
Outubro foi o mês internacional de luta contra o cancro. Uma luta que cada vez mais portuguesas travam todos os dias. Há derrotas, mas as vitórias aumentam, a par dos avanços da ciência. Que novas armas existem e como é possível aceder-lhes foi o que perguntámos à médica oncologista Fátima Cardoso.
Em Portugal, existem neste momento vitórias na luta contra o cancro da mama?
_Existem duas situações: o cancro da mama precoce, que é diagnosticado cedo, e para o qual conseguimos hoje uma taxa de cura à volta dos 70 por cento; e o cancro da mama avançado, localmente ou com metástases à distância, que continua a ser uma doença incurável, não obstante existirem várias opções de tratamento e terem sido conseguidos pequenos avanços.
Um dos objetivos da sua investigação é fazer do cancro da mama avançado uma doença crónica. Ainda está muito longe?
_Neste momento, a sobrevida média do cancro da mama avançado são dois a três anos. Quando chegarmos aos 10, 20 anos, podemos falar de doença crónica. O cancro da mama não é uma doença, são várias. Os avanços da biologia permitiram-nos caracterizar pelo menos três grandes subtipos: o hormonodependente; o HER2 positivo, que depende de um recetor muito específico, contra o qual temos medicamentos novos; e o triplo negativo, com o pior prognóstico e contra o qual apenas temos a quimioterapia.
Qual é o mais comum?
_É o hormonodependente. Para este temos medicamentos dirigidos ao tumor. Um dos tratamentos mais antigos contra o cancro da mama é a hormonoterapia. Descobriu-se há mais de dois séculos que a ablação dos ovários fazia diminuir alguns tipos de tumor e daí começou a desenvolver-se a hormonoterapia. O medicamento que provavelmente mais vidas salvou chama-se tamoxifeno, começou a ser usado nos anos 1970 e é dirigido contra os recetores hormonais. Embora não seja 100 por cento específico, é mais dirigido às células tumorais e por isso tem menos efeitos secundários do que a quimioterapia.
Quimioterapia, radioterapia, cirurgia. É nisto que as pessoas pensam quando pensam em tratamentos oncológicos. O que há de novo para tratar o cancro da mama?
_Quando falamos de cancro precoce, a cirurgia é indispensável, antes ou depois da quimioterapia, dependendo do tamanho do tumor e da sua biologia. Para os triplos negativos, a única arma é a quimioterapia. Nos HER2 positivos, em cancro precoce, é necessária quimioterapia e os tais tratamentos dirigidos – um deles, o mais conhecido, é o trastuzumab. A quimioterapia pode ser o primeiro tratamento para reduzir o tamanho do tumor e, quando possível, evitar mastectomias, fazendo uma cirurgia conservadora. Um dos grandes avanços tem sido identificar, nos tumores dependentes das hormonas, os que não precisam de quimioterapia.
E como se consegue isso?
_Há uma década, começou a perceber-se como se sobre tratava o cancro da mama. Em caso de dúvida, prescrevia-se quimioterapia. Sobretudo com a descodificação do genoma humano, é possível determinar o «bilhete de identidade» do tumor, através de testes genómicos, o que nos permite diferenciar dois grupos: um que tem um prognóstico muito bom e não precisa de quimioterapia e um que tem um prognóstico menos bom e que pode ser melhorado com esta. Isto pode levar a uma redução de 15 a 20 por cento do uso da quimioterapia. Claro que, quando há um benefício importante, tem de se fazer a quimioterapia, até porque hoje já não é tão difícil como era há 20 ou 30 anos: há medicamentos muito melhores para combater as náuseas e os vómitos e para impedir a diminuição de glóbulos brancos e o risco de infeções.
Esses testes estão acessíveis a todos?
_Não. Na Fundação Champalimaud, fizemos um simpósio, para o qual convidámos representantes de todos os subsistemas de saúde e seguradoras, para explicar o benefício desses testes, que além da validação científica, através de muitos estudos e ensaios, têm visto comprovadas as vantagens no que respeita à relação custo-benefício. O NICE – National Institute for Health and Care Excellence –, no Reino Unido, aprovou um deles, e aqui ao lado, em Espanha, há várias regiões em que o sistema público de saúde comparticipa. Ao poupar na quimioterapia não só se poupa o custo desta como o de todos os efeitos associados: a mulher não precisa de estar de baixa, por exemplo. O preço do teste, que ronda os três mil euros, acaba por ser compensado. Neste momento, ainda não é suportado pela maioria dos subsistemas e das seguradoras e também não está acessível no Serviço Nacional de Saúde.
Mas são esses testes que permitem o tratamento à medida de cada patologia, prognóstico e paciente, não é?
_Sim, e se puder ter o mesmo risco de recidiva e o mesmo prognóstico a longo prazo, não há razão para se sofrer os efeitos secundários de uma quimioterapia. Podemos comparar a quimio a uma bomba que vai matar as células más, mas também as boas; é eficaz mas tem efeitos colaterais importantes. Outros tratamentos, como a hormonoterapia ou o trastuzumab, são como mísseis dirigidos às células tumorais, tendo menos toxicidade. Existe um novo medicamento com um mecanismo de ação muito especial: uma molécula de trastuzumab é utilizada como um autocarro que leva acopladas várias moléculas de quimioterapia, muito fortes; estas são levadas até às células tumorais e largadas apenas no interior das células, o que permite uma maior eficácia e menor toxicidade. Chama-se T-DM 1.
E esses fármacos estão acessíveis a todos?
