São trabalhadores. Com todas as designações oficiais a que isso dá direito – como a de reformados. Os cães-guia foram o olhar de quem não pode ver enquanto tiveram saúde. E depois? Depois, depende da sorte. Muitos destes cães regressam à escola onde se formaram, em Mortágua, a única no país, onde ficam até morrer. Outros voltam às famílias que cuidaram deles nos primeiros anos.
Este cão tem histórias do arco-da-velha…» As frases de Ricardo Marques parecem terminar todas com reticências, um meio sorriso e a anuência de Miki. Um leve chiar que deve ser um «obrigado», ou um «vá, já me passaste a mão pelo pelo, deixa-me lá ir ali ver aquela senhora».
Estamos em Coimbra, sentados num chão de paz com vista para a colina dos estudantes. Miki tem artrose. Foi Amaro, o dono dele nos últimos sete anos, quem o disse. Toca o telemóvel de Ricardo. É Amaro. «Estamos aqui com o pessoal da escola, está ótimo.» Amaro é cego e a artrose de Miki limitou-lhe os movimentos. Pela lentidão com que se move, não pela recusa em mostrar-lhe o mundo – porque um cão-guia labrador retriever nunca, mas nunca, esquece que a vida dele é levantar-se e guiar. «Vai sempre, nem que tenha as patas a esfolar no alcatrão a derreter», dizia-nos, dias antes, em Mortágua, o presidente da única escola de cães-guia para cegos que existe em Portugal.
Miki guiava todos os dias Amaro de Cascais a Lisboa, em transportes públicos. Agora é apenas um saco de mimo. Voltou, no fundo, a ser um cão como qualquer outro, em casa de Ricardo. «Um cão reformado tem a vida que quer. Partilha tudo o que fazemos, a lareira, os cobertores, a cama no chão com a filha, tudo isso… Está connosco há oito dias e já fez mais estragos do que as duas cadelas que tenho em três ou quatro anos. Basicamente passa o tempo a descansar e a estragar, não é cão?»
Miki tem 10 anos. A artrose reformou-o mais cedo do que os que com ele aprenderam a tratar a vida urbana por tu, para fazê-lo por quem não pode. Ricardo sabia que haveria de recebê-lo de volta. Tinha sido um cão demasiado especial. E agora voltou ao seu primeiro cuidador. Tal como acontece com muitos outros cães-guia: regressam à família de acolhimento.
Teve sorte, Miki. Nestlé, 8 anos, reformado por um tumor, também. Apesar do peso do descanso ao cabo de anos de trabalho, mexe-se como um cachorro. Marta Ferreira atura-lhe a velhice. Tal como lhe aturou a casmurrice de cachorro aprendiz, na escola. Está connosco, à beira-Mondego, depois de nos ter mostrado o que é o dia de um educador de cães de trabalho. Depois de nos ter feito ver o que é entregar a vida a um cão, olhos fechados na cidade. Uma cegueira segura que tem uma mão amiga.
Marta Ferreira é educadora de cães-guia. Este ainda é novo, há de ser entregue a um cego, mas quando tiver de se reformar talvez regresse para os cuidados da treinadora, que já tem um cão de 8 anos aposentado devido a um tumor.
Kieva e Kyami têm 13 anos. Gooffy tem 15. Não têm a mesma sorte, ainda que não se possa dizer que é de azar a vida que lhes resta. Estão em Mortágua, na escola, a acabar de viver depois de terem dado a vida à causa. São cães-guia reformados, uma quase novidade em Portugal, onde a educação destes animais tem 17 anos. A esperança de vida dos labradores é de 14 a 16 anos. Os primeiros cães-guia portugueses já morreram. Camila, a mascote, está enterrada no jardim da escola. Os restantes estão a reformar-se. E nem sempre há quem os queira.
Cimba
Cimba também anda por ali. Goza a reforma antecipada por desvios comportamentais (fez-se excessivamente protetor da dona). Não gastou a energia toda na vida de trabalho. «O gajo está muito esperto, ainda…», diz Vítor Costa, educador na Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual. O cão acabara de esgueirar-se para a amplitude do terreno, rápido, imprevisível e já heroicamente a ignorar o osso de borracha que punha a chiar, aos saltos, minutos antes. E é dos que tiveram mais sorte no fim de vida. Foi acolhido dias depois de o conhecermos.
