O estudo da espiritualidade e o apoio à investigação científica nessa área são paixão e desígnio de vida de Luís Portela. No ano em que a Fundação Bial comemora o 20.º aniversário, o presidente renova a determinação em desvendar alguns mistérios da humanidade.
Para honrar um abraço do pai abdicou da medicina e da investigação em Cambridge na área que o fascina desde a adolescência – a parapsicologia. Dedicou-se à empresa familiar e trouxe à Bial, responsável pela criação do primeiro medicamento português, grandeza internacional reconhecida. Luís Portela nasceu em 1951, no Porto, filho único de sua mãe, segundo dos quatro filhos do pai. Discreto, contido, quase sempre sério, em contraste com os presidentes que o antecederam, sobretudo o avô narcísico e exuberante. Mas também o pai, a quem o lado conservador do filho preocupava, considerando-o um jovem antiquado. O miúdo essencialmente tristonho cresceu decidido a cumprir dois desafios maiores: «ser um homem honrado e formar família» e «ajudar ao esclarecimento espiritual da humanidade». Dir-se-ia que ambos foram vencidos mas falamos de alguém que ainda hoje vê o divórcio como a maior derrota dos 63 anos de vida. Apostando forte na ciência, soma dúvidas a grandes convicções e crê-se partícula de energia que anima temporariamente um corpo físico – e, claro, jura que não há só uma vida.
Estou a falar com um licenciado em Medicina, um psicofisiologista, cara de uma empresa farmacêutica internacional, um homem da área da investigação científica, que crê na reencarnação e na teoria das vidas sucessivas, crença que se associa a homens de pouca fé na ciência. Aparentemente, pode considerar-se uma contradição.
_ Sou um homem de convicções mas, acima de tudo, tenho dúvidas. Desde muito jovem, desde os 12, 13 anos, me pergunto por que razão a humanidade aceita de forma tão fácil, talvez demasiado fácil, fenómenos descritos desde a antiguidade que, no entanto, a ciência renega liminarmente. Eu escolho o caminho do meio – nem falo em milagres nem digo que é tudo charlatanice. E escolher o caminho do meio significa estar disponível para analisar esses fenómenos de acordo com o rigor do método cientifico, ajudando a humanidade a conhecer-se melhor. A minha convicção profunda é que alguns desses fenómenos são balelas e, portanto, é bom que sejam desmascaradas. Mas também é minha convicção profunda que alguns correspondem a determinadas formas de energia desconhecidas ou ainda pouco conhecidas. Ao longo da minha vida, como apaixonado pelo tema, sempre me mantive atento, quer às neurociências quer à parapsicologia. Há um conjunto de evidências comprovadas pela ciência que me fazem crer que este é o caminho a seguir.
Que vidas passadas terão sido as suas. Pensa nisso?
_ Há uns 20 anos, fiz um curso de terapia regressiva, não para exercer, mas na procura de um melhor conhecimento de mim próprio. Não que seja muito curioso, mas sinto necessidade de perceber as coisas para melhor me orientar. Durante o curso estive no papel de terapeuta, mas também no de paciente, em situações passadas, naturalmente. E posso dizer que são experiências muito fortes, parecendo mesmo que estamos a vivenciar esse passado em direto. Considero coisas de uma grande delicadeza, que devo guardar para mim.
Esse discurso não é uma porta aberta para as pseudociências?
_ A parapsicologia tem sido alvo de muitos oportunistas e de muita trapalhada, mas isso acontece precisamente devido à ignorância que grassa na área. Um mal que a ciência pode resolver, arregaçando as mangas no sentido de estudar esses fenómenos. Pasteur teorizava em torno da existência dos micróbios. Chamaram-lhe tolinho até o microscópio demonstrar que aquele mundo existia. Aqui é o mesmo – resta saber qual o equipamento, material ou não, que pode trazer à luz o que existe. A ciência deve investigar o que lhe compete.
