A Igreja de São Vicente de Fora, em Lisboa, tem um tesouro valioso com quase 250 anos – um dos maiores e mais importantes órgãos de tubos da Pensínsula Ibérica. E até ao final do ano pode ser ouvido em concertos que já atraíram milhares de pessoas. A entrada é gratuita.
Paredes meias com a Feira da Ladra, que todas as terças-feiras e todos os sábados espelha o desenrascanço lusitano, a Igreja de São Vicente de Fora, perto da estação de Santa Apolónia, em Lisboa, ganha outra vida nos dias de concerto. Em vez de missas ou outras cerimónias religiosas, aos sábados há concertos de órgão, o que equivale a dizer que, em vez de se alimentar a fé, é tempo de alimentar o espírito.
Até ao final do ano (interrompe em agosto), no segundo sábado de cada mês, centenas de pessoas vão continuar a deslocar-se a este antigo mosteiro do século XVI para ouvir o som envolvente de um dos mais importantes órgãos portugueses. E silêncio, que não se vai cantar o fado. Agora é hora de música, erudita, sim, mas que soa bem aos ouvidos de toda a gente que gosta simplesmente de música.
A compra e venda de pequenas utilidades e o turismo puro e duro, esse que tendencialmente se esgota num vislumbre mais ou menos apressado da cidade, ficam lá fora. É de música e do espaço de uma igreja como sala de espetáculos que agora falamos – e da diferença que significa ouvir música num local assim, com o acrescento de que música de órgão só é mesmo verdadeira num órgão de igreja e em contexto clerical. É o caso.
E não é preciso ser católico ou professar uma religião para assistir a estes concertos. Nessas tardes, o ambiente no interior da igreja pouco tem que ver com o dos outros dias, bastante mais silenciosos e menos concorridos. Nos dias «normais», quem entra em São Vicente são os turistas, quase sempre estrangeiros, e, claro, uma mão-cheia de crentes que vivem perto, que vêm à missa ou alimentam o costume de vir rezar e acender uma vela ao santo de eleição.
Maria José Silveira é uma delas. Todos os dias, manhã cedo, sai de casa, na Rua da Bela Vista à Graça, e segue direta à Igreja de São Vicente de Fora para «acender uma luzinha» a Nossa Senhora de Fátima. Faz isso «há muitos anos», diz, tantos que já lhes perdeu a conta. Contudo, recentemente, há outro motivo que a traz a este espaço de culto no bairro histórico de Alfama: é também o som do órgão que todos os domingos ecoa durante a celebração litúrgica.
«Eu nunca fui muito de missas. Achava–as aborrecidas. Um dia, estava eu a acender a minha velinha à santa, alguém começou a tocar o órgão. Eu nunca o tinha ouvido e olhe que já moro aqui na zona desde a minha juventude. Gostei tanto do que ouvi que em vez da oração rápida do costume depois de iluminar a santa, até me sentei para poder ouvir melhor.»
Se não falha a memória a esta reformada de 72 anos, «isto foi no fim dos anos 90». Não deve estar longe da verdade, pois foi em 1997 que o instrumento, depois de muito tempo «calado» por efeito do pó acumulado, e de ter sido restaurado, voltou a ouvir-se novamente nesta «casa de Deus». Desde então, fora os três anos em que a igreja fechou para obras de recuperação do teto, Maria José não perde um culto. E também não perde um concerto do ciclo que desde o ano passado se realiza com regularidade, sob a direção artística de João Vaz, organista titular. Ainda por cima grátis e num cenário imponente. O fascínio de Maria José por estes espetáculos é a prova de que a música erudita não é só para eruditos. Pelo contrário: a clientela dos concertos é abrangente quanto baste. Mais novos e mais velhos, avós e netos, especialistas de ouvido e outros nem por isso. Tal como acontece com Maria José, muitas das pessoas que assistem aos concertos não são frequentadoras de concertos nem entendidas em música de órgão. Simplesmente gostam de música. «Com a crise que por aí está e as reformas a diminuírem, as pessoas não têm dinheiro para gastar nestas diversões, por mais que gostem. Ainda bem que podemos assistir a um espetáculo tão bonito sem gastar um tostão. Eu venho com a família toda, as minhas filhas, os genros e os netos. E muitos dos meus vizinhos também.»
Os concertos depressa ganharam popularidade. Tanta ou tão pouca que, em pouco mais de um ano, «atraíram mais de dez mil pessoas”, garante o responsável pela organização dos concertos. João Vaz reconhece razão a Maria José. No entanto, o organista e professor de música considera que o principal fator de atração é o órgão, mais do que a entrada gratuita. «Além de ser um instrumento que, como nenhum outro, consegue projetar o som por espaços tão amplos como as igrejas, este tem a particularidade de conservar a maioria dos mais de três mil tubos originais, o que por si só lhe confere um timbre completamente diferente dos que são construídos hoje.» Aponta como exemplo o do Mosteiro dos Jerónimos, construído há meia dúzia de anos e «timbricamente muito diferente.»
De facto, o órgão da Igreja de São Vicente de Fora não é um órgão qualquer. Além de ser um dos maiores e mais antigos na Península Ibérica – em 2015 completará 250 anos –, foi construído por um dos mais reputados organeiros do século xviii, João Fontanes de Maqueira, «com dois teclados manuais e sessenta meios registos», e mais umas quantas caraterísticas técnicas indecifráveis para a maioria das pessoas e que o diferenciam de outras tipologias de órgãos. «É tão especial que não deve haver organista no mundo que não gostasse de o tocar», diz João Vaz. Mesmo os que já têm uma carreira firmada internacionalmente têm-no como um must.
João Vaz sabe do que fala. Ele, que já formou uma geração inteira de organistas e conhece tão bem como a ponta dos dedos os sons e os teclados de muitos órgãos por esse mundo fora, é quem escolhe os organistas que atuam no ciclo de concertos. Rui Paiva, organista, professor do Conservatório Nacional de Lisboa e diretor da Academia de Música de Santa Cecília, é um deles – vai tocar no dia 14 de junho e a acompanhá-lo estará o Ensemble Vocal da Academia de Música de Santa Cecília, sob a direção de António Gonçalves (ver caixa). No concerto de Rui Paiva e nos seguintes, que terão lugar de setembro a dezembro, a organização espera um público à altura das músicas românticas e barrocas que serão interpretadas. Pelo menos, espera a mesma adesão dos anteriores. No concerto de Brett Leighton, que inaugurou este primeiro ciclo, em abril, a igreja encheu-se com mais de mil pessoas. Casa cheia. À falta de lugares sentados, o público foi-se acomodando como pôde, no chão e nos corredores, para poder assistir à atuação do organista australiano e professor de órgão e cravo na Universidade de Anton Bruckner, na Áustria.
Em todo o caso, sublinha João Vaz, mais importante do que o número de espetadores, é a possibilidade de, com estes concertos, dar a conhecer «um instrumento magnífico que mantém a sua estrutura inicial intacta e que, por isso mesmo, o som que hoje emite é muito aproximado ao que se ouvia quando da sua inauguração», em 1765.
PRÓXIMO CONCERTO
12 DE JULHO, 17h00 – Marco Aurélio Brescia com a soprano Rosana Orsini
(O segundo ciclo de concertos irá realizar-se à mesma hora, 17h00, e terão a mesma duração (45 minutos), nos dias 13 de Setembro, 11 de Outubro, 8 de Novembro e 13 de Dezembro; o programa com os nomes de artistas será anunciado oportunamente pela organização, o Patriarcado de Lisboa e a editora Althum.com).