Os bastidores da contestação das polícias

Atribuição de suplemento de missão à PJ foi a gota de água, gesto de Pedro Costa o dínamo que abafou o medo. Entre o desgaste de anos de “desvalorização” e muitas acusações ao Governo, as forças de segurança prometem levar a luta até às últimas consequências.

Há exatamente quatro semanas, pela hora de almoço, um polícia alentejano de 32 anos chegou de mota à Assembleia da República, ia vestido à paisana, tinha com ele um saco-cama, um casaco, a obstinação de não arredar pé até que as suas reivindicações fossem atendidas. Cartazes não levava, palavras de ordem tampouco, estranha forma de começar uma revolução, dir-se-á. E no entanto foi isso que fez, as forças policiais (PSP, GNR e guarda prisional) vivem um momento de luta histórico e o mérito de Pedro Costa é consensual. “A ação corajosa e altruísta deste agente foi o gatilho e o dínamo para a mobilização, merece total admiração de todos os colegas”, reconhece Bruno Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Oficiais de Polícia (SNOP) e porta-voz da plataforma que junta PSP e GNR numa luta comum.

A 7 de janeiro, Pedro Costa, o rapaz pacato de Alcácer do Sal, agente da PSP há cinco anos, “escravo do trabalho e mal pago”, acendeu o rastilho de uma revolta há muito contida. “Temos sido completamente negligenciados no que toca aos nossos vencimentos”, apontou, num vídeo partilhado num grupo de WhatsApp, apelando a todos os colegas que se juntassem a ele numa vigília sem data para terminar, na luta contra um salário “indigno e injusto” (o salário base de polícias e guardas prisionais recém-entrados na profissão é de 907 euros, mais 87 que o salário mínimo). Partilhou até propostas concretas relativas à revisão do salário base e dos suplementos. Uma jogada de alto risco, como reconheceu. “Sei o que estão a pensar. ‘O colega é maluco, vai-se lixar’.” O tiro saiu, contudo, certeiro.

Nos dias que se seguiram, a contestação ganhou uma dimensão impensável, com inúmeros polícias em vigília de norte a sul, muitos a pernoitar em frente a postos de comando e autarquias, dezenas de carros-patrulha parados. Acresce a manifestação histórica em Lisboa, a 25 de janeiro (segundo a organização, juntou perto de 15 mil polícias), e a da última semana, no Porto, outro mar de gente. “É uma mobilização em várias dimensões histórica, com uma união em toda a linha”, sublinha Bruno Pereira. Sinal disso é a referida plataforma, que junta não só sindicatos da PSP e associações da GNR, como, pela primeira vez, os oficiais. A decisão de a criar surgiu ainda no início de dezembro, na sequência da polémica decisão do Governo de atribuir um suplemento de missão, que nalguns casos pode significar um acréscimo de 664 euros na remuneração mensal, aos inspetores da Polícia Judiciária (PJ).

“Estamos perante o expoente máximo de uma desigualdade nunca vista”, frisa Bruno Pereira. “E cai particularmente mal quando a valorização que o Governo foi obrigado a discutir por via de uma maioria negativa no Parlamento se repercutiu em apenas 69 euros [aumento do subsídio de risco das forças de segurança, em outubro de 2021]. Parece que a uns damos migalhas e depois há polícias de ouro. Logicamente que deixou de haver qualquer tipo de tolerância face a condições de trabalho há muito indignas.” Em comunicado, o Sindicato Nacional de Polícia (SINAPOL) chamou-lhe mesmo “a mais vil agressão de sempre contra os polícias”.

Quatro semanas depois, Pedro Costa, o agente que deu o mote aos protestos, continua firme no Parlamento, ausentando-se quase só para trabalhar. Aponta o dedo aos sindicatos por se focarem na questão do subsídio de missão, quando a sua principal reivindicação são “salários dignos”
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

E nem o facto de o Governo estar demissionário (há legislativas a 10 de março) convence os dirigentes sindicais. Muito menos o argumento de que a carreira de investigação criminal da PJ encerra um grau de complexidade superior. “Falamos de uma polícia que tem uma missão específica. As forças de segurança da PSP têm essa como têm muitas outras, a que juntaram recentemente novas competências no controlo de fronteiras. A grande dificuldade de resposta e a gestão do perigo é feita na primeira linha, onde nós estamos.”

Também por isso, logo em dezembro, aquando da criação da plataforma, os sindicatos e as associações da PSP e GNR decidiram avançar com várias formas de luta, entretanto aceleradas pelo gesto histórico de Pedro Costa. “O Pedro teve uma função de ignição junto de muitos polícias que nunca tiveram a coragem ou a motivação para protestar. Mostrou que não têm de ter medo, que não há bichos-papões”, elogia Armando Ferreira, presidente do SINAPOL.