Mas serão esses fenómenos passíveis de uma investigação e de uma verificação científicas?
_ Nas últimas décadas, dezenas de universidades nos Estados Unidos e na Europa têm trabalhado nesses estudos e assim aumentado o conhecimento nessas áreas. Há vinte anos, a acupuntura e a hipnose eram mal consideradas. Hoje, são praticadas em muitos hospitais europeus. Alguns religiosos dizem que uma coisa é a religião; outra a ciência. Pois eu não vejo razão nenhuma para que fenómenos descritos desde a antiguidade até hoje sejam ignorados. A ciência não tem o direito de abdicar de fazer esse trabalho de esclarecimento.
Há evidência de vidas passadas e futuras?
_ Cito o exemplo maior nessas áreas, o professor Ian Stevenson, que foi diretor do departamento de psiquiatria da Universidade da Virgínia. Ele e a sua equipa estudaram vários casos de crianças que relatavam dados de vidas passadas para os quais a sua equipa foi, depois, procurar verificação. Mais de 2500 casos permitiram a recolha de evidências de vidas passadas. A teoria das vidas sucessivas e a existência da alma ainda não podem ser consideradas como cientificamente demonstradas. O próprio Stevenson o disse. Mas o cientista deixou evidências que, agora, importa aprofundar. Por exemplo, algumas destas crianças apresentam cicatrizes de nascença, semelhantes às das pessoas que dizem ter sido em vidas passadas.
Que explicação encontra para o facto de se tratar de fenómenos tão pouco comuns?
_ A teoria das vidas sucessivas admite que na vinda à Terra desmemoriamos todo o passado, para melhor nos adaptarmos à vida neste planeta.
Alguns desses fenómenos têm explicação na biologia e nas neurociências.
_ No mundo da ciência, na ausência de conclusões duvida-se e duvidar é bom. Rejeitar sem estudar não me parece adequado.
Vida sucessivas, todas elas vividas na Terra? Numa evolução?
_ Olhando para o universo, teoricamente, não faz sentido que todas tenham sido na Terra. A Terra parece-me um mundo-escola, onde vimos vezes sucessivas, para aprender, para evoluir. Não quer dizer que não haja outros mundos-escola. Vimos cá umas vezes como pobres, outras como ricos, como homem ou como mulher, em diferentes etnias. Vimos a este mundo por nossa escolha, para nos aperfeiçoarmos e escolhermos o ambiente cultural, social e geográfico que mais pode ajudar-nos a melhorar.
As suas convicções baseiam-se também em experiência pessoal?
_ Estamos de novo numa zona íntima, mas posso dizer que, pela minha experiência de vida, física e espiritual, não me considero este corpo físico que está à sua frente. Considero-me a partícula de energia que anima temporariamente este corpo físico. Esta convicção é resultante da minha experiência de vida material e espiritual.
É um homem religioso?
_ Respeito as religiões, mas não sinto necessidade de perfilhar nenhuma. O caminho da espiritualidade é um caminho aberto a todos. Entendo que no mundo da espiritualidade cada um deve fazer o seu percurso, no respeito do percurso dos outros. Não gosto de dogmatismos nem de oportunismos. Gosto da simplicidade e de uma procura transparente da verdade. Acho que se deve investigar não para tentar demonstrar que isto ou aquilo é verdade ou mentira, mas para levantar o véu da ignorância.
Acredita na força do pensamento. Atribui-lhe uma validade semelhante à da gravidade, por exemplo?
_ Há algumas diferenças. Na eletricidade ou no magnetismo, por exemplo, as forças de sinal contrário atraem-se e de sinal semelhante repelem-se. No pensamento é ao contrário. Quem pensa positivo está a atrair positivo e a repelir negativo e quem pensa negativo atrai negativo e repele positivo. A transmissão de pensamento ou telepatia, por exemplo, é estudada em universidades da Europa e dos Estados Unidos e já não se põe a questão se ela existe ou não existe. Existe. Está bem estudada entre irmãos e pessoas muito próximas, apesar de, nalguns casos, estarem a quilómetros de distância.
