Faltam mulheres na guitarra portuguesa, mas Marta Pereira da Costa vai lançar um álbum a solo. E quer que seja mais do que fado. Se o mote é romper com o óbvio, então seguimos a deixa: nas imagens, uma produção de moda com a artista. No texto, o relato de um jantar em sua casa.
JÁ A NOITE IA AVANÇADA QUANDO MARTA PEREIRA DA COSTA decidiu pegar na guitarra portuguesa. Era segunda-feira, que parece sempre ser um dia improvável para combinar jantares – mas entre jornalistas e artistas é fácil fugir às normas. Um coelho assado no forno, cozinhado em casa da guitarrista, que ela gosta de borga, sim, mas dentro de portas. E gosta de se fazer aos tachos. A conversa durava há umas boas horas quando anunciou que ia dedilhar um bocadinho, nesse dia ainda só tinha tocado uma hora e o corpo já lhe pedia música.
Então, ainda antes de pegar na guitarra, tirou da gaveta uma caixa quadrada, pouco maior do que o tamanho da palma da mão. Lá dentro, uma série de unhas postiças. «Esta foi do Carlos Paredes», diz, sobre aquele pedaço de plástico que o tempo tornou amarelo, preso a um elástico. «Foi a Luísa Amaro, mulher dele [e a única outra mulher guitarrista da praça], que me ofereceu.» Também tem unhas de Mário Pacheco, Luís Guerreiro, Ricardo Parreira, Ricardo Rocha. Nomes maiores da arte das doze cordas, mestres do conto da saudade nas pontas dos dedos. Aquela caixa não é só uma caixa. É superstição e sabedoria antiga. Uma biblioteca do melhor que a guitarra portuguesa ofereceu ao mundo.
A 6 de maio, Marta Pereira da Costa lança um álbum homónimo. Tem 33 anos, toca há 15, mas este é o primeiro a solo da carreira. «Quis fazer as coisas com calma, ando há mais de um ano a preparar esta edição.» E anda há meia década a tocar por todo o mundo, é, aliás, uma das únicas mulheres a fazê-lo. Só que, se o circuito para aprender a arte das doze cordas é inevitavelmente o fado, agora ela quis fugir do que era mais óbvio. O disco tem 13 músicas, três são composições próprias e há um fado, sim senhor, com voz de Camané. É o único. Tem um dueto com Pedro Jóia, dá embalo a Rui Veloso, Dulce Pontes e uma cantora iraniana, Tara Tiba. Também toca a meias com um dos maiores baixistas do mundo, o camaronês Richard Bona, e até se atira de cabeça ao jazz, numa composição de Mário Laginha.
O pressuposto com que Marta Pereira da Costa partiu para este álbum, que é o de mostrar o que ainda ninguém tinha visto, é o mesmo com que partimos para as páginas que se seguem. Música é música – e é a desculpa para estarmos agora com a guitarrista. Mas, por maior que seja o amor às cordas, há outras paixões que não se lhe conhecem. Cozinhar, calmamente, com um copo de vinho ao lado. Ou fazer uma produção de moda, porque se ela gosta de estar à vontade, também gosta de se mostrar bonita. «Sim e sim», respondeu às duas propostas. A noite e o dia, sempre com a guitarra por perto.
Sete e meia no bairro de Alvalade, Lisboa, residência e sala de ensaios de Marta. Logo à chegada, uma garrafa de champanhe aberta, aperitivos de wasabi, outros de caril. Uma pasta de atum com ovo cozido, que a guitarrista corta com uma faca larga, de talhante. Numa outra vida, depois de terminar um curso de Engenharia Civil e fazer investigação
no LNEC, a rapariga já tinha decidido mudar de rumo mas ainda não sabia bem o que queria fazer. «Pensei durante algum tempo que o caminho seria a gastronomia. Gosto de vinhos, gosto de comida e continuo a gostar.»
Fez alguns cursos e workshops com nomes fortes da culinária. Depois assumiu que era a guitarra, mas o tempero ficou lá. Há uma serigrafia na parede da cozinha de sua casa de uma pintura de François Boucher, chama-se La Belle Cuisinière. É um óleo setecentista e emoldura muito bem um jantar que se passa trezentos anos depois. Por isto: o desenho mostra uma mulher bela e atarefada, a quem alguém tenta desviar a atenção. Marta já tinha deixado o coelho a marinar, mas agora tinha de parti-lo em pedaços e levá-lo ao forno. Fez umas batatinhas cozidas, há de salteá-las num molho de aipo, alho francês e natas. Comida de matulões, o que não deixa de ser surpreendente para quem enverga tão delicada figura.
«Gosto de desmanchar peças de carne, gosto de comer tudo, ainda há uns dias fui ao Minho e dei cabo de umas papas de sarrabulho. E gosto de vinho, gosto bastante.» Então abandone-se o champanhe, venha lá a garrafa de tinto, um Maria Mansa de 2011. Marta Pereira da Costa tinha 18 anos quando lhe apresentaram a guitarra portuguesa. Foi o pai, levou-a uma aula com o mestre Carlos Gonçalves e o mundo da rapariga ficou virado do avesso. «Ele tinha tocado com a Amália, era um talento incrível. Emprestou-me uma guitarra, passado uns anos o meu pai comprou-me outra em Coimbra. Em 2010, quando comecei nisto a sério, vendi as duas para pagar uma parte da que uso hoje.» Encomendou-a a Óscar Cardoso, sabedor incontornável do ofício. É uma obra lindíssima, aberta atrás, e cada peça, afinal, é única. «Vale quase tanto como este piano que tenho na sala.» Um Yamaha preto com que Marta ganha a vida. A sua base de sustento é essa, aulas particulares em casa.
