Dez anos de luto e de luta pelos filhos que faleceram em praxes académicas

Dois casos mediáticos, ambos durante praxes académicas, estão a completar uma década. A tragédia na praia do Meco, onde morreram seis estudantes, e a queda do muro em Braga, que vitimou três jovens, continuam vivas nas malhas dos tribunais. Pelo meio, há pais que viveram a perda mais devastadora e que se agarraram a uma luta judicial ainda sem fim. É o mundo a desabar, famílias destroçadas e uma mágoa palpável. Resta-lhes um último reduto de esperança.

Fátima Negrão revê na cabeça aquele domingo trágico vezes sem conta. Tenta juntar peças, lembrar-se de pormenores, das camisas que lhe entregou lavadas na sexta-feira antes de se despedir, do telefonema na véspera, da busca incessante pela verdade. Volta ao dia 15 de dezembro de 2013 uma e outra vez, e mais outra, num círculo vicioso de dor. “Acho que se tivesse respostas seria mais fácil. Os momentos em que penso no que poderá ter acontecido são tantos. Não sei o que é o luto, porque a revolta é tão grande.” Perdeu o filho na tragédia da praia do Meco, quando seis estudantes morreram durante um fim de semana no âmbito das atividades da comissão de praxe da Universidade Lusófona. Só um sobreviveu, o ex-dux João Gouveia. Já lá vão dez anos, uma década, e os pais continuam a pedir justiça nos tribunais, a querer perceber o que aconteceu naquela madrugada.

A dor de uma perda destas, com uma batalha judicial pelo meio, é um gigante sem nome que se cola à pele para sempre. O marido de Fátima não aguentou o sofrimento e mudou-se para Inglaterra para junto do filho mais velho dos dois, ela viu a vida desfazer-se em pedaços, continua a morar na angústia. O discurso é duro, articulado, gosta de falar do filho, mas a mágoa chega a ser palpável. Pedro Negrão tinha 24 anos, faltava-lhe só uma cadeira para acabar o curso de Gestão, já trabalhava num banco, a mãe idealizava-lhe o futuro como gestor. E rebobina a cassete. “O Pedro saiu de casa na sexta-feira, 13 de dezembro, para ir para um fim de semana académico. Levou o traje, pediu-me camisas, achei-o ansioso”, recorda. Fátima ainda falou com o filho ao telefone na noite de sábado, estranhou-lhe o nervosismo e o resto é uma neblina de desespero. No domingo, a Polícia ligou, o Pedro estava desaparecido, os pais enfiaram-se no carro de Lisboa para o Meco. “Chegámos por volta das 15 horas e deparei-me com um cenário de filme de Hollywood. Helicópteros no ar, fragata no mar, ambulâncias, Polícia Marítima, ondas de três metros. Surreal, completamente surreal.” Uma psicóloga abordou-a, demorou a entender, entrou em negação, aliás, até o corpo de Pedro aparecer, Fátima nunca quis acreditar, ainda hoje tem dificuldade. “Diziam que um rapaz estava vivo, só depois percebi que o meu filho estava no mar. Não era possível. O que é que estava a fazer no mar? Nada fazia sentido.”

Passou 11 dias naquela praia, a falar com pessoas, ninguém tinha visto nada, a procurar por Pedro que ainda não acreditava estar no mar, a perguntar pelo sobrevivente. Conseguiu o contacto de João Gouveia, atendeu-lhe a irmã, disse-lhe que ele não podia falar. “Até hoje. Nunca falou comigo. Ele também estará a sofrer, mas eu só queria respostas.” É católica, acendeu velas por todos os seis desaparecidos. Os corpos foram começando a aparecer, Fátima foi apagando as velas, uma a uma. Passou-se o Natal, chegou o dia 26 de dezembro e o peso do Mundo caiu-lhe em cima, o coração estilhaçou. “O corpo do Pedro terá aparecido na Fonte da Telha.” Fala como se fosse uma hipótese, o estado dos corpos não permitiu aos pais fazerem o reconhecimento. Uma parte do corpo do filho ainda apareceu semanas depois, lembra-o com a voz embrulhada numa tristeza sem fim. “Se era ele ou não, não sei, nunca vi o meu filho. Às vezes penso que ele está só emigrado, como o irmão. O maior choque é pensar que nunca mais o voltarei a ver.”

O luto é um caminho de pedras, só há pouco tempo, dez anos passados, começou a assimilar que perdeu o filho para sempre. Fátima mantém o quarto de Pedro tal e qual como estava antes de tudo, na sala tem fotos do filho e dos outros cinco jovens. “Todos os dias, olho em volta e faço o filme do que pode ter acontecido naquela noite.” É uma espécie de loop interminável e a luta judicial a que se agarrou com os outros pais das vítimas veio somar-se, que nem vendaval, ao sofrimento. Um filho vale tudo. A investigação levada a cabo pelo Ministério Público após a tragédia terminou em arquivamento, a longa batalha judicial começou aí.