Acredita que é possível prejudicar ou ajudar alguém através do pensamento?
_ Podemos ser nefastos a outras pessoas utilizando a energia de várias formas – pelo pensamento, pela palavra, pela atitude. Relativamente ao pensamento, está mais ou menos demonstrado que se emitirmos pensamentos positivos podemos ser úteis a uma pessoa e vice-versa. Agora, se se admite que podemos emitir pensamentos que podem influenciar os outros, também se admite que cada um de nós tem a capacidade de se defender. Estes estudos podem ajudar-nos a aprender a usar essa força e precisam de ser continuados. Durante todo o século XX, a humanidade fez um esforço enorme para se conhecer melhor do ponto de vista científico. Hoje conhecemos a realidade material e o corpo físico a um pormenor impensável há cem anos. Mas a espiritualidade ficou para trás, foi pouco estudada.
A que se deve o desinteresse da comunidade científica por esses temas?
_ Criou-se a tal divisão que me intrigava desde criança – por um lado aceita-se tudo; e por outro renega-se tudo. Faltou cultura científica em torno deste tema. A área da espiritualidade ficou para trás. O que eu e muitos mais desejam é que no século XXI seja feito um esforço nesta área semelhante ao que foi feito relativamente à materialidade no último século.
A ciência foi matando a espiritualidade?
_ Não a estudou devidamente. Claro que, investigando tão bem a matéria, a humanidade ficou focada na matéria. E tão focada esteve na matéria que ignorou o resto. Mas o cenário está em evolução. Anualmente são publicadas centenas de artigos destas áreas, e alguns chegam a jornais científicos de grande qualidade. Antigamente era apenas a rapaziada da parapsicologia, mas agora não: há gente da medicina, da psicologia, da física, da matemática, da filosofia, interessados num trabalho interdisciplinar.
Refere num dos seus livros o gosto pela meditação. É prática diária?
_ Cada um de nós pode encontrar-se na mais profunda intimidade por qualquer via. Há quem utilize a da meditação, há quem utilize a da oração, há quem utilize a da regressão. Eu prefiro a via da meditação. Guardar para mim alguns minutos diários para relaxar, partir ao encontro do meu eu e fazer um exercício muito básico: onde estou, o que me aconteceu nas últimas 24 horas, para onde quero ir, o que desejo que aconteça nas próximas 24 horas comigo próprio. Mais do que corrigir o mundo, quero corrigir-me a mim, procurando levar uma vida saudável e equilibrada, em harmonia com a natureza.
E quando tem uma gripe, o dono da Bial recorre ao paracetamol ou a um chá da medicina alternativa?
_ Tomo os comprimidos da medicina tradicional. Considero-me um membro da ciência ocidental e aposto nela, como é público. Mas também acho que a medicina oriental merece respeito. A verdade é que essas medicinas ditas alternativas conseguiram em muitos casos boas soluções para os problemas. Deve haver uma abertura.
A Fundação Bial, criada em 1994 para estudar a espiritualidade humana, já apoiou 460 projetos, desenvolvidos por mais de mil investigadores de 26 países. No ano da comemoração do 20.º aniversário, que trabalhos destaca?
_ A fundação tem uma página da internet onde disponibiliza os resultados de todos os trabalhos. Para que possam ser discutidos, organizamos de dois em dois anos um simpósio, na sede da Ordem dos Médicos no Porto, no qual os nossos bolseiros apresentam a uma plateia formada por gente prestigiada das neurociências e da parapsicologia os seus trabalhos. Os resultados que no início achei muito interessantes foram os obtidos na psicocinese («movimento à distância») com animais. Mais recentemente, agrada-me muito o facto de cada vez mais investigadores de outras áreas se interessarem por estas questões. O número de papers cresceu muito e alguns deles são francamente bons.
