Um das vantagens da idade, tão acusada de desprezar a memória, é ver tantas pessoas a saudar-nos de passagem. Elas vêm do nevoeiro, reaparecem-nos e partem, de vez. É como aquele cidadão pacífico que, de madrugada, nos fazia adeus na Praça do Saldanha. Só que ele estava no passeio, nós é que passávamos e, do que aqui falo, quem passa são os outros. Agora, foram umas sobrancelhas como nunca houve na política internacional. The Times titulou: «Denis Healey, o melhor primeiro-ministro que a Grã-Bretanha nunca teve». Caso raro, o título do The Guardian foi o mesmo. Ele morreu na semana passada, tinha umas sobrancelhas espantosamente hirsutas, a ponto de dar gosto não apará-las. E razão tinha em não o fazer, eu reconheci-o logo quando veio despedir-se em notícia. Já a bela fórmula, as palavras cuidadas dos títulos dos jornais, homenageava uma marca de água do político: era um frasista.
Denis Healey fez parte da esquerda trabalhista que foi obrigada a entregar o poder à senhora Thatcher. Antes disso, ele foi ministro das Finanças nos anos maus de 1970. Nessa altura, recordou os tempos em que era jovem comunista, estudante em Oxford, quando se punham questões filosóficas: «Quem é que fará o trabalho sujo no socialismo?» Já ministro, com a economia em pantanas e obrigado à humilhação de chamar o FMI, ele disse: «Agora já sei a resposta para aquela pergunta sobre quem faz o trabalho sujo: é Denis Healey!» Quando até a autoderrisão é desse calibre, os adversários deviam cuidar-se. Um dia, o seu sucessor nas Finanças, o conservador Geoffrey Howe, meteu-se com ele no Parlamento. Na resposta, Denis Healey disse que se sentiu «violentamente atacado por um carneiro morto».
Adoro um bom insulto. Como definir isso? Tudo o contrário daquele encontro impotente, há dias, entre o Bruno de Carvalho do Sporting e o Pedro Guerra do Benfica, num programa desportivo da TVI. E, no entanto, a coisa prometia, no desporto deve haver fair play e, ali, houve: estavam bem um para o outro. E a cabeleira de ambos era farta, parecia de antigos futebolistas dos Balcãs – terra que não é para brincadeiras, nem de «agarra-me senão bato-lhe». Mas tirando esses dois indícios auspiciosos – o fair play e as cabeleiras – nada do que eles praticaram evocou uma discussão radical, de homens a sério. «Mentiroso!», dizia um. «O meu caro amigo é que está a mentir», dizia o outro. Foi um derby de chihuahuas.
Se querem saber o que é um bom insulto, exercício para homens (definição de homem, específica para casos destes: ser que sabe ser mau como as cobras), contraponham o diálogo dos carneiros mortos do Bruno e do Guerra com a truculência de Manuel Serrão. Este podia ter enveredado pelo mesmo exercício gritado. Afinal, ele é tripeiro, vem duma cidade que inventou «morcão» e «badalhoco», tão expressivas e com a vantagem de serem mais curtas do que «o meu caro amigo é que está a mentir»… Mas não, Serrão soube usar a graça do bom insulto. Manteve-se quase em silêncio e no fim ofertou ao moderador do programa e ao convidado, dois peixes de faiança. Os peixes, sabe-se, morrem pela boca. PAF!, diria eu, se a onomatopeia não tivesse sido estragada.
Adoro um bom insulto. Um dia, jornalista em início, derretia- me com os elogios que se faziam na redação a uma reportagem minha. A mais respeitada assinatura do jornal, que não ia à bola comigo, decidiu pronunciar-se: «Também gostei, surpreendeu-me muito.» Lembro-me desse insulto mas dos elogios daquele dia, nenhum. Adoro, julgo já ter dito, um bom insulto. Nunca saio sem um punhado deles no bolso. À partida tenho gente fisgada que merece este e aquele, mas faço os possíveis para não provocar o encontro que me permita insultar com gosto. Embora, tenho de confessar, agora ande com um, caso me cruze com Bruno Carvalho ou Pedro Guerra. Ao primeiro que encontrar, direi: «Fique um bocadinho aqui comigo – preciso de estar sozinho.»
[Publicado originalmente na edição de 11 de outubro de 2015]