UM CÃO-GUIA É O CÃO QUE SE SENTA quando lhe ordenamos que avance através de uma avenida movimentada. Um cão-guia é aquele que se levanta, ignorando a velhice que lhe atrasa as pernas, quando Mariana Rocha tira o casaco do armário. Era assim o Júnior. Sentada à secretária do gabinete jurídico da Administração Regional de Saúde do Norte, Mariana não consegue conter as lágrimas no olhar vazio. Uri, três anos e uns pós, está no chão, ar totalmente parvo a posar para a câmara. «Está na posição sexy?» Sim, Mariana. «O Júnior… fez 14 anos, é um cão idoso…» O discurso trava-se, a garganta encolhe-se. «Está bem, sem dúvida», com Sabina, a educadora que fez dele um senhor cão, há 12 anos.
Mariana não tem receio de parecer deslocada. Tem um bebé, sabe o valor da vida. «Se o Júnior não ficasse bem entregue, eu desistiria do Uri para guardá-lo.» Desistiria de ter olhos, é o que nos diz, a tremer. Ainda tentou manter os dois, tinha possibilidades para isso (é ao cego que compete alimentar e cuidar da saúde dos animais), só não contava que o jovem sexy quisesse brincar tanto com o Júnior e que este quisesse tanto ficar quieto, porque já tinha dado para esse peditório. «E um cão idoso exige muita atenção. É como os velhinhos, quer as coisas à maneira dele.»
Só a partir dos 24 meses é que os animais têm maturidade suficiente para ser entregues à pessoa cega. Uri é o segundo cão-guia de Mariana Rocha. O primeiro, Júnior, esteve com ela 12 anos.
«Já estava numa altura em que não era justo que continuasse a trabalhar. E já não dava conta das escadas.» Já não conseguia fazer todo o trajeto de casa ao escritório, cansava-se, ainda que nunca recusasse. «Muitas vezes os seres humanos também não estão para tomar conta dos velhinhos…» Com os cães menos ainda. Arrastam-se, distraem-se nas necessidades. «Não é qualquer pessoa que se sujeita a tomar conta destes seres como eles merecem. Deram tudo, deram a sua vida, os melhores momentos da sua vida, para as pessoas cegas.»
Ter um cão-guia, diz Mariana, é confiar de tal maneira nele que já nem se pensa no trajeto. Pensa-se em tudo menos em obstáculos, escadas, a busca do destino. Porque se tem um cão no qual se confia. Além disso, as atenções passam a ser direcionadas para o cão. Deixam de perguntar por Mariana e ela fez-se uma pessoa como as outras. Uri está a aprender tudo isto, devagar. «É o nosso melhor amigo.»
«É egoísmo, mas é assim: um animal destes não te dá alegria, não corre, não brinca.» Vítor atira o osso azul que chia e Cimba corre, contrariando-o. Um bocado, apenas. «Estão neste parque, vivem em conjunto e os educadores têm o maneio deles.» E dão-lhes «um final de vida digno, que tanto merecem. Os velhotes são como as crianças, também se aproveitam um pouco de nós. Ouvem mal, a gente chama-os e eles borrifam-se e vão, vão, vão.»
É uma «reforma dourada», como lhe chamaria o presidente da escola, João Fonseca.
Por ordem de prioridades, o cão reformado fica com a pessoa com quem viveu ou alguma pessoa da sua confiança, regressa à família de acolhimento que o criou ou vai parar à escola, que nunca deixou de ser proprietária dele e de onde pode ser adotado por qualquer pessoa. De qualquer canto do país. Em França, onde a cultura dos cães-guia tem seis décadas, existe uma rede de famílias de acolhimento «só à espera de cães reformados». Um sonho de ideal.
