A pomba escolheu o dia certo de morrer

Notícias Magazine

No dia seguinte a esta crónica ser publicada, o mundo mu­dou, 28 de julho. Não, não foi só em 1914, há um século, foi até hoje e para todo o sempre – tornamo-nos mundiais. Um bêbado carre­ga num botão e cai sobre campos ucranianos um pássaro malaio, não chega à Austrália um grupo de cientistas e um pai holandês olha pasmado a foto do filho. Depois ainda precisam de metáforas, tipo teoria do caos, o bater de asas de uma borboleta em Tóquio que pode causar uma ciclone em Nova Iorque, ideias assim, quando a coisa entra-nos em casa pelos noticiários. Pouco depois, um chileno, revolvendo-se incomodado no sofá porque não sabe bem se é certo ou não, vê um inglês de uma firma de nome exato (Sky News, notícias caídas do céu), vê-o atarefado, baixar-se para pegar numa mala de criança e remexer lá dentro – com o corpito do dono que não se sabe (o inglês, o chileno, eu) onde está, mas sabemos que está por ali, rebentado na seara ucraniana. Enquanto procura, o inglês devolve ao chileno, a 13 mil quilómetros e por satélite, a dúvida moral: «Eu não devia estar a fazer isto», balbucia. Ora, ora, há exatamente cem anos, perdemos essa inocência.

Há cem anos, construiu-se um laboratório do Mar do Norte até à Suíça. Dois buracos compridos, frente a frente – chamaram-lhe trincheiras, 700 quilómetros, de facto, o dobro porque eram a par. Homens a matar homens fazia-se desde o começo dos tempos, mas por espasmos, toca e foge, e sobretudo por empresas sem dimensão planetária. Amadores. Desta vez, dividiu-se a bola em duas: os Alia­dos, de um lado, os Boches, do outro. Cada uma com a sua metade do mundo, uns com senegaleses e australianos, outros com turcos…

Nas trincheiras, quatro anos. Tão perto que ouviam os insultos e os cânticos de Natal dos outros. Quatro anos com única ordem de trabalhos: matar o vizinho da frente, a tiro lento. Foi uma espécie de curso intensivo e localizado (mataram-se tantos soldados quanto civis; na guerra seguinte, mais espalhada, já estes foram o dobro dos militares) mas o essencial da lição demonstra-se pela evolução da semântica. À de 14-18, no princípio ainda lhe chamaram Grande Guerra, até se convencerem que as havia maiores. Mudou-se para I Guerra Mundial, II Guerra Mundial… – entendeu-se o conceito. A partir de agora tudo era mundial. Até o chileno do sofá já sabe.

O que se começou nas trincheiras a fazer, naquele verão de 14, desconfiou-se que era abrir a caixa de Pandora. Vejam só o tempo dos acontecimentos, a duração, o vagar para a decisão. O arquiduque Francisco Fernando da Áustria é assassinado em 28 de junho, é a espoleta, vão todos dizer, mas o rastilho vai durar um mês inteirinho, dia por dia. Como se todos temessem o irreme­diável. A 28 de julho, o Império Austro-Húngaro declara guerra à Sérvia e só então tudo vai em catadupa: a 1 de agosto, a Alemanha à Rússia, a 4, a Inglaterra à Alemanha e a Alemanha à França, a 5, o Império Austro-Húngaro à Rússia… É giro como os compêndios de História apresentam as declarações de forma unilateral: a Ingla­terra diz à Alemanha que lhe quer guerra, mas nem é preciso dizer que a outra aceita. O país que é inoculado por um, passa o vírus a outro: a Alemanha declara a guerra à França… O género humano parecia aquela bola metálica dos flippers, que se passeia numa mesa, iluminando e fazendo soar tudo que toca. Aqui anunciava-se: Estás na guerra ! Estás na guerra!… Estávamos todos.

A 23 de agosto, o Japão declarou guerra à Alemanha. E assim por diante. Mas aos livros da I Guerra Mundial falha-lhes uma informação. O pombo passageiro (Ectopistes migratorius) era talvez a ave mais abundante da Terra. A 1 de setembro de 1914, em cativeiro, uma fêmea chamada Martha morreu no Jardim Zoológico de Cincinnati, no Ohio, Estados Unidos. Era o último exemplar de pombo passageiro. Os historiadores não sabem ler sinais. No Instituto Smithsoniano, em Washington, pode ver-se a Martha, empalhada. Que nos faça bom proveito.

Publicado originalmente a 27 de julho de 2014.