“É difícil ser criança na Ucrânia”

Dois anos depois, o barulho das sirenes continua a invadir-lhes a vida, o medo é uma constante, a normalidade parece longe. São escolas vazias, a pobreza a escalar, a morte sempre à espreita. Desde o início da invasão, 573 crianças ucranianas morreram e 1249 ficaram feridas. E estima-se que 3,3 milhões estão em situação de risco no país. Os números são o relato duro de Kenan Madi, da Unicef, que leva mais de um ano e meio no terreno. Arruma as emoções e compõe-se na frase: “É preciso lembrar que a nossa guerra continua”.

Kenan Madi está em Dnipro, na Ucrânia, são quase seis horas da tarde por lá, pleno inverno. As ruas estão desertas de crianças, a normalidade roubada há demasiado tempo, dois anos de trauma, de violência, de uma infância que deixou de o ser. É preciso recuar a 2022 para lembrar o dia em que o Mundo mudou. Era 24 de fevereiro, a Rússia invadia a Ucrânia, o som dos ataques rasgou a Europa e começava aí uma destruição sem fim. Kenan Madi é chief field office da Unicef, está a coordenar equipas de ajuda humanitária no terreno. As palavras são claras e duras para quem teme cair no esquecimento: “Na última semana, quando estive em Kharkiv, houve um bebé de seis meses morto. As pessoas continuam a morrer e as crianças estão muito expostas a riscos. Este ainda é o nosso dia a dia, infelizmente”. A linha da frente ativa estende-se por mil quilómetros, “e há pessoas a viver lá, a situação humanitária ainda é premente”.

É a guerra embrulhada em dias infinitos, meses, anos de vidas dilaceradas. Para famílias, crianças, adolescentes. Alguns são refugiados dentro do próprio país, forçados a largar a casa e a esperança quando a morada de sempre passa a ser frente de combate. Segundo a Unicef, que diz que esta é a pior crise de refugiados na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, 3,7 milhões de ucranianos continuam deslocados internamente. Fora do país, são 6,3 milhões de refugiados, desses 5,9 milhões estão na Europa e 88% são mulheres. “Ninguém escolhe ser refugiado, é muito violento abandonar a nossa casa.”

Kenan Madi aterrou no leste da Ucrânia em julho de 2022 para não mais sair. Kharkiv, Donetsk, Zaporíjia, Dnipro, já correu as cidades mais afetadas, consumidas por bombardeamentos sem perdão. E faz “rewind” numa cassete de abismo difícil de reviver. “Quando cheguei, muitas zonas estavam fora do controlo do Governo ucraniano, uma boa parte do leste da Ucrânia estava praticamente inacessível e quando essas áreas, nomeadamente Kherson, voltaram ao controlo da Ucrânia isso exigiu uma grande resposta humanitária do nosso lado.” Depois veio o inverno, a falta de aquecimento, de água, de eletricidade. “De repente, temos grandes cidades sem água potável ou eletricidade. E houve um enorme foco em providenciar acesso a tudo isso, além de comida, de roupa, de cobertores.” O verão passou num ápice, com tanto por recuperar, sempre debaixo de ataques, e o inverno regressou, implacável.

Kenan Madi, da Unicef, que coordena equipas de ajuda humanitária na Ucrânia
(Foto: © UNICEF)

A guerra ganha uma dimensão maior quando o olhar se volta para as crianças, que pagam um preço demasiado alto, privadas de infância, de adolescência. Que carregam feridas invisíveis que uma vida inteira talvez nunca venha a ser suficiente para cicatrizar. Para Kenan, a dor maior é continuar a ver escolas vazias de brincadeiras, muitas delas destruídas ou danificadas, a maioria fechadas à força de uma insegurança paralisante. “Desde que cheguei, há um ano e meio, não vi uma única criança na escola. E isso é extremamente triste, é devastador. Muitas coisas foram mudando globalmente e internamente, mas uma das coisas que nunca mudou, infelizmente, foi o facto de não haver crianças nas escolas, que é onde pertencem, onde deveriam estar.” O conflito continua a ameaçar a educação de milhões de ucranianos e não dá para carregar no botão de pausa na vida. “É duro porque as crianças estão aqui, os professores estão aqui, as escolas estão aqui, mas a segurança é o problema. As crianças não podem simplesmente pegar nas mochilas de manhã, dar um beijo aos pais e ir para a escola seguras.”

Aulas online, a pobreza, a saúde mental

Desde a invasão russa que, na Ucrânia, os miúdos estão a ter aulas online, a Unicef tem vindo a distribuir milhares de tablets para garantir o acesso de todos. E o trabalho continua, a cada novo ano letivo há mais crianças a entrar na escola, “é um problema interminável”. A somar a tanto, há apagões pelo país, acesso precário a eletricidade, o desafio das aulas virtuais a agigantar-se. “Sabemos bem, até pela experiência que tivemos com a pandemia, que estudar online é uma coisa, estudar na escola é outra. Está demonstrado que não é tão efetivo.” Na verdade, olhando para trás, as crianças do leste da Ucrânia estão a estudar online desde a pandemia. Com enormes perdas. Além dos tablets, a agência da ONU criou centros de aprendizagem digital, são salas num lugar seguro, localizadas sobretudo em abrigos, equipadas com computadores, “porque nem todas têm ainda tablets”. Noutros casos, criaram mesmo pequenas turmas, aulas presenciais, “que não substituem a escola, porque não é a full-time, são duas vezes por semana, por apenas duas horas, para disciplinas específicas e um número reduzido de crianças, mas é melhor do que nada”.