Paula Duarte mantém a Ioga deitada com uma simples ordem, das que todos deveriam dar aos seus cães. É esse o trabalho, simples, de uma família de acolhimento de cães-guia: a socialização. A ideia de acolhê-los surgiu porque o marido e o filho se apaixonaram pela visão de alguém a passear com um labrador com aquele sinal azul e laranja. A Ioga é a terceira, negra reluzente, a paz no olhar de trabalhadora. Antes fora a Aya, que foi embora em julho, «com muita dor», mas com «uma ambivalência de sentimentos». Porque são cães que fizeram tudo com eles, o cinema, o restaurante, o supermercado, o trabalho (no Instituto de Apoio à Criança, no caso de Paula), e porque enche o coração saber que vão por uma boa causa, como os filhos que saem de casa quando crescem.
«AS CONTAS SÃO FÁCEIS DE FAZER», dividindo o orçamento anual da escola pelo número de cães entregues. O financiamento da escola vem em 60 por cento da Segurança Social – João Fonseca recorda a celeuma que foi, na altura da constituição legal, pedir ao Estado para financiar cães. O resto vem da boa vontade de todos. De escolas que apadrinham animais, de doações, de eventos para angariação de fundos, de associados… «Temos de arranjar cerca de cem mil euros extra Estado». É assim desde que o projeto nascido de fundos europeus passou a associação de pleno direito. O apoio da Segurança Social está fixado com base na formação de 14 cães por ano. «Se formarmos 16 ou 18, não recebemos nem mais um tostão.» Em 15 anos, foram entregues 154 cães. No momento em que é entregue ao cego cuja vida vai guiar, um cão custou 18 mil euros.
O custo da formação obriga a que sejam selecionados, com genealogia estudada, inseminação artificial, garantias de que o investimento não será em vão. É a mesma razão que dita a dificuldade em transformar um cachorro oferecido, sem traçabilidade, num cão-guia. Pode ser em vão. O processo, resumido por João Fonseca, é simples: às 8 semanas, os cachorros vão para as famílias de acolhimento, que não têm gastos com eles. Aos 12 ou 13 meses, passam a semana a aprender na escola e nas cidades próximas (Coimbra e Viseu) e regressam à família para férias e fins de semana. Oito meses chegam para interiorizar a lista de ordens que fazem deles guias, mas a maturidade que os põe a tomar decisões como essa de não atravessar só chega perto dos 24 meses. É aí que são entregues, não sem antes de a pessoa que o recebe (gratuitamente) passar uma semana em Mortágua a aprender a «utilizar» o cão. Segue-se uma semana em que o educador está próximo da residência do cego. E depois é deixar a vida correr. Até à reforma. Quando regressam.
«Fico com a Aya quando ela se reformar, claro!» Paula é perentória. Será um cão calmo, numa família com espaço para lhe dar amor. Está decidido. Sem volta. E ainda bem que parte das famílias de acolhimento são como a de Paula. Só mesmo essas para receber de volta um animal que «só ali está até acabar os seus dias», diz João Fonseca. Não será um companheiro. «Estes cães reformados passam a maior parte do dia deitados, estão muito cansados, caminharam muitos quilómetros, muita hora, muito trabalho. Querem sossego. Por vezes, até há cães extraordinários e bonitos, mas não são cães com que se pegue numa bola e se vá brincar para o jardim. Hoje em dia, quase todos os nossos funcionários têm um reformado em casa.» Para evitar que fiquem em canil. Marta é apenas uma delas. «O Nestlé estava a trabalhar em Lisboa. Tem problemas oncológicos e já não pode estar a trabalhar nem ficar com a utilizadora, que vive sozinha. Regressou e ficou comigo. Sempre que nos é possível proporcionar-lhes algum conforto, porque não fazê-lo?»
Nestlé rebola, faz pose, tenta saltar. Saúda os gatos pretos que andam por ali à roda da carrinha estacionada e que são uma excelente formação de tolerância para os cães-guia – é um dos ensinamentos, deixar os felinos entrar nas vidas deles. «Há pontos positivos e negativos. Há o lado afetivo e a companhia de um cão mais calmo, que teve a sua função social importante e agora merece um carinho especial. E há o saber que, logicamente, terá um curto período de vida…»