Quando vim estudar para Lisboa, em 1965, o meu quarto, na Rua do Quelhas, n.º 9, ficava perto da escola (hoje, ISEG), onde eu frequentava a intenção de não estudar Ciências Económicas e Financeiras. Acho que foi um reflexo prudente, pois, não tendo estudado aquilo, preparou-me para não perceber nada da crise atual, o que aconteceria também se me tivesse doutorado, mas, neste caso, com a sensação de tempo perdido. Eu fazia tudo para não perder o meu tempo. Deitado, ficava desde as seis da manhã a pensar se devia ir à aula prática do professor assistente Vítor Constâncio. A minha mãe metera-me no enxoval um robe chinês de seda, que eu vestia para ir à varanda saber se haveria mesmo a aula prática – era um feito, quase de madrugada, fazia frio e eu vinha de Luanda. Mas era necessária a análise, nenhuma colega entrava no portão do Instituto sem ter passado aos meus pés. Geralmente acabava por não despir o robe chinês, o que, se não marcava um destino – ser Pierre Loti ou Somerset Maugham a andar pelo mundo –, pelo menos assumia a vontade desse destino.
Quando eu entrava no Convento de Santa Brígida das Inglesas, era aí o instituto, felicitava-me por ter chegado tarde, já com as aulas a decorrer. Os claustros vazios ganhavam o seu verdadeiro significado e ver um piano encostado à porta da aula de Constâncio punha-me sonhador. Eram esses os sinais que eu procurava. Em Introdução ao Direito, por exemplo, saboreei o facto de Dias Marques, professor da cadeira, ser conhecido por Didi e, por consequência poética, o seu assistente ser conhecido por Pelé. O mundo começava a fazer-me sentido.
Quando a aula prática acabava, eu deixava de ser o solitário da cantina, fechava o caderno onde apontava as minhas experiências de retiro espiritual e acolhia os colegas. Eu era relativamente popular por causa do robe chinês, a Rua do Quelhas é estreita e eu morava no segundo andar. O quarto dava de frente para a Emissora Nacional. Convenci algumas colegas de que conseguia aumentar ou diminuir o som dos noticiários rodando a torneira da banheira. Não ganhei nada com a revelação, a minha senhoria já estava agastada com a minha mania de banhos diários (o contrato previa um semanal) e não iria permitir que alguém de saias subisse ao quarto. Aliás, também nenhuma colega, naqueles tempos castos, ousou ir confirmar o fenómeno subindo as escadas de quem morava de forma tão exposta.
Continuo, convicto, a contar o episódio da torneira porque não tendo podido confirmar ou desmentir com outros testemunhos a propagação da ondas hertzianas pelos canos da Companhia da Águas de Lisboa, desenvolvi uma síndrome de falsa memória. Essa síndrome recentemente tramou Brian Williams, pivot do canal americano NBC. Na semana passada, ele disse que estava num helicóptero que levou uma bazucada no Iraque, em 2003. Houve vários desmentidos de marines que, esses sim, iam no aparelho abatido. O pivot meteu férias da NBC, o que não é provável acontecer comigo na revista Notícias Magazine porque nenhuma colega foi à minha banheira.
Elas voltavam sempre à aula seguinte e eu não voltava ao meu caderno. Saía do Convento de Santa Brígida das Inglesas pelas traseiras e entrava (eu levava a sério os estudos universitários, documentara-me) no que fora o Convento das Francesinhas e, já então, era um jardim. Outra vez, a poesia em movimento. Tantas madres na Madragoa… No jardim olhava a estátua de Leopoldo de Almeida, um homem, uma mulher e um bebé, fazia sentido, do outro lado da Calçada da Estrela tinha sido o Convento São Bento, de monges beneditinos. Haveria túneis?
Um dia, uma colega contou-me que todo o quarteirão do jardim fora, ainda ontem, havia só 30 anos, uma cidade inteira: «Lisboa Antiga». Ruas, travessas, casas, praças, arcos, pátios e tendas, de estuque e madeira. Durou o verão de 1935. Saltei do instituto, das ciências, para o jardim, o sonhar, e nunca mais quis outra coisa.
[Publicado originalmente na edição de 15 de fevereiro de 2015]