A questão da escola é premente, muito para lá das aprendizagens. É a falta de interação com os amigos, com os professores, a ausência do brincar, o desaparecimento da normalidade. “Uma criança que tinha seis anos em 2020, quando rebentou a pandemia, agora terá dez e nunca foi à escola. E, depois de tanto tempo, isto tornou-se a nova normalidade, o que não é aceitável. Estas crianças mereciam melhor.” O peso adensa-se se pensarmos que muitos dos familiares saíram do país, que há milhares de famílias separadas, o apoio aos mais novos é escasso.

Dmytro, de nove anos, prestes a começar uma aula online de Matemática num Centro de Aprendizagem Digital em Zaporíjia
(Foto: © UNICEF/UNI436156/Klochko)

A verdade é que a guerra continua e os impactos dela arrastam-se entre os destroços. Segundo Kenan Madi, neste conflito, são já 573 crianças mortas e 1249 feridas. No país, atualmente, estima-se que sejam 3,3 milhões os menores em situação de risco. Para lá da morte, é a violência, as escolas e hospitais destruídos, as bombas à beira de casa, a fuga para outras cidades, um novelo de dor. As consequências na saúde mental são gigantes (há centenas de psicólogos no terreno a prestar apoio) e a pobreza cresce a galvanizar o pouco que sobra. Só entre 2021 e 2022, aponta o responsável da Unicef, a pobreza subiu de 39% para 60%. “E claro que as crianças estão em maior risco. É difícil ser criança na Ucrânia.” É preciso acudir às necessidades básicas, de aquecimento, de roupas, de comida, de água. Há zonas que continuam sem acesso a água potável. Depois vem a saúde, o impacto enorme na vacinação, é uma das maiores heranças da guerra, a percentagem brutal de menores por vacinar. O número cresce como uma bola de neve.

A questão é óbvia: quais serão as consequências a longo prazo? “A saúde mental destas crianças será a principal consequência. Não é fácil viver há dois anos numa zona de guerra sem parar. O barulho das sirenes, que é o medo por si só, que é a indicação de que algo está a acontecer, tornar-se parte da vida normal, é dramático. Isto não é normal e não creio que alguém, alguma vez, se habitue a viver assim.” O que está em causa é isso mesmo, o acesso a uma vida normal. E é na ausência de normalidade que a agência das Nações Unidas criou um sem-fim de programas, um deles ensina os mais pequenos a identificarem minas e explosivos que encontram na rua, a não lhes tocarem, a estarem atentos. Uma carrinha percorre vários locais. “Pode imaginar-se o que é tentar ensinar isto a crianças de seis anos, normalmente isto é ensinado a militares. É tentar que se mantenham atentas, trata-se da vida delas, porque se tocarem pode explodir e no minuto seguinte podem estar a entrar num hospital.”

O apelo ao apoio quando não há fim à vista

No meio de tudo e de tanto, os ucranianos resistem, e resistem, e resistem. Resta-lhes a esperança de que a guerra acabe um dia, de que a paz chegue. “Para que uma criança possa voltar a ser uma criança, para que as escolas voltem a ficar cheias de gente.” Para quem trabalha no terreno, a violência da realidade também deixa marcas. Há momentos impossíveis de apagar da memória. “Uma das coisas mais duras é ver o sofrimento nos rostos dos pais, ver mães a ter de explicar a guerra aos filhos, a preocupação deles aterroriza-me.” O relato vem a propósito de um episódio que Kenan Madi não esquece. Pouco antes do Natal passado, recorda, durante a inauguração de um abrigo em Zaporíjia, organizaram-se várias atividades para os catraios. “E estava sempre uma mulher sentada ali perto. Apesar de estarmos num lugar aparentemente seguro e de lhe ter dito que podia deixar o filho, ela não o largava. Nunca o deixava sozinho, porque, disse-me ela, não conseguia esquecer a imagem dos vizinhos a voltarem a casa e a verem os filhos feridos. É o medo absoluto.”

Uma sala de aula móvel, onde as crianças aprendem, entre outras matérias de segurança, a identificar e a não tocar em minas e explosivos que encontram na rua
(Foto: © UNICEF/UNI498040/Pashkina)

Dois anos depois, a guerra está a tornar-se um fardo demasiado pesado para o povo ucraniano, à medida que o tempo passa a dureza é ainda maior. “É preciso manter os esforços para apoiar esta gente.” A Unicef está, em 2024, a tentar angariar cerca de 500 milhões de euros para colmatar as necessidades. O apelo de Kenan Madi tem fôlego desesperado, de quem já só reza para que o conflito não escale mais, de quem não vê o fim e não quer que o Mundo esqueça. “É preciso lembrar que a nossa guerra continua. Para mim é difícil esquecer, porque estou aqui. Mas é sabido que quando as emergências se arrastam anos e anos deixam de conseguir captar a atenção das pessoas, o que é normal. O problema nisso é que para quem aqui está o sofrimento continua o mesmo.” Tal como no primeiro dia, exatamente na mesma intensidade.