Por que razão só assumiu abertamente a defesa da espiritualidade depois de trocar o cargo de CEO da Bial pela presidência não executiva? Ou é uma coincidência?
_Não é. Durante todos estes anos evitei misturar as coisas. Mas ao longo de todos estes anos sempre fui encontrando abertura e apoio. A Fundação Bial foi criada com o apoio do presidente da República Mário Soares, da Ordem dos Médicos, do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas. E tem sido gerida por esse conselho e pelos Laboratórios Bial. Merecemos o respeito porque ficou claro que exigiríamos o rigor do método científico. Temos um conselho científico de trinta personalidades dos mais diversos países, ao mais alto nível. O meu livro Ser Espiritual – Da Evidência à Ciência, primeira obra em que exploro de forma mais aprofundada a minha visão da dimensão espiritual, vai já na 18.ª edição. No último ano, fui convidado para mais de cinquenta intervenções públicas por universidades, instituições do ensino secundário, bibliotecas públicas, associações culturais e doutrinas religiosas. Recentemente, em meados de novembro, a Gradiva publicou uma reedição, revista e atualizada, do meu livro Serenamente, que tinha tido duas edições em 2001. O livro esteve esgotado nos últimos anos com grande procura dos leitores e, efetivamente, a terceira edição esgotou rapidamente. Foi já publicada uma quarta edição.
Garantem-me que algumas figuras públicas lhe relatam casos «estranhos».
_ Muitas. Que não posso revelar.
E relativamente à família, prega no deserto?
_ Não ando a vender as minhas ideias, nem na minha família. Tenho cinco filhos, uns estarão mais próximos das minhas convicções do que outros.
Escolheu medicina sobretudo para obter resposta a estas questões. Mas o interesse vem da adolescência como já disse. É verdade que começou a ler a Bíblia com 13, 14 anos?
_ É verdade. Hoje, confesso, parece-me um pouco estranho que um adolescente se interesse pela leitura comparada da Bíblia católica com a protestante, por exemplo. E que ainda lesse livros sobre ioga, budismo, espiritismo. Gostava de confrontar informação.
Nessa altura já pensava em medicina?
_ Em miúdo, queria ser polícia sinaleiro. Com 15 ou 16 anos coloquei a hipótese de ser frade ou monge budista.
Procura da meditação?
_ De purificação. Não para expiar pecados, mas o prazer de nos conhecermos melhor, de identificarmos os nossos erros, de procurarmos corrigi-los. O prazer de evoluirmos.
Não devia ter muitos interlocutores da mesma idade. Falava com amigos desse interesse?
_ Na meninice fiz, de facto, um percurso algo isolado, que foi sendo alargado ao longo da adolescência. Por vezes falava com adultos. O meu avô materno tinha um amigo que se interessava por estas coisas e que até me emprestava livros, muitos deles proibidos naquela época. Falava também com uma amiga da minha mãe. Mas gostava de brincar com os outros miúdos, de jogar à bola, por exemplo, embora tenha sido um miúdo essencialmente tristonho.
Porquê?
_ Fui uma criança tranquila, sem necessidade de manifestações efusivas. A fase pré-escolar, de pouco convívio com os amigos, foi marcada por uma forte ligação à minha mãe e aos meus avós maternos.
Que tipo de mãe foi – e é, tem hoje 93 anos – a sua?
_ De uma grande exigência mas muito dedicada ao filho. Antes de mais a relação com a mãe era, é, de grande respeito. Mandava fazer e eu fazia. Quando entrei para a primeira classe já sabia ler e escrever e fazer algumas contas porque ela se preocupava e me ensinava. Nessa época, aprendi a brincar sozinho. O meu pai ofereceu-me umas joelheiras de guarda-redes e eu treinava, defendendo uma bola que eu próprio atirava contra a parede.
Apesar de o pai o ter perfilhado, mal a lei permitiu, até que ponto a relação distante dos seus pais determinou «o miúdo tristonho»?
