Aquilo que o homem sempre perseguiu – e conseguiu nos países desenvolvidos – parece estar a ser visto como uma peste. Na semana em que se celebrou o Dia Mundial do Idoso, a demógrafa Maria João Valente Rosa rejeita a metáfora e diz que é preciso repensar a sociedade. E aproveitar o que os mais velhos têm para dar.
Foi notícia que o Japão já conta com mais de 59 mil pessoas com 100 ou mais anos, o mesmo país onde um ministro das Finanças disse que os idosos doentes deviam morrer para aliviar as despesas públicas com a saúde. Como é que uma conquista civilizacional como o aumento da esperança de vida se torna negativa?
_É verdade que muitos falam dos perigos do aumento da esperança de vida e do envelhecimento demográfico, mas o problema não reside no envelhecimento, no aumento da esperança de vida ou noutras conquistas civilizacionais similares e sim no facto de as sociedades não se terem adaptado ao seu novo «corpo populacional» e de continuarem organizadas e a fazer fortes investimentos no que sempre fizeram no passado, quando as realidades eram bem diferentes das atuais. Assim, a existência de cada vez mais pessoas em idades (muito) avançadas torna essencial que se repense o modelo de saúde. Por exemplo, uma aposta em cuidados domiciliários de proximidade e apoio comunitário, para o acompanhamento das doenças crónicas, poderá não ser mais caro que manter, como está, a estrutura de cuidados de saúde extremamente centralizada.
Também Portugal é um país onde nos últimos trinta anos se verificou um envelhecimento exponencial da população, sendo hoje um dos mais envelhecidos do mundo. O que aconteceu?
_O envelhecimento demográfico está muito associado ao desenvolvimento das sociedades. A perda do valor económico da criança, a diminuição da mortalidade infantil, o aumento da escolaridade, a urbanização e o anonimato, a afirmação das mulheres no mercado de trabalho, são, entre outros, fatores que ajudam a compreender os relativamente baixos níveis de fecundidade nos países mais desenvolvidos, por comparação aos menos desenvolvidos. Mas, no grupo dos desenvolvidos, todos eles com baixíssimos níveis de fecundidade, esta diminuiu de forma tão acentuada em Portugal que já é hoje das menores. Isto, associado a uma baixa mortalidade, com cada vez mais pessoas a terem hipótese de sobreviver até às idades avançadas, ajuda a compreender a diminuição do número de jovens e o aumento do número de idosos. Existe ainda, nos anos mais recentes, um outro elemento que acentua o envelhecimento: as migrações. O número de estrangeiros em Portugal deixou de crescer e a emigração aumentou significativamente. Estes movimentos envolvem especialmente pessoas em idades não só activas, como mais férteis, com efeito sobre os baixos nascimentos e no aumento da percentagem de idosos.
Há quem fale até em peste grisalha. Isto é um problema?
_O envelhecimento da população não é um mal social. Esquecemos que o que está por detrás desse envelhecimento são conquistas sociais de que nenhum de nós quer abrir mão. Ou seja, quem não gosta de viver mais tempo, e em melhores condições? E ser livre? Sinceramente, não gostava de voltar aos anos 1960, quando Portugal era um país relativamente jovem no contexto dos países da União Europeia pelas piores razões. Deste modo, o envelhecimento da população não é bem um problema, mas um desafio. Transformar-se-á num problema grave se a sociedade não se repensar. A população mudou de perfil e a sociedade não se reorganizou e continua a funcionar tal como se nada tivesse acontecido. Essa é a verdadeira raiz do problema!
No seu livro O Envelhecimento da Sociedade Portuguesa distingue conceitos como envelhecimento individual e coletivo. Qual é a diferença e porque é importante fazer essa distinção?
_Quando falamos em envelhecimento, podemos estar a falar de situações que nos implicam enquanto cidadãos de forma muito diferente. E daí o interesse em «separar as águas». Há o envelhecimento individual, um processo progressivo e inevitável. Por outro lado, há o envelhecimento coletivo, que se subdivide em envelhecimento demográfico e envelhecimento societal. Se o primeiro é inelutável, pelo menos a médio prazo, o outro não. A população pode envelhecer e a sociedade não, ou seja, pode renovar-se em termos da sua organização. Sabemos que os idosos de hoje são bem diferentes dos do passado, tal como os do futuro serão bem diferentes dos atuais: mais escolarizados, mais próximos das novas tecnologias, com a noção de que irão viver mais tempo, etc. A sociedade não está a saber tirar proveito do crescente número de pessoas mais velhas, deste capital humano, dispensando-as com base em marcos essencialmente administrativos. É toda a economia que perde e é também a própria pessoa que não fica melhor. Ainda está, aliás, por confirmar se a reforma faz verdadeiramente bem à saúde e ao bem-estar de cada indivíduo. É, portanto, este envelhecimento societal que me preocupa, sobre o qual importa pensar e intervir, porque não é nem inevitável nem inelutável.
Uma das grandes preocupações quando se fala do envelhecimento demográfico é o da sustentabilidade da Segurança Social. Como salvar o Estado social num quadro de envelhecimento demográfico?