Começou a aprender as manhas do teclado aos 4 anos, mas na maioridade deslumbrou-se com a paixão nova. «Naqueles primeiros anos eu descobri o fado e o instrumento, dedicava-me a ele à noite, ia para o Clube de Fado.» Mário Pacheco, dono da casa e sábio das cordas, sentava-a ao seu lado e ela reproduzia. «Deu-me a alcunha de copy-paste, porque eu repetia as coisas certinhas.» O incentivo paterno desvanecia-se com as noites que a miúda passava fora. Então Marta foi para o Instituto Superior Técnico tirar Engenharia Civil. Fez projetos e investigação, até que em 2010, com 27 anos, algumas viagens ao estrangeiro para tocar guitarra no currículo, e casada com o fadista Rodrigo Costa Félix, decidiu mandar a engenharia definitivamente às urtigas.
O jantar está pronto e a garrafa quase vazia. Marta põe o disco novo a tocar e vai comentando cada canção, parece haver uma história para cada uma delas. A maneira como fala é a de quem anda à procura de luz. Cansou-se de ser a mulher de alguém, o disco também é parte desse percurso. «Toco de forma muito séria desde 2010, mas se vejo uma jam session não vou meter-me no meio, a menos que me convidem. Sei que há gente muito melhor do que eu, mas eu também tenho a minha personalidade e é isso que quero apresentar neste disco.» Esforço largo e investimento farto. Só acertou à segunda no produtor, fotografias para a capa fez tantas, e cada música devagarinho. Agora sim, está pronto.
O coelho foi cozinhado a baixa temperatura, por isso está húmido e tenro, não é fácil conseguir uma proeza assim. Bom trabalho, vem outra garrafa? Vem, e com ela a descontração de uma noite que se está a tornar de copos, com cada vez mais gargalhadas e cada vez menos proteção do discurso. «Quando estou em grupo costumo ficar caladinha no meu canto, recebo mais do que emito.» Hoje não, até por força das circunstâncias. O cano do lavatório entope, há um dilúvio no chão da cozinha. «Limpa aí», e passa a esfregona para mãos alheias, um Tejo inteiro que, promete ela, não há de dar cabo do jantar. «Eu vou ali para a casa de banho lavar o aipo», e lava, e corta, e atira tudo para um tacho ainda antes de a inundação estar estancada. «Não há de ser nada.» E não foi.
A música vai tocando na aparelhagem, somam-se silêncios para ouvir as canções. Como é que aparece aqui o Rui Veloso? «Foi uma pessoa que me deu sempre grandes conselhos.» Então qual foi o melhor conselho? «Para me rodear sempre de gente boa. Por isso convidei-o para participar no disco. Ah-ah-ah.» E o Bona, que é um baixista de categoria mundial. «Às vezes perco a timidez e tenho lata. Num concerto que ele deu cá, enchi-me de coragem e perguntei-lhe se queria fazer uma música comigo. Então pronto, ele aceitou.» Gravaram tudo num corre-corre, e depois Marta foi a Paris acertar pontas, num estúdio que o camaronês tem em casa. «Veio a música primeiro, a amizade depois.»
Quando se combinou este jantar havia a ideia de ir dar uma volta por Alfama, Madragoa e Mouraria. Era para ser viagem à segunda-feira pelo reino da fadistagem, mas depois Marta pegou na caixa das unhas, e depois pegou na guitarra, e depois encheu outro copo de vinho. «Se eu ando a fugir ao circuito vale mesmo a pena irmos ver o circuito?» Não vale, e ainda menor é a vontade quando a artista decide improvisar sobre uma versão de Os Verdes Anos, de Carlos Paredes, com apontamentos seus. A seguir a isso não há como sair de casa, já se está em mergulho profundo na guitarrada. Aprender o quê, longe daqui?
O chão da cozinha secou, depois do dilúvio. Ainda há uma mão-cheia de aperitivos de wasabi – e a aparelhagem continua a mostrar o disco novo. Há músicas que dão vontade de dançar, outras que pedem silêncio no sofá, outras que são mergulho na vida. Este vinho todo descambou em sorrisos cheios e a timidez esvaiu-se. Piadas, histórias de noites de fado vadio, em que o guitarrista não recebe aplausos, recebe o cuspo dos cantores. «Eu não tenho a mania de que sei muitas coisas», diz ela, «sei que estou sempre a aprender. E então quis fazer este disco, que é um reflexo desta minha aprendizagem toda». Tem a cabeça inclinada sobre a guitarra e as cordas rolam. Aquecem uma segunda-feira à noite tão fria, mas com tanta vontade de dançar.
Agradecimentos: Pousada de Lisboa.