_ Vivi com o meu pai até aos 3 anos. Só voltei a viver com ele 17 anos depois, tinha eu 20. Mas, apesar de os meus pais viverem separados e de pouco comunicarem entre si, tive a sorte enorme de ter sentido sempre que era muito amado pelos dois. Manifestavam-no de maneira diferente, mas o amor era intenso. E ambos tinham preocupação de me preparar bem para a vida. E portanto, quando a minha mãe, na altura com muito pouco dinheiro, propôs ao meu pai que eu fosse para um externato caro, o meu pai nem hesitou…
E gostou do externato?
_ Externato Vieira de Castro, na Rua da Alegria, no Porto. Era um ensino exigentíssimo. Só percebi o que era um recreio em conversa com um miúdo que andava numa escola pública, estava eu já na quarta classe. Não havia nem recreios, nem intervalos. Devo dizer que não sofri nada com isso. Pelo contrário, ganhei hábitos que mantenho. Ainda hoje sou capaz de me sentar a uma mesa a trabalhar quatro ou cinco horas seguidas. Interiorizei hábitos de trabalho fortes. Se a ideia dos meus pais era preparar-me bem para a vida, foram bem sucedidos. E tirando desenho à vista, uma tortura, era aluno de muito bom.
E emocionalmente também o prepararam bem?
_ Não querendo criticar os meus pais, a minha experiência nesse aspeto não foi tão rica. Senti sempre que gostavam muito de mim, mas não eram de grandes manifestações de afeto. Na época, em geral, os pais eram bem mais distantes. Abraçavam e beijavam pouco.
Como é com os seus cinco filhos?
_Penso que sou o contrário. Gosto de tocar, de beijar, de abraçar filhos e netos.
O pai insistia para que fosse para Farmácia, o filho insistia em Medicina e investigação. No dia em que o filho cede, o pai diz que ele tem sim de seguir a vontade própria. E dão um abraço. Esse encontro, essa conversa já descrita por si numa entrevista, é muito emotivo.
_ Foi uma cena muito bonita. Passei a minha juventude com o meu pai a pressionar-me para fazer Farmácia ou Economia, a pensar, claro, na empresa. E eu a resistir. No último ano do liceu, o meu pai pressionou um pouco mais. Dentro da minha perspetiva de que na vida não devemos ser muito exigentes, temos sim de nos adaptar, pensei «quem sou eu agora para lhe negar essa vontade». E a dias de fazer a inscrição na universidade, fui ao gabinete dele anunciar-lhe formalmente que ia para Farmácia. Olhou para mim, levantou-se, deu–me um fortíssimo abraço e a chorar disse-me que não tinha o direito de me impor um caminho. Que deveria seguir o meu. Chorámos os dois e posso dizer que esse momento foi determinante para eu estar hoje nesta casa, na Bial. Esse momento selou de tal forma a nossa relação que a decisão tomada anos mais tarde de ficar na empresa foi uma forma de honrar o trabalho do meu pai e aquele abraço. E sempre aqui estive com muita dedicação e paixão.
Nunca se arrependeu de ter abandonado a medicina, a docência na faculdade, de ter prescindido da bolsa que lhe permitiria fazer investigação em Cambridge na área da espiritualidade, a sua paixão?
_ Na vida, devemos dar o nosso melhor mas não devemos ser demasiado exigentes. Nunca me arrependi, nem nunca me senti infeliz. Quando estava na encruzilhada – fico ou sigo –, pensava na sorte que tinha por ter duas boas soluções. Eu tinha engendrado ser médico e investigador. Acabei por não seguir esse caminho, adaptei-me. Mas como a minha paixão sempre foi poder dar um contributo para o esclarecimento espiritual da humanidade, quando decidi ficar na Bial prometi a mim mesmo que, quando tivesse algum dinheiro, ajudaria outros a fazerem o caminho da investigação. Assim nasceu a Fundação Bial. Foi tudo acontecendo naturalmente.
