Apesar de ter saído da minha terra há mais de vinte anos, continuo a ter sonhos em que estou lá. Quando acordo, tenho a certeza profunda de que os sonhos preservam uma certa verdade. Há um passado que, nesses sonhos, continua a ser presente.
Na semana passada, nas festas de agosto da minha terra, houve música alta, cantores acompanhados por bailarinas. Em certas ocasiões, segurando copos de plástico, atravessando o chão de terra, homens desconhecidos dirigiram-se a mim. Desde o instante em que lhes identificava essa decisão, durante os passos breves com que se aproximavam, eu analisava-os à pressa e, de repente, distinguia os traços de rostos infantis ou adolescentes que conheci. Esses homens vivem na Inglaterra ou nos Estados Unidos e foram rapazes com quem brinquei durante tardes inteiras, anos inteiros.
Num canto do terreiro, o café do Arménio é hoje uma loja que vende um pouco de tudo. Como se fosse comprar alguma coisa, entro lá para ver as paredes. Visito as minhas memórias no lugar exato em que aconteceram. Naquela divisão com prateleiras carregadas de objetos garridos, recordo um balcão com homens encostados, recordo as vozes dos homens. Sou capaz de apontar o sítio da mesa onde o meu pai ficou sentado numa noite que não consigo esquecer.
A nossa casa é agora a casa da minha mãe. As diferenças que apresenta em relação aos meus sonhos, não são da casa, são minhas, fui eu que mudei, que envelheci, foram os meus filhos que cresceram. Da mesma maneira que reconheço traços de rapazes antigos no rosto dos homens que, nas festas de agosto da minha terra, se aproximam para cumprimentar-me, distingo agora traços meus no rosto dos meus filhos.
Quando seremos capazes de convencer-nos de que tudo é vão? Desperdiçamos demasiado tempo a preocuparmo-nos com insignificâncias. Por aquilo que é importante para nós, por aquilo que amamos, temos a obrigação de viver. Esta é a razão máxima.
Tento não esquecer. É difícil. Como nas festas de agosto, há pó, há música alta. Sigo o meu caminho. Falta cada vez menos tempo para voltar à minha terra.
(Fotografia de José Luís Peixoto)
[Publicado originalmente na edição de 28 de agosto de 2016]