Aquele que viria a ser o escritor americano Kurt Vonnegut estava em fevereiro de 1945 na fronteira oriental da Alemanha. Soldado, foi apanhado pelos alemães e metido num campo de prisioneiros na cidade de Dresden. Naquela altura da guerra a Alemanha já não era um prodígio de organização e o campo de prisioneiros era o matadouro que antes abastecia a cidade. Foi lá, através de paredes desmoronadas – Dresden-1945 é só isso, paredes desmoronadas –, foi lá que ele assistiu ao bombardeamento feito pelos seus, os Aliados, em cima dos outros, o inimigo. Ver estas coisas de baixo, qualquer que seja a nossa posição moral ou ideológica sobre o que levou àquilo, ajuda a perceber o mundo. O mais conhecido livro que Vonnegut escreveu, Matadouro 5, é sobre esse olhar.
Porém, o livro dele que prefiro, O Pequeno-Almoço de Campeões (uma desaparecida editora, a Futura, publicou-o em português, em 1973), tem um estilo tão cáustico e irónico que não percebo como ele falhou e não escreveu sobre o que se passou a alguns quarteirões do seu matadouro. Como o resto da cidade, a Biblioteca Pública de Dresden foi arrasada e as chamas apagaram a maioria das partituras do compositor veneziano Tomaso Albinoni (1671-1751). Contemporâneo e conterrâneo de Vivaldi, ele era considerado seu par – mas hoje só podemos supor que sim: 70 das 80 óperas de Albinoni desapareceram pelo fogo. Felizmente, em outros lugares menos bombardeados sobreviveram composições de música instrumental dele que demonstram o tamanho da perda e também a grandeza do artista.
A mais popular das obras de Albinoni foi recuperada nas cinzas da Biblioteca de Dresden. Remo Giazotto, um estudioso apaixonado pelo compositor barroco, fez o levantamento de cada uma das composições de Albinoni – assim, L’Inganno Innocente, ópera, libreto de Francesco Silvani, estreada no teatro SS. Giovanni e Paolo, em 1702… –, apesar da dor por a informação acabar quase sempre pela lembrança terrível: «musica perduta», não se sabe e nunca se saberá como era realmente aquela beleza… Até que, em 1958, esta pesquisa com tendência funerária foi interrompida. As músicas perdidas calaram-se para uma música encontrada e apassionata. Remo Giazotto, a partir de fragmentos encontrados nas cinzas de Dresden, deu, disse, com parte de um andamento lento de sonata, em sol menor, para violino e órgão. Isso, o Adagio de Albinoni!
Quem não o conhece? Nunca houve um amor em fim de carreira tão bem descrito pelos soluços e gritos pungentes de um violino. São os oito minutos mais divinamente tristes, curtos como um cometa rasgando um coração que não pede senão isso, ser rasgado. Ou, porque as grandes músicas têm disto, num palácio do Kremlin, com um coro fardado a fazer de fundo, a cantora Natalia Ustinovich pôr a plateia de generais e matronas a levantar-se às primeiras notas do Adagio de Albinoni, como se de um hino patriótico se tratasse. Ou, em 1978, The Doors a homenagear o seu Jim Morrison – que entretanto queimara o seu demónio interior e estava enterrado no cemitério parisiense de Père-Lachaise – publicando, na última faixa do álbum An American Prayer, o Adagio de Albinoni com guitarras elétricas e acabado num grito: «Rock is The End»…
Tudo isso Kurt Vonnegut deveria ter escrito, sobre uma obra de arte que parecia perdida para sempre e renasceu, literalmente, das cinzas. Ou escrito algo mais sobre o que veio a saber–se deste Adagio, e é por isso que eu me espanto que ele não o tenha feito – ele, que não só viveu a génese desta história mas que também era um refinado irónico. É que o Adagio de Albinoni não é de Tomaso Albinoni. O seu autor foi Remo Giazzoto, o pretenso descobridor do fragmento de partitura do século XVIII, e real compositor, a meados do século XX, do Adagio em sol menor. Um plagiador ao contrário. Um autor faz uma bela obra e endossa-a, escondidamente, a outro. O violino de escrita que isto estava a pedir…
[23-02-2014]