«Onde o meu pai era mais liberal eu sou conservador, onde o meu pai era homem de várias paixões eu sou homem de uma só mulher», li numa entrevista. Como era a vossa relação?
_ De grande respeito. O meu pai tinha da vida uma conceção mais liberal, gostava dos prazeres da vida. Eu tenho uma postura mais ascética, mais espartana, sou assim desde miúdo e fazer o contrário é um sacrifício. As pessoas dizem, no entanto, que eu sou parecido com ele e não só fisicamente. Mas minha maneira de ser é mais próxima da dele do que da da minha mãe. Mas comparado com o meu avô, esse sim muito extrovertido, no dia-a-dia o meu pai era até um homem reservado. Com gostos que eu respeitava mas que não seguia. Já eu homem, falámos sobre isso algumas vezes.
Esforçava-se por contrastar dele, agradava-lhe mostrar-se diferente?
_ Não, nada. Sempre percebi que há várias opções de vida. E, felizmente, quer a minha mãe quer o meu pai deixaram-me ter as minhas. Sobretudo o meu pai, que era aquele com quem mais divergia em relação a opções de vida. E ele achava que eu tinha uma postura antiquada e gostos que para ele não faziam sentido.
Filho único do lado materno, é o segundo dos quatro filhos do pai. Nesses anos como era a relação com o irmão mais velho?
_ Inexistente
E com os avós paternos?
_ Só conheci os meus avós aos 9 ou 10 anos. A relação com o meu avô Álvaro era distante, conheci-o muito mal. Com a minha avó foi diferente. Lidei com ela vários anos, sempre numa relação muito carinhosa.
A avó que conduzia e fumava.
_ Foi das primeiras mulheres a fumar e a conduzir no Porto. Era uma senhora da alta-sociedade da cidade, filha de um coronel do exército, açoriana, que casou com um jovem de condição inferior mas que se manteve ao lado dele como grande esteio da casa. E o meu pai, filho único, herdou essa forma de estar na vida e na empresa. Pagou as dívidas, procurou dar–lhe uma dimensão industrial, comprando máquinas e equipamentos, e nos dez anos que esteve à frente da Bial racionalizou o projeto procurando dar os primeiros passos na internacionalização.
De onde vem o nome Bial?
_ Dos nomes Álvaro e Almeida, o meu avô e o ex-patrão. Bial. O grande emblema da empresa é o meu avô, até pelo rasgo de criar do nada a Bial. Filho de um merceeiro, foi como empregado de uma farmácia que teve a ideia de criar uma empresa industrial. Fundou-a em 1924 e governou-a durante mais de trinta anos, com muita força e determinação. Era uma pessoa capaz de grandes soluções. Uma personalidade do Porto daquela época, narcisista, no seu Cadillac amarelo descapotável. Quando desapareceu, em 1961, o meu pai assumiu e em apenas dez anos consolidou a empresa.
Quando o seu pai morreu, tinha 21 anos. Ainda estava a acabar o curso, mas começou logo a trabalhar na empresa. Nunca pensou que acabaria por nunca mais sair de lá?
_ O braço direito do meu pai, Duarte Rodrigues, um farmacêutico que trabalhava com ele há anos, foi quem lhe sucedeu até que um Portela estivesse em condições de assumir o lugar. Depois de acabar o curso, trabalhei no Hospital de São João durante três anos e dei aulas na Faculdade de Medicina durante seis. Ao longo desse tempo, fui admitindo que seria o meu irmão mais velho a assumir o cargo e que eu seguiria o meu caminho na clínica e na investigação. Acabou por ser o contrário. Recorri a poupanças, à banca, a um amigo, e comprei as quotas. Julguei que precisava de uma eternidade para pagar os empréstimos – só precisei de cinco anos.
Qual foi o grande desafio profissional?
