Sabe tão bem ouvir um fado ao fim de um dia de trabalho intenso. A caminho de casa, o trânsito lento, chove no alcatrão, o frio embacia os vidros e o desconforto tomaria conta do automóvel não fosse a voz da Amália – com que voz, pensa-se, sempre que se a ouve – ecoar das colunas. A voz dela, maior entre as maiores, enche o ar e amortece o stress como um copo de brandy. A voz da Amália não é só uma canção de que gostamos, ou de que trauteamos a letra, no conforto das coisas reconhecidas. Ela é outras coisas que, além dos ouvidos, nos enchem o coração e a alma. É o orgulho. É aquela sensação de perfeição que só se tem quando sabemos que estamos perante os grandes. É a certeza. A inteligência de uma nota na garganta que não sai do controlo do que ela queria dizer – mesmo que as letras, vogais ou consoantes, tenham de ser atropeladas pelo caminho.
«Velho cardo, esgio nardo, flor de lua, mi fá sol, girassol, eu sou tua.» Sorrio sempre quando a Rádio Amália está a dar Flor de Lua, a minha segunda canção favorita da fadista, versos da própria Amália, provando que ela não era apenas inteligência vocal. A sua perfeição era bem maior do que nos quiseram fazer crer durante muitos anos. Até que ouvimos esta música e tudo faz sentido. «Chora a fonte, reza o monte, branca asa, canta a flor, chora a flor, campa rasa.»
Noventa e nove por cento das vezes em que ouço fado no carro ele está a passar na Rádio Amália. Esta rádio foi causa e consequência do que aconteceu ao fado nos últimos anos. Por um lado, nasceu da perceção de que havia aqui uma oportunidade de mercado. De que a gente que gostava de ouvir fado já não era apenas a enorme maioria dos taxistas de Lisboa – mas esses eram a base essencial para que uma rádio destas crescesse. E contribuiu também para fazer de água em pedra cada vez mais mole, e ir trilhando o carreiro do fado, cada vez mais largo.
Esta é uma das histórias que publicamos nesta edição, numa reportagem dedicada aos bastidores do fado para a qual nos nasceu a ideia quando Carlos do Carmo ganhou um Grammy e percebemos que o filme sobre a sua vida ia estrear agora– Um Homem no Mundo, cinemas NOS. Quisemos ir em busca do que estava por detrás do brilho dos palcos – do glamour das estrelas, do trinado das guitarras, do pó da maquilhagem.
O que descobrimos, em primeiro lugar, foi um profissionalíssimo em que se percebe que o fado… bom, para já percebe-se que o fado é um mundo. E, tal como o planeta Terra, tem também várias camadas e várias funções. Há as casas de fado, os espetáculos de palco, os discos, os repertórios, as mensagens que se pretende transmitir e tudo o que faz o caminho da arte ao negócio. Hoje o fado é a iluminação perfeita, a nota certa, o vestido no ponto.
E, depois, descobrimos também que grande parte do que está atrás disso tudo é feito da mesma matéria disso tudo. A saber, a paixão. Ah, dir-me-ão, nisso o fado será igual a qualquer outro estilo, mexe com quem o ouve. E isso até é verdade. Mas é só parte. O resto vai mais além. Quem o sente e ama, e se inflama por ele ao ponto de o tatuar na pele – como o técnico de som Baptista, na capa desta edição –, sente mais. O fado não é um estilo musical qualquer. Carrega com ele uma identidade. Neste caso, a portugalidade.
É por isso também que quem gosta de fado fecha os olhos a ouvi-lo, mesmo que esteja a trabalhar. E esse simples gesto aproxima-o do seu país, da sua comunidade. É Portugal que está em palco quando um fadista dá um concerto no estrangeiro. Em palco e atrás dele.
[Publicado originalmente na edição de 11 de janeiro de 2015]