Gaza sangra e o conflito alastra. Há risco de escalar ao Mundo?

O dia 7 de outubro de 2023 está cravado na memória mundial. Reabriu-se aí o livro do longo conflito entre Israel e Palestina, depois do brutal ataque do Hamas. E a resposta de Telavive foi tão drástica, num massacre impiedoso à Faixa de Gaza, que abriu a porta a mais focos de combate no Médio Oriente. Vivem-se dias de sobressalto, mas o cenário de uma guerra global (ainda) parece improvável.

Já lá vão mais de 100 dias desde aquele 7 de outubro de 2023, que abriria a mais longa e sangrenta página no conflito entre Israel e Palestina. A data está cravada no calendário da história moderna, o Hamas (movimento islamita que governa Gaza e que é considerado um grupo terrorista) atacou o sul de Israel, mais de 1200 israelitas mortos, cerca de 240 reféns. O resto, a retaliação de Telavive, que declarou guerra ao Hamas e lançou uma ofensiva drástica sobre a Faixa de Gaza, é uma tragédia sem fim à vista numa Palestina que já era prisão a céu aberto e que está a sofrer um drama humanitário. Bairros inteiros arrasados, hospitais encerrados, fome generalizada. Há uma destruição sem precedentes, os números são reveladores, mais de 25 mil palestinianos mortos, 60 mil feridos, a maioria mulheres e crianças. O conflito parece, agora, alastrar na região, há focos por todo o Médio Oriente (que não são novos, mas que criam incertezas), provocações ao Ocidente no mar Vermelho, o Mundo num sobressalto e receios de uma escalada global. Será um cenário possível?

Comecemos por olhar para dentro do conflito antes de alargarmos as fronteiras. “A reação do Governo de Israel ao ataque de 7 de outubro foi a procura de vingança, independentemente de o inimigo ser militar, civil, uma organização”, sublinha Viriato Soromenho-Marques, professor catedrático de Filosofia Política na Universidade de Lisboa. E tendo havido capacidade de negociação para a libertação de alguns reféns inicialmente, “a verdade é que a expectativa de que as coisas poderiam evoluir positivamente acabou por não se concretizar”, completa José Palmeira, professor de Geopolítica na Universidade do Minho. Volvidos mais de três meses, o conflito chegou a um impasse.

A questão dos cerca de 100 reféns israelitas que o Hamas mantém é um ponto central nesta equação, pelas pressões internas que o Governo de Israel começa a sentir. Os familiares dos prisioneiros acamparam em frente à residência de Benjamin Netanyahu, também invadiram o Parlamento, para lhe exigir que negoceie a libertação dos reféns. Na verdade, a forte contestação interna a Netanyahu já era uma realidade antes de o conflito estalar – o primeiro-ministro de Israel decidiu avançar com uma polémica reforma judicial e tinha enfrentado 40 semanas de grandes manifestações da comunidade israelita antes de outubro -, foi depois substituída pela união perante o brutal ataque do Hamas e, com o adensar da guerra, volta a vir à tona num clamor evidente.

A somar a isso, depois da solidariedade inicial, também pelo Mundo há um momento de viragem. Nunca Israel sofreu tanta contestação internacional como hoje, com marchas barulhentas a sair à rua um pouco por todo o Globo, em defesa do povo da Palestina perante “um massacre de uma desproporcionalidade gigantesca que acabou a fazer ricochete na opinião pública”, nas palavras de Joana Ricarte, historiadora, cientista política e investigadora na Universidade de Coimbra. Os próprios líderes mundiais, nomeadamente dos Estados Unidos e da União Europeia, apelam a Israel no sentido de aceitar a solução de dois estados, o reconhecimento do Estado da Palestina, que Netanyahu tem rejeitado. Mais recentemente, acrescentou-se o facto de África do Sul ter avançado com uma ação no Tribunal Internacional de Justiça em Haia por genocídio contra Israel. Muito motivada pela situação sanitária que o povo palestino, que vive aprisionado naquele território sem hipótese de fuga, está a enfrentar, sem acesso a comida ou cuidados de saúde. Entre vários pontos, África do Sul refere que duas mães e quase cinco crianças morrem por dia em Gaza.

“As pressões são significativas. O Governo de Netanyahu está debaixo de dois fogos, o interno e o externo. Por outro lado, na frente militar, embora vejamos diariamente imagens da destruição na Faixa de Gaza, o Hamas continua a revelar alguma capacidade”, aponta Palmeira. E apesar do grau de destruição e de todas as carências em Gaza, “os palestinianos não se estão a revoltar contra o Hamas”, que não aceitou o cessar-fogo em troca da libertação dos reféns. “Ouvi, uma vez, uma refém israelita dizer que são todos terroristas, de facto há esta ideia de que há um conluio entre população e Hamas, o que torna a situação mais difícil para Israel.”

Netanyahu garante que vai continuar os combates até haver uma vitória absoluta, “para salvar a pele enquanto político tem de prolongar o conflito, daí os reféns não serem a prioridade, tem de conseguir eliminar as estruturas do Hamas, dizimar a Faixa de Gaza”. Mas é impossível resolver o conflito pela via militar, segundo Viriato Soromenho-Marques. “Como é que é possível exterminar o Hamas sem exterminar o povo ao qual ele está ligado? Era preciso exterminar os seis milhões de palestinianos. Não há uma solução militar. A continuar, há a possibilidade, claro, de haver um alastramento.”

