Correu mal a minha viagem pela magia

Notícias Magazine

A desilusão, eu sei do que falo. Um dia, fui intrujado por um amigo, em quem confiava apesar de ele andar na rua com cartola e capa de forro de seda escarlate, bigode de pontas finas e cabelo ensopado de brilhantina. Chamava-se Mandrake e não o vejo há muito. Julgo que desapareceu por causa dos preparos, não os dele, mas do seu companheiro, o negro Lothar, de casaquinho pele de onça e na cabeça um fez turco, um ridículo no vestir que ofendeu os atuais sentimentos antirracistas.

Um dia, dizia eu, o Mandrake contou-me que se aproximou da janela de vizinhos recentes e espreitou uma cena bizarra. Os dois filhos estavam sentados no sofá da sala, atilados como adultos, ele, de calções, lia o jornal e ela, de vestidinho com cinto em laçarote, via televisão. Já os pais, no tapete, brincavam com carrinhos Dinky Toys e bonecas. Admitam, é estranho. Mas nada que levasse a conclusões definitivas, só a suspeitas. Acontece que chamar a atenção de Mandrake era fatal. Ele era homem para transformar em buquê de flores uma pistola que lhe apontassem. Isso em palco leva a palmas mas, numa esquina, para um bandido que pensava estar só a fazer um assalto rotineiro, era um susto tremendo. O que quero dizer-vos é que os novos vizinhos ficaram sob terrível vigilância.

Pouco tempo depois sucedeu algo espantoso. O tempo em que vivíamos – eu, Mandrake, Lothar e Narda de Cocanha (já me estava a esquecer dela, a namorada do meu amigo, uma autêntica princesa) – passava-se aos quadradinhos. Então, num dos quadradinhos, o pai da família foi mordido por um cão e da mão dele saiu sangue. Normal, até aqui. Só que o sangue era verde. Foi então que soubemos, os já mencionados heróis, mais eu, que confiava na palavra de Mandrake, que havia, mesmo, marcianos. Uma coisa é ouvirmos falar de discos voadores, outra é confirmarmos que eles são nossos vizinhos, invertem gerações e em vez de hemoglobina nas veias têm clorofila. Fiquei bastante preocupado.

Entretanto, há meio século mais ou menos, lembro-me de terem chocado dois aviões americanos, um bombardeiro e um avião-cisterna, em Palomares, aqui perto, na costa da Andaluzia. Caíram quatro bombas termonucleares, duas ficaram intactas, duas libertaram parte da carga radioativa e contaminaram os solos. Estes foram logo limpos, disseram-nos, e lembro as fotos do então ministro da Informação de Franco, o galego Fraga Iribarne, e do embaixador americano a tomarem banho na praia de Palomares para nos tranquilizarem.

Nunca tinha visto um ministro em fato de banho e foi esse particular, confesso, que me convenceu. Eu já era antifranquista, mas para um gordo peludo com as mamas descaídas expor-se é porque era sincero… Nesta semana, com a viagem de John Kerry a Espanha, eu soube serem, afinal, necessários 600 milhões de euros para limpar Palomares de radioatividade.

Estas desilusões moem, até porque, disse-me o meu psicanalista, o episódio dos marcianos deixou sequelas. Desde a Mariner 4, a sonda enviada a Marte, em 1964, estive atento. Segui as sondas todas, as Mariner e depois as Viking e as Mars, depois os robôs. Eles procuravam saber do clima, estudar as rochas, procurar água – tiveram dúvidas e certezas, e continuam nisso. Quanto a mim, depois de ver as imagens e ler os relatórios, já tirei a coisa a limpo: em Marte não há sofás com crianças ajuizadas nem graúdos a brincar no tapete.

Às vezes penso que Mandrake, até pelo nome, que é a palavra em inglês para mandrágora, a planta das feiticeiras, me quis avisar. É uma hipótese, até porque também Cocanha, a terra da namorada Narda, é o mítico país do paraíso na Terra… Mandrake talvez quisesse só brincar comigo, mas fez de mim um cínico.

[Publicado originalmente na edição de 25 de outubro de 2015]