1. Um sorriso. Ninguém se confronta com alguém que sabe ter cancro sem sentir desconforto. Esse desconforto é provocado por uma inevitável fragilidade. Estamos ali, confrontados com o desconhecido. Sabendo que não há nenhuma razão, plausível ou completamente ilógica, que explique porque foi essa pessoa, e não nós, quem adoeceu. Não há nada que nos proteja do que está a acontecer àquela pessoa. Tudo isto, que seria até razão para um certo otimismo – alívio, pelo menos, não nos dá senão para o contrário. Uma angústia cresce-nos dentro do peito, um frio surge-nos na barriga.
Ninguém vai solto e alegre encontrar-se com alguém que sabe ter cancro, com alguém que tem cancro, que fala do cancro sem pruridos ou medos, que abriu uma página no Facebook para manifestar os seus estados de alma em relação à vida quotidiana e ao combate à doença. Foi o que me aconteceu com o Manuel Forjaz. Eu tinha começado a segui-lo na internet porque fui alertada por amigos que eram próximos dele e que andavam surpreendidos com a forma desassombrada como falava da doença que, normalmente, as pessoas escondem. Eles estavam também impressionados porque o Manuel tinha estado muito bem, praticamente recuperado, e tivera uma recaída perto da festa de aniversário dos seus 50 anos, em que fizeram um discurso de antologia.
Achei que não podia perder esta entrevista. O Manuel é um daqueles gestores estrela dos anos 90, esteve na base da divulgação da ideia de empreendedorismo em Portugal, criou a Confraria do Pastel de Nata, tornou-se professor e orador em palestras de motivação, ideias e negócios. Marcámos um encontro no fim do verão, num café no Chiado, em Lisboa, onde ele mora. Um encontro que teve de obedecer aos horários dos seus tratamentos e às suas viagens em busca do último grito da medicina. Era uma conversa preliminar, mas acabou por ser uma parte importantíssima da entrevista que hoje publicamos.
Os olhos do Manuel Forjaz brilham tanto que ninguém pode acreditar que tem a vida ameaçada. Ele diz que o cancro não lhe mudou a vida, e é verdade. A forma pragmática como fala da doença descrevendo com detalhe aquilo que lhe aconteceu, contando sem reservas os erros que cometeu e a forma como equilibra a esperança entre o realismo dos diagnósticos e a sua inabalável fé, tudo isso torna as coisas tão simples, que não se pode ouvi-lo sem ser com um sorriso no rosto. Um sorriso parvo? Talvez. Mas um sorriso que também a nós devolve a esperança. Nas pessoas e no destino.
2. Uma lágrima. Dizia uma amiga minha que nunca tinha visto tantos homens a chorar como esta semana. Na morte do Eusébio, claro. O facto de eu poder usar o artigo definido em vez do indefinido é também uma das razões desse choro inusitado entre os que habitualmente o tapam, evitam, escondem. Os homens também choram e todos sabemos que o futebol é um palco privilegiado para que isso aconteça – ali, estão seguros, rodeados de gente com os mesmos valores, a coberto de qualquer crítica. Vimo-lo em Eusébio na célebre semifinal de 66, ou em Cristiano Ronaldo na final perdida do Euro 2004.
Há sempre, em todos os acontecimentos populares em que o povo se empolga e emociona, a tentação do exagero. Mas não consegui deixar de sentir, esta semana, em que cada cara lavada em lágrimas – sobretudo as dos homens – um desespero que ia muito além do sentimento de perda pela morte de um ídolo do futebol. A orfandade que se revelava nessas lágrimas era mais profunda. Era a de um vazio histórico. Foi isso que a morte de Eusébio nos recordou. E dói de mais.
[12-01-2014]