A revolução feminista da moda não pode ser gritada nas passerelles. Tem de começar antes, na melhoria das condições de trabalho das mulheres que a fazem, e terminar depois, nos cânones que nos são impostos.
Leio a abertura deste texto, a entrada, lá em cima, e penso: eh lá! Muito revolucionário. Se calhar ninguém, quando pensa em moda, pensa nestas coisas. Mas depois revejo as passerelles desta temporada, as apresentações internacionais das semanas da moda das grandes capitais e algumas da revistas que marcam a agenda e volto a perceber que o feminismo é um dos grandes assuntos do momento. Além da ecologia, do revivalismo e da moda rápida. Vejam, por exemplo, o muito aclamado desfile da Dior primavera-verão 2017, na Semana da Moda de Paris. Com uma coleção muito branca, que se inspira nas roupas interiores dos militares medievais, e que terminava com T-shirts a dizer «We Should All Be Feminists», Chiuri foi aplaudida em Paris. Houve lágrimas e laudas recebendo o feminismo nas passerelles e uma mulher de 52 anos na Dior, a primeira.
Então é assim, penso? Escrevemos numas T-shirts a dizer que devíamos ser feministas, pomos umas modelos – magricelas, claro – a desfilar com elas numa semana da moda qualquer e já está, somos feministas. É assim? Não, respondo a mim mesma. Até no mundo da moda, onde o que parece é tantas vezes o que é – até porque há pouco mais que isso para ser –, tem de haver mais consistência.
Podemos até ser Maria Grazia Chiuri, a primeira mulher à frente da casa Dior, mas nem esse pergaminho nos pode outorgar uma insígnia tão instantânea. Nem que usemos um colar de Super-Homem – como o que levou a designer à Semana da Moda de Paris. Não tão rápido, não.
Quando se lhe abriram os microfones, Chiuri lá respondeu dizendo que queria marcar a diferença num mundo masculino – bem –, praticar a igualdade em casa entre o filho e a filha – também OK, a igualdade começa em casa – e … «que as mulheres usam mais o coração do que a cabeça, precisam de equilibrar ambos». Aqui, claro, estragou o momento, como tantas vezes acontece quando se abre o microfone a alguém que ainda não está assim muito habituado a ele.
Esta ostentação do feminismo numa passerelle é apenas mais um dos episódios do que, nos últimos tempos, se convencionou chamar feminismo pop. Ou, diríamos em português corriqueiro, feminismo fashion.
E qual é o problema? Que mal tem que o direito à igualdade das mulheres saia dos, por vezes, bafientos fóruns de discussão académica e do ativismo por vezes atávico, e caminhe em direção à massificação? Não poderá isso fazer mais pelas mulheres reais do que propostas de leis que não passam do papel em programas eleitorais? Não está a moda no caminho certo para operar parte da revolução que é precisa para repor os direitos humanos que o feminismo reivindica?
Estas são todas perguntas difíceis de responder, e respostas difíceis de dar – sobretudo para quem não quer cair no mesmo atavismo mas também desconfia da sinceridade e da autenticidade dos arrivistas da causa. Sim, para começar pela base: a moda está a precisar de uma revolução feminista. Mas se a quisermos fazer, temos de começar muito antes da passerelle e acabar muito depois dela. Porque é uma revolução que não passa só por T-shirts com palavras de ordem. Tem de começar nas primeiras etapas da cadeia de valor: na produção das roupas, ou até antes, nos tecidos.
Oitenta por cento da roupa que se veste no mundo é feita por mulheres. E não pensem em ateliês chiques e arejados como aqueles em que é imaginada a moda do primeiro mundo. Imaginem antes fábricas imundas e fechadas, onde ela é feita.
[Publicado originalmente na edição de 23 de outubro de 2016]