Crescem os combates no Médio Oriente

Os sinais começaram a dar de si, a perigosa dinâmica de escalada do confronto está a sentir-se naquela região. Já vão sendo vários os focos de guerra, nomeadamente entre Irão e Paquistão, que entretanto já restabeleceram as relações diplomáticas. “Também na Síria, no Iraque. São pequenos conflitos e que já existiam. Os líderes estão a aproveitar o cenário atual para arrumarem a casa”, defende Joana Ricarte. O potencial de escalada existe, reconhece, mas não há interesse numa guerra no Médio Oriente, há antes um aproveitamento do contexto para pequenos ajustes de contas movidos por rivalidades antigas.

Aqui, é preciso rebobinar a cassete. O clima na região antes do fatídico 7 de outubro de 2023 era em tudo favorável ao diálogo, os países árabes estavam a aproximar-se de Israel (terá sido essa a motivação do Hamas para o ataque), “a Arábia Saudita Sunita tinha retomado as relações diplomáticas com o Irão Xiita, e esses são os grandes inimigos, os dois polos principais do Médio Oriente”, refere José Palmeira. Talvez seja também esse contexto prévio a evitar que o conflito se agigante.

Depois de uma fase inicial de solidariedade e união perante o ataque do Hamas, o Governo de Netanyahu está agora a enfrentar contestações internas e externas, devido ao massacre na Faixa de Gaza. Os próprios Estados Unidos e União Europeia, que apoiam Israel, estão a apelar para que aceite a solução de dois estados
(Foto: Menahem Kahana/AFP)

Pelo caminho, as lutas vão-se travando em várias frentes, com ações dispersas. Os ataques a navios civis no mar Vermelho pelos Hutis, grupo militante islamita que controla parte do Iémen, são prova disso. Aliados do Irão, defensores da causa palestiniana, dizem querer prejudicar a economia de Israel através do comércio marítimo. Só que os ataques ameaçam a economia global e já obrigaram Estados Unidos e Reino Unido a intervir e a atacar. “Os Hutis têm conseguido impedir o acesso ao Canal de Suez dos navios mercantes, petroleiros e outros. Pela primeira vez na história temos um bloqueio naval que é feito sem o uso de uma marinha poderosa”, realça Viriato Soromenho-Marques. No fundo, o grupo está a afetar a economia europeia (Bruxelas aprovou recentemente sanções contra o Hamas) e dos Estados Unidos, que apoiam Israel. “O Canal de Suez tem uma grande movimentação de navios, a China, a Índia, o Vietname, a Coreia do Sul são países exportadores e é muito mais fácil chegar à Europa por ali do que ter de contornar África pelo sul”, explica José Palmeira. O efeito é o aumento dos preços e a pressão sobre o Ocidente, que assiste assim ao regresso da escalada da inflação.

Os exercícios da NATO e uma terceira guerra

Enquanto isso, na Europa, a guerra na Ucrânia continua a travar-se, os ucranianos estão agora a perder terreno na frente de batalha. O contexto internacional está num alvoroço. A NATO começou, esta semana, o maior exercício militar desde 1988, os tempos da Guerra Fria. A envolver 32 países, 41 mil soldados, 500 a 700 missões de combate aéreo, mais 50 navios de guerra. “O que a NATO está a fazer é a tentar passar uma mensagem de união, de mostrar que não está obsoleta, que está preparada”, acredita Joana Ricarte. E para quem é a mensagem? “Para todos os países que não fazem parte da aliança. Há muitos focos de instabilidade neste momento e, apesar de parecer contraditório, esta é uma forma de dissuasão.” Há dias, foram divulgados documentos secretos que mostram que a Alemanha tem o cenário de uma Terceira Guerra Mundial preparado para 2025. Ainda assim – os especialistas são unânimes -, não parece algo provável.

“O que quer que venhamos a ter em termos de conflitualidade no futuro não será na forma de uma guerra mundial. Muito dificilmente potências nucleares vão entrar em conflito direto, isso significaria uma aniquilação total. Fazem-no através de conflitos comerciais, tecnológicos, de cibersegurança. Mas a guerra moderna não será a mesma que vimos no passado”, justifica a cientista política. O próprio Estado de Israel “já tem uma tecnologia muito desenvolvida, usa drones e inteligência artificial para matar sem a presença humana, é uma nova forma de guerra”.

A realidade é que o conflito que começou por ser bilateral, entre Israel e Hamas, foi escalando. “Mas ainda são fenómenos locais. Estamos a falar sobretudo de grupos. O Hezbollah não é o Líbano, os Hutis não são o Iémen, são grupos e não estados”, sublinha José Palmeira, que acrescenta: “São muitos focos de incêndio, é verdade, daí a ser alarmista ao ponto de falar numa Terceira Guerra Mundial, parece-me exagerado. Apesar de tudo, a racionalidade ainda impera nos agentes políticos. Esticam a corda até onde é possível esticar”. Aliás, o docente da Universidade do Minho tende a concordar com Joana Ricarte. “Ao contrário do que aconteceu na Primeira e na Segunda guerras, hoje o armamento é de tal forma destrutivo que há consciência que numa Terceira Guerra Mundial não haveria vencedores nem vencidos. Além disso, só as grandes potências, como China, Rússia, Estados Unidos, têm a possibilidade de desencadear uma terceira guerra. E nenhuma ganharia com isso.”

Viriato Soromenho-Marques segue o mesmo raciocínio. Neste momento, considera, só um ataque da NATO à Rússia poderia desencadear uma guerra mundial. “No Médio Oriente, tenho esperança de que os países envolvidos, nomeadamente o Irão, sejam capazes de alguma contenção. Mesmo o conflito escalando – e Israel tem armas nucleares -, dificilmente escalaria para uma guerra geral.”

No entretanto, a Palestina sangra, o Hamas não liberta os reféns, Israel promete não parar. E o conflito – escalando ou não – parece eternizar-se.