Um “barril de pólvora”

Vale a pena lembrar que as razões de queixa dos agentes da PSP, dos militares da GNR e dos guardas prisionais não são de hoje. “Durante anos, as forças de segurança foram sendo tratadas com vista curtas, de forma secundária e até terciária, não havendo qualquer tipo de valorização, não se tendo em conta que a segurança é fundamental para que possamos ter ordem. É como se fosse um dado adquirido que Portugal é um país pacífico”, acusa Bruno Pereira. Paulo Santos, presidente da Associação Sindical dos Profissionais de Polícia (ASPP/PSP) enfatiza este ponto. “Tem havido uma secundarização sistemática por parte da tutela política. Ao longo dos últimos anos, temos feito múltiplos alertas. Há uma desvalorização e um acréscimo de funções sem acompanhamento na valorização da carreira. E isto tem gerado um estado generalizado de insatisfação, desmotivação e cansaço.”

Além da falta de valorização salarial e dos suplementos, que “não são atualizados desde 2009”, o dirigente da ASPP lembra a questão das pré-aposentações. “O estatuto diz que aos 55 anos de idade e 36 anos de serviço os agentes podem pedir a pré-aposentação. A questão é que nos últimos Orçamentos do Estado houve uma cláusula a dizer que os agentes só podem sair em função dos candidatos que entram. Ora, como a carreira não é atrativa, entram cada vez menos jovens, impossibilitando os mais velhos de ir para a pré-aposentação. Daqui a dois ou três anos teremos um conjunto considerável de agentes com mais de 60 anos.” César Nogueira, presidente da Associação dos Profissionais da Guarda (APG/GNR), que considera a recém-criada disparidade face à PJ a “machadada final”, também aponta o dedo às tabelas remuneratórias. “O nosso estatuto [Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana], que é de 2017, tem por base um regime remuneratório já revogado [2009], o que faz com que haja superiores hierárquicos a receberem menos do que quem está abaixo. Há este tipo de constrangimentos.”

E ainda há o caso dos guardas prisionais, que apesar de não estarem na plataforma, por via do sindicato que os representa, partilham das mesmas dores. “Ganhamos pouco mais do que o salário mínimo, perdemos 14,5% do nosso poder de compra desde 2011 e a ministra da Justiça [os guardas prisionais, à imagem da PJ, estão na tutela do Ministério da Justiça, ao contrário de agentes da PSP e militares da GNR, tutelados pelo Ministério da Administração Interna] ainda mentiu aos deputados, a dizer que tinha valorizado a guarda prisional, quando o aumento que tivemos foi o que toda a função pública teve. Estamos completamente abandonados pelo Ministério da Justiça e pelo Governo”, critica Frederico Morais, do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional.

Abandono é precisamente a palavra usada por um agente da PSP do Porto, com mais de 20 anos de profissão, que pede para não ser identificado. “Sentimo-nos completamente desapoiados. Ainda por cima não temos propriamente uma forma forte de reivindicar [a Constituição da República Portuguesa proíbe os agentes das forças de segurança de exercerem o direito à greve] e há algum cansaço em relação aos sindicatos.” Conta que, entre polícias, ganham força as teorias da conspiração face ao que consideram ser um avolumar excessivo de consequências. “O Governo anuncia o subsídio à PJ de um momento para o outro, depois das buscas à residência oficial do primeiro-ministro, que foram conduzidas pela PSP. E a nós o [António] Costa nem sequer nos quis receber, neste tempo todo. Soa a vingança.” Apontam ainda o dedo ao facto de as buscas de grande envergadura na Madeira, conduzidas pela PJ, terem acontecido precisamente no dia da grande manifestação em Lisboa. E de o cenário se ter repetido dias depois, com as buscas aos Super Dragões em dia de manif no Porto.

No Porto, na última quarta-feira, 31, a manifestação voltou a mobilizar milhares de polícias. Em muitas camisolas, pôde ler-se a palavra “abandonados”
profissionais.
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Frederico Morais entende a perplexidade. “Estranhámos a forma como as coisas se passaram. Leva-nos a pensar que de cada vez que há uma manifestação existem buscas programadas para desviar a atenção. Claro que não queremos acreditar que o Ministério Público está a ceder ao Governo com o propósito de desviar a atenção. Mas dá que pensar.” Bruno Pereira, presidente do SNOP e porta-voz da plataforma, tem uma visão distinta. “Não vejo aqui qualquer conspiração e não acho de bom tom alimentar isso. Obviamente não quero acreditar que as decisões políticas estejam firmadas em pagamentos de dívida e gratidão ou em pagamentos revanchistas.”