de opinião e convidou-o depois a fazer parte de uma rede clandestina de clínicas que praticam o procedimento.
«Há algo a mudar no país. A minha maior esperança é viver até ver o dia em que o aborto deixe de ser crime em El Salvador», diz um dos poucos médicos que praticam o aborto em El Salvador.
Há dez anos que realiza vinte a trinta abortos por ano, principalmente em mulheres pobres que chegam até ele encaminhadas por colegas que não conhecem a técnica ou não concordam com a prática, mas querem ajudá-las. Na clínica secreta que gere numa das divisões da sua casa em São Salvador – apesar de a mulher ser contra o aborto e contra a ocupação do marido –, o médico diz entre sorrisos que pode «perder a licença ou acabar na prisão». Não há vestígios de preocupação na sua expressão corporal, que antes denuncia o à-vontade de um especialista com anos de experiência e centenas de abortos praticados. Ou talvez denuncie a mudança de fundo que parece estar a acontecer na sociedade salvadorenha. «Há algo a mudar no país. A minha maior esperança é viver até ver o dia em que o aborto deixe de ser crime em El Salvador», diz.
Morena Herrera, uma histórica feminista salvadorenha e ativista a favor da despenalização do aborto, diz que uma sondagem prestes a ser divulgada vai mostrar que a maioria do país é agora favorável a uma mudança da lei.
Por enquanto, a proposta de lei continua em discussão. Ao mesmo tempo, um deputado do partido de direita ARENA sugeriu aumentar as penas de prisão em casos de aborto de um máximo de oito para cinquenta anos. E, na semana passada, a condenação de Evelyn Beatriz lembrou aos ativistas que ainda há um longo caminho a percorrer.
A partir da Suécia, Maria Teresa Rivera está ativamente empenhada na luta pela mudança da lei e na consciencialização dos efeitos da lei do aborto no país que deixou para trás. Enquanto divulga comunicados e mensagens nas redes sociais, diz-se convencida de que algo vai mudar em breve. Até porque, defende, sem deixar margem para alternativas, «a lei tem de mudar». «A lei tem de mudar para proteger a vida e a saúde das mulheres pobres. Para proteger as famílias.»
Esta reportagem foi financiada pela International Women’s Media Foundation (IWMF) como parte do seu programa de reportagem na América Latina, Adelante.