Estão em movimento. Percebe-se. E quase parece que são da mesma altura. Aliás, ela está mesmo um pouco mais alta. Com a ajuda do último degrau da escadaria e da tiara que lhe prende o véu, ela está mais alta do que ele. Os centímetros do salto dos sapatos brancos, comprados numa sapataria junto ao Coliseu dos Recreios, em Lisboa, também ajudam. Maria não se lembra quanto é que a madrinha pagou por eles ou pelo tecido comprado em Idanha-a-Nova com que a modista fez o vestido que ainda hoje guarda.
Ele tem a perna direita em baixo, o corpo já a descer para o empedrado de granito do adro da igreja, o extremo da calça impecavelmente vincada a bater no sapato preto, de atacadores, bicudo, bonito. Não se lembra onde comprou os sapatos nem quanto custaram. Apenas que os usou muito depois daquele dia. «Até se romperem.» O fato, tal como o que vestiu no dia seguinte, esse foi feito à medida por um alfaiate madeirense no Campo Grande. José vestiu os dois enquanto coube neles, que o corpo elegante de 35 anos entretanto alargou. Não muito.
O momento, imortalizado por José Pedro Barata – era o melhor fotógrafo da região, com loja em Castelo Branco, e morreu em 2011, com 87 anos, depois de seis décadas de trabalho atrás das câmaras – está registado em papel cartonado em formato 15-20. Como é a preto e branco, não dá para perceber que o fato do noivo é azul-escuro, tal como a gravata, fininha. Mas pouco importa. Os sorrisos deles são coloridos. Para além da saia de uma das convidadas, não há nada cinzento ali. José, o meu pai, fez 36 anos uma semana depois. Maria, a minha mãe, tinha 35. Tinham acabado de casar. Foi há cinquenta anos.
Naquele dia os meus pais apanharam o comboio das sete em Castelo Branco. Em Santa Apolónia tomaram um táxi para o Cais do Sodré, novo comboio até à Parede e táxi até à casa onde viveram um ano, até se mudarem para a outra, a que compraram com essa novidade que foi o crédito para habitação. Chegaram, cansados, às duas da manhã. Foi lá a noite de núpcias, antes da Lua de Mel com passagem pela Nazaré e Fátima.
Eles lembram-se de tudo isso, mas lembram-se sobretudo do dia do casamento. Do que ouviram. De quem estava. De quem já não está cá. Também se lembram que, em 1966, o dia 20 de agosto foi bem mais fresco do que o deste ano. Nas últimas cinco décadas, houve anos mais abafados, outros menos. Uns piores, outros mais fáceis de levar. Como a relação deles terá sido, presumo. Os meus pais não falam muito disso. Quando lhes pergunto coisas sobre estes anos todos, ou chutam para canto ou riem-se. Ou encolhem os ombros e dizem que «tudo se resolve». Às vezes suspiram.
Eu não acredito. Quer dizer, custa-me a entender. Custa-me, verdadeiramente, a perceber como é que «tudo se resolve». Como é possível estar cinquenta anos com alguém. É coisa que me faz alguma espécie. Por isso olho para eles com um misto de admiração e reverência, respeito pelo espírito de sacrifício e incredulidade por terem conseguido.
E olho para mim, também. Para a minha relação. Para o que tenho. Para o que aprendo. Para o que tiro do exemplo deles. Quer o que acho bem, quer o que acho mal. Às vezes penso «quem me dera conseguir reagir assim». Outras dou por mim a achar que teria feito diferente, neste ou aquele momento. Ser capaz de admirar alguém passa também por conseguir reconhecer-lhe as coisas que correram menos bem. Dizer «eu não quero isto para mim», quando penso em capítulos concretos, é também uma forma de reconhecer o caminho que os outros trilharam antes de nós – e aprender a ver o livro todo.
Uma semana depois da data oficial, os meus pais celebraram as bodas de ouro (no dia 20 não tinham cá os filhos todos) com uma missa na mesma igreja onde casaram – e onde o Barata fez aquela fotografia que tenho à minha frente. Falámos disso. Eu e as minhas irmãs. E os meus primos. E a família toda que se juntou para festejar, dar abraços, recordar o momento e trocar memórias. Falámos da resiliência. Da capacidade para aguentarem o que apareceu. Da capacidade para se aguentarem um ao outro. E de cuidarem um do outro. E da capacidade para gostar. E continuar a gostar.
Não é que os meus pais não acreditem em divórcio ou sejam contra isso. Não é que não lhes tenha passado pela cabeça, alguma vez (vezes?) em cinquenta anos. Mas, depois de fazerem as contas, lá terão chegado à conclusão de que valia a pena continuarem juntos. Por eles, pelos filhos, por aquilo em que acreditam. Fair play, dizia-me o meu pai há dias. «A vida tem altos e baixos. Para estar casado cinquenta anos é preciso um certo fair play. E às vezes engolir uns sapos, mas é por uma boa causa.» Não sei se foi influência dos Jogos Olímpicos que acabaram há pouco tempo, mas foi aquilo que lhe saiu quando lhes perguntei novamente como é que se consegue. Como é que conseguiram. Não encontro expressão melhor para definir o que possa ser um jogo que dura há cinquenta anos. Continuam empatados.
[Editado. Versão original publicada na edição de 28 de agosto de 2016.]