_ Dar um novo medicamento ao mundo, o que aconteceu em 2009. Diziam que era impossível e resolvemos desafiar o impossível. Apostámos num departamento de investigação que começou com um grupo de quatro ou cinco pessoas e hoje tem 123. É uma equipa forte, com investigadores de nove países europeus, que trouxeram ao mundo um primeiro medicamento de origem portuguesa e estão a preparar agora o segundo. Foram muitas noites mal dormidas, foram muitas as dificuldades, mas conseguimos.
Gestor ou médico, como se declara?
_ O médico já ficou para trás. Primeiro, porque deixei de exercer, depois porque se me pedirem para socorrer alguém fico estarrecido. Já não sei o que fazer. Gosto de dizer que sou um aprendiz de gestor. Fiz alguns cursos no máximo de seis meses e com isso tentei desenrascar-me o melhor possível. E julgo que não me desenrasquei mal. Sempre disse que não gostava de lidar com dinheiro, mas ao longo do tempo fui percebendo que havia uma forma simpática de lidar com ele: investindo e reinvestindo o que íamos ganhando, de forma harmoniosa para a empresa, para os detentores do capital e para os colaboradores. Em 1979, comecei com 162 pessoas. Hoje somos 900.
É uma indústria que nem sempre tem uma boa relação com a ética…
_Foram acontecendo algumas coisas que não deviam ter acontecido, mas hoje as regras estão muito bem marcadas. Ando nisto há quarenta anos e encontro muita confabulação. A verdade vem sempre à tona. E a verdade é que esta indústria tem dado um contributo importante para que os seres humanos vivam mais e melhor.
Grandes desafios pessoais?
_ Ser um homem honrado e formar família. Construir um lar ao lado de alguém é um grande desafio. E, depois, ajudar os filhos a crescer e a serem homens honrados. O prazer de ser útil a nós próprios, aos que nos são próximos e aos outros, eventualmente a todos os outros. Nunca o disse, mas a minha maior derrota nestes 63 anos de vida foi não ter sabido criar condições para que o primeiro casamento durasse até ao fim da minha vida. O divórcio da mãe dos meus filhos foi como a maior derrota da minha vida. Isto independentemente de ter encontrado na minha segunda mulher uma companheira fantástica.
A história de vida dos seus pais influencia essa análise?
_ Nunca associei uma coisa à outra. Mas para mim foi um grande fracasso. Procurei dar o meu melhor e não fui capaz. Mas tenho ainda um desafio existencial que me acompanha desde os 12 ou 13 anos e que guardei, de alguma forma, para a última fase da minha vida: dar um contributo para o esclarecimento espiritual da humanidade. Era isso que pensava fazer toda a vida, a vida levou-me por outro caminho, mas o meu objetivo principal é esse. Desejo que esse seja o meu último capítulo.
BASTIDORES
HISTÓRIAS PARA CONTAR
O gabinete é um pouco a medida de quem o ocupa. Branco nas paredes, racional no espaço, espartano no mobiliário. Apenas o necessário: a secretária de trabalho, a mesa redonda para reuniões, a estante para livros e dossiers relevantes. Mas também há afetos, o outro lado de Luís Portela: nas paredes, o branco – cor predominante nas asséticas instalações Bial – é cortado pela madeira escura de várias molduras: Álvaro, o avô fundador da empresa, num desenho-retrato, o pai, António Emílio Portela, numa fotografia dos anos 1960, vários registos de momentos de convívio com os colaboradores, e diplomas, condecorações, prémios. A cerca de dez quilómetros do Porto, nos limites dos concelhos da Trofa e da Maia, situam-se as instalações da Bial, 120 mil metros quadrados de terreno dominado pela envolvente verde. No terceiro andar do edifício-sede fica o escritório presidencial. Até lá, um longo corredor onde sobressai a vitrina que guarda um pouco da história da empresa, contada através da evolução das embalagens dos produtos da casa. Dos anos 1920 até hoje. De coloridas e ornamentadas à atual caixa branca com a risca vermelha. Chegados ao escritório, seguiram-se três horas de conversa. Alexandra Tavares-Teles