_Não, porque são muito caros. E essa é uma discussão que nos levaria longe e que está a ser feita a nível europeu e até mundial: como podemos tratar o cancro e outras doenças com estes medicamentos inovadores, se têm um preço exorbitante? Nenhum sistema de saúde, por mais rico que seja o país, pode continuar a pagar tudo. Uma das possibilidades em discussão é o alargamento das patentes. A indústria farmacêutica investe milhões para desenvolver um medicamento, mas também demora muito tempo entre a descoberta de uma molécula e a sua chegada ao mercado, tempo esse em que a patente está a contar. Quando chega ao mercado, o laboratório tem poucos anos para recuperar o investimento. Se tiver mais tempo, pode pôr o medicamento mais barato e mais acessível à maioria dos doentes.
O cancro da mama pode ser evitado? Há alguma forma de o prevenir?
_A prevenção primária é muito complicada. Existem fatores de risco, mas há pessoas que não têm nenhum e desenvolvem a doença e pessoas que têm todos e não a desenvolvem. Entre os fatores de risco estão a primeira menstruação muito cedo e a menopausa muito tarde, ou seja, um longo período de exposição aos estrogénios, uma primeira gravidez de termo tardia e nunca ter amamentado. Sabe-se que uma vida saudável, com exercício físico e alimentação boa para o coração, combate o risco, mas n há nada que se possa fazer para prevenir. O que existe é a possibilidade do diagnóstico precoce: estar atento a qualquer alteração, não ter medo – o que ainda acontece muitas vezes –, procurar apoio médico no tempo oportuno e fazer os exames de rastreio, como a mamografia, a partir dos 40 anos, de dois em dois anos, se não existirem fatores de risco familiares, e anualmente após os 50 anos.
E fatores de risco familiares incluem quem?
_Pais, avós, irmãos, tios diretos. Há quem pense que o risco só vem da parte da mãe. Não é verdade. Há duas confusões que aparecem ciclicamente nas notícias e dizem respeito ao valor da mamografia e à questão do cancro hereditário.
Questiona-se a eficácia da mamografia?
_A mamografia é um meio de diagnóstico muito importante e deve ser sempre acompanhada de ecografia mamária. Desta forma, a grande maioria dos tumores são detetados precocemente. Não é cem por cento eficaz, a mulher não pode ficar totalmente descansada porque fez uma mamografia e foi normal, até porque o intervalo entre exames é de um a dois anos e pode aparecer nesse intervalo. Daí que a vigilância da mama, através da palpação, seja sempre indispensável. Só se questiona o valor da mamografia nos países mais ricos, onde praticamente todas as mulheres fazem mamografias regulares fora do rastreio populacional. Não é o caso de Portugal.
E a hereditariedade é um fator importante?
_A mastectomia preventiva da Angelina Jolie no ano passado trouxe essa questão para a ordem do dia. O cancro da mama hereditário representa apenas dez por cento dos casos. As pessoas que têm os genes BRCA têm um risco muito elevado de desenvolver cancro da mama e do ovário, e nesse caso a mastectomia profilática é uma opção aceitável, mas estamos a falar de uma minoria. Mais importante e eficaz é a ovariectomia (remoção dos ovários).
Para todos os doentes oncológicos, o acompanhamento psicológico é fundamental. Neste cancro assume uma importância particular?
_A palavra cancro gera grande desconforto porque nos obriga a enfrentar a nossa própria mortalidade, e por isso o apoio da psiconcologia é indispensável para qualquer doente oncológico. O cancro da mama tem a particularidade de estar ligado a um dos símbolos da feminilidade e da maternidade, afetando as relações da mulher com o seu parceiro e o seu desejo de ter filhos. Aqui na unidade tentamos, não só através dos especialistas nesta área mas da equipa no seu conjunto, dar todo o apoio possível, não só ao doente como à família, para quem o impacte de um diagnóstico é enorme e por vezes é esquecido.
Como é o resto da vida de uma mulher que sobrevive a um cancro na mama?
_Relativamente a uma mulher que passou por um diagnóstico de cancro da mama precoce e ficou bem, atrevo-me a dizer que 80 a 90 por cento afirmam que a experiência a ajudou a crescer e a tornar-se uma melhor pessoa, a estabelecer prioridades e a dar mais valor à família e ao que é realmente importante. Algumas mulheres sofrem situações difíceis: os relacionamentos acabam, mas também há as que encontram outros relacionamentos. Para quem tem cancro da mama avançado, a preocupação é prolongar a vida ao máximo, garantindo uma boa qualidade de vida com tratamentos eficazes e pouco tóxicos. Quando as coisas correm pior, é importante saber que tem uma equipa que a acompanha até ao fim, que está lá, quanto mais não seja para segurar na mão.
A Unidade de Mama do Centro Clínico Champalimaud, que dirige, tem paralelo nos hospitais portugueses?
_O que me fez aceitar este projeto e voltar para Portugal foi poder criar uma verdadeira Unidade de Mama, que é a nova tendência na organização dos centros oncológicos: por patologia. A aplicação generalizada deste modelo implicaria uma reorganização total dos hospitais, e não estou a falar só de Portugal nem dos hospitais públicos. E implicaria mexer com muitos poderes instituídos, mas as mudanças fazem-se lutando contra os poderes instituídos. Na Fundação Champalimaud, a organização é vertical, em função do doente e não do trabalho do médico, e é assim que a medicina deve ser organizada. O que sentimos, e temos tido esse feedback, é que o nosso serviço tem influenciado outros hospitais no sentido de se reorganizarem e proporcionarem um serviço de maior qualidade. Quanto mais não seja por isso, já valeu a pena.
FÁTIMA CARDOSO
Médica oncologista, investigadora e secretária-geral da European Organisation for Research and Treatment of Cancer (EORTC), desenvolveu grande parte da carreira na Bélgica, tendo voltado a Portugal em 2011 para dirigir a Unidade de Mama do Centro Clínico da Fundação Champalimaud.