_Salvar o Estado social obriga a adaptar o modelo aos novos tempos. Surgiu, e muito bem, para responder a problemas concretos de um tempo. Hoje, os problemas são de natureza diferente e se os princípios de solidariedade social devem permanecer, o modelo tem de ser outro. Já falei da saúde e agora dou o exemplo da proteção social. Com o envelhecimento, o contrato geracional de proteção social na velhice, alicerçado na fórmula de repartição – em que as gerações ativas financiam as pensões dos reformados seus contemporâneos – entrou em choque. Essa fórmula funcionava bem em sociedades do passado com estruturas etárias jovens. Agora, tudo mudou – são cada vez mais idosos por pessoas em idade de trabalhar e pensionistas por ativo – e o equilíbrio financeiro geracional é afetado. Há, assim, um vasto problema anunciado, importando rever os pressupostos que nos conduziram até ele, a começar por reequacionar o sentido de continuarmos a considerar a idade como critério ótimo para balizar os papéis – direitos e deveres – dos cidadãos.
Que questões levanta o envelhecimento demográfico?
_O envelhecimento demográfico está a desafiar-nos. Ou conseguimos, enquanto sociedade, estar à altura ou não! Os problemas têm no essencial que ver com a defesa incondicional de um passado, numa sociedade que já nada tem que ver com o que era. Por exemplo, habituámo-nos a medir o valor de alguém nesta sociedade em função de atributos administrativos, como a nacionalidade ou a idade. Ora, hoje vivemos numa sociedade baseada num valor essencial que é o conhecimento. E sabemos que o conhecimento não tem fronteiras, nem geográficas nem etárias. Quero com isto dizer que não é por se ser estrangeiro ou por se ser mais velho que alguém vale menos, mesmo do ponto de vista económico. Mas é assim que normalmente olhamos para os «outros». Daí que uma das questões mais importantes que o envelhecimento demográfico coloca é saber se somos capazes de nos libertar de um passado e pensar, de forma efetiva e não meramente alegórica, nos cidadãos em função do seu mérito. Por outro lado, e do ponto de vista de cada um de nós, se seremos capazes de conseguir encontrar fórmulas de vida mais ricas do que aquelas que predominavam quando vivíamos muito menos tempo. Por exemplo, considerar múltiplas carreiras profissionais em vez de uma.
O que propõe?
_No meu ensaio O Envelhecimento da Sociedade Portuguesa avanço com várias propostas muito concretas, que abro à discussão. Uma nova ordem social é o caminho. O tempo parcial da reforma e do trabalho, o exercício de várias carreiras, o reforço da formação ao longo da vida, são algumas das ideias avançadas, em substituição de outras que, apesar de desfasadas, ainda continuam a marcar as nossas vidas, como a reforma compulsiva, o emprego para toda a vida ou a carreira única. Basicamente, pode resumir-se assim: ao longo de toda a vida adulta (enquanto mantivermos capacidades) devemos combinar de forma harmoniosa o estudo, o trabalho e o lazer e acabar com os respetivos blocos, sucessivos e quase impermeáveis.
Não é importante, no entanto, garantir também, em termos demográficos, a renovação de gerações? Como é que isso pode ser feito?
_O melhor contracetivo é o desenvolvimento. Por isso, imaginar a possibili dade de regresso a uma situação de descendências numerosas, como tínhamos no passado não é, nem deve ser, um objetivo. Aliás, atualmente, nenhum país da União Europeia tem assegurada a substituição de gerações, por melhores políticas que tenha de apoio à fecundidade, como é possível concluir dos dados publicados na Pordata. Também, e de acordo com os resultados do recente Inquérito à Fecundidade (2013) em Portugal, uma parceria entre o INE e a Fundação Francisco Manuel dos Santos, não existe desejo, por parte dos portugueses, de terem um número muito elevado de filhos. Contudo, embora numa situação de níveis de fecundidade relativamente baixos por comparação ao passado, ainda existe alguma distância entre os filhos que os portugueses têm e que tencionam ter. A desejável aproximação entre a realidade e a intenção depende de inúmeros fatores. Entre estes, está a efetiva conciliação de tempos de trabalho/família ou a maior igualdade de partilha de tarefas e responsabilidades familiares entre homens e mulheres
E a renovação de gerações não passa também pelos tais «outros» de que falava há pouco? Além de «resolvermos» a forma como vemos os mais velhos, não temos também de resolver a forma como vemos o «outro» – estrangeiro, imigrante?
_Na realidade, o dinamismo da demografia, europeia ou portuguesa, depende cada vez mais da imigração. Não nos esqueçamos de que a população do mundo está a aumentar a um ritmo vertiginoso. A Europa e Portugal terão de se repensar na sua relação com os outros. Continuarmos a pensar que de fora «vem o perigo», em vez de vir a eventual solução, é uma forma «atávica» de sermos, que compromete seriamente o que pode ser a harmonia da sociedade do futuro.
QUEM É MARIA JOÃO VALENTE ROSA?
Demógrafa, diretora da Pordata e professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é autora do livro O Envelhecimento da Sociedade Portuguesa, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.