A (eterna) batalha judicial

As famílias acreditam que o que aconteceu foi uma praxe, talvez um ritual que correu mal. Desde então que tentam apurar responsabilidades do ex-dux João Gouveia e da Universidade Lusófona, por defenderem que as universidades não podem lavar as mãos das praxes que vão permitindo. Para trás está um processo-crime e um recurso, que acabaram arquivados. Também um processo cível – e o pedido de uma indemnização, que é obrigatório nestes casos, de 1,3 milhões de euros -, numa busca desesperada por respostas. Só aí ouviram, pela primeira vez, João Gouveia sobre a noite trágica, numa versão que os pais, que não puderam estar presentes na sala de tribunal, não acreditam ser verdadeira e à qual apontam incoerências. Segundo o ex-dux, os estudantes estariam a conversar na praia quando foram todos arrastados para o mar por uma onda, ele conseguiu libertar-se da capa do traje que tinha ao pescoço e salvar-se. A advogada de João Gouveia, Paula Brum, garante que os esclarecimentos foram todos dados. Pelo meio, as famílias ainda recorreram ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, numa ação encabeçada por um só pai. “Invocando que o Estado português não tinha feito tudo o que estava ao seu alcance para apurar a verdade, que violou o direito a uma investigação adequada e que o processo que conduziu ao arquivamento foi mal conduzido”, explica o advogado das famílias, Vítor Parente Ribeiro. Todos os sete juízes foram unânimes em dar razão aos pais. Foi a única vez que viram a sua luta ser reconhecida, o Estado português foi condenado.

As famílias dos jovens que morreram na praia do Meco, quando fizeram a reconstituição daquela noite trágica
(Foto: Filipe Amorim /Global Imagens)

Dez anos de um vaivém de tribunais, de batalhas inglórias, de uma dor sem igual. Depois de perderem o processo cível, as famílias aguardam agora a decisão de um recurso extraordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, que foi aceite, segundo o advogado, “porque este processo é manifestamente excecional e merece maior ponderação, pode vir a ajudar futuras interpretações do Direito em casos semelhantes”, nomeadamente no que toca à responsabilidade das universidades. É a última possibilidade de “os pais verem reconhecida alguma justiça, eles que se mantiveram firmes na procura por respostas e que sentiram o total desprezo pelo sistema judicial”. “Sabemos que os nossos filhos não voltam, o nosso propósito, desde o primeiro minuto, foi só um, saber a verdade. Há uma pessoa que a sabe, mas foi-nos sempre vedado o acesso a essa pessoa. Não me importo de sofrer. Pelo meu filho, enquanto cá estiver, tudo farei para saber a verdade”, desabafa Fátima.

É o luto vivido no palco dos tribunais. A par da mediática tragédia do Meco, também o caso dos três estudantes de Engenharia Informática da Universidade do Minho, que morreram soterrados depois da queda de um muro durante uma celebração numa praxe, está a completar dez anos. Foi em abril de 2014. Outro turbilhão de salas de audiência, numa luta que ainda não chegou ao fim pelas mãos de pais em sofrimento. E que ainda hoje não são capazes de reviver tamanha dor, nenhuma família aceitou falar.

O Ministério Público começou por acusar a empresa gestora do condomínio do edifício, ao qual a estrutura que ruiu estava afeta, e a Câmara de Braga – ambos teriam tido conhecimento do risco de derrocada da estrutura, que estava na via pública, ainda antes da tragédia. A dada altura, decidiu acusar afinal os quatro estudantes que subiram para a estrutura (as vítimas estavam em baixo, em frente ao muro). Os pais das vítimas lutaram contra essa tese, entendiam que não eram os alunos quem tinha responsabilidade. “Já tinham perdido os filhos, não queriam arruinar a vida de outros quatro estudantes”, refere o advogado dos pais, José Carlos Rendeiro. Os jovens chegaram mesmo a ser julgados por homicídio negligente, foram absolvidos.

Os pais dos três estudantes da Universidade do Minho, que morreram soterrados após a queda de um muro em 2014, aguardam o julgamento do processo cível, que arranca em abril. É a última esperança que têm por justiça
(Foto: Paulo Jorge Magalhães/Global Imagens)

Depois do processo-crime, os pais não baixaram os braços, avançaram para um processo cível, para apurar responsabilidades da Câmara e da gestora de condomínios. Viram-se obrigados a pedir uma indemnização, a pôr um preço na vida dos filhos, 450 mil euros no total, para avançar. “É o último reduto destas famílias para tentar que seja feita alguma justiça e que se evitem situações futuras idênticas”, justifica o advogado. A primeira sessão do julgamento está agendada para 18 de abril. “É um processo muito difícil. Todos podemos tentar perceber o que é perder um filho e ainda tentar levar à justiça quem acreditam que poderia ter evitado a tragédia, quem sabia do estado daquela estrutura e nada fez. Não é pela vingança, é pelo conforto de sentirem alguma justiça.” Duas das mães vivem numa depressão, três famílias destroçadas. “É uma dor gigante.”

O luto, a revolta, a memória

Fátima Negrão sabe-o melhor do que ninguém. Logo depois de perder o filho, procurou uma associação de apoio a pais em luto. “Ajudou, mas para mim ainda era tudo uma ilusão. Muitas vezes ia na rua e via o Pedro.” Tem saudades da gargalhada do filho, nenhum familiar é capaz de falar dele, Fátima faz questão disso. “Sobreviver? É tentar estar ocupada, já me bastam os momentos em que estou sozinha a sofrer, em que me sento à mesa e o lugar dele à minha frente está vazio. A minha vida desmoronou-se, o casamento não sobreviveu. Resta-me a minha crença.”

Segundo José Carlos Rocha, psicólogo que trabalha na área do trauma e do luto, “perder um filho é um fator de tensão tremendo, e tanto pode aproximar o casal como separar, porque ambos estão num enorme sofrimento e há diferentes formas de lidar”. Na verdade, “a perda de um filho é provavelmente a mais devastadora que existe, para a qual estamos muito pouco preparados, é algo que não nos passa pela cabeça, um choque absoluto”. Por isso mesmo a aceitação é um processo complexo, “o que é natural, faz todo o sentido, e as reações emocionais, comportamentais, mesmo físicas, podem ser tremendas”. Mas é possível fazer o luto? “O luto é algo que se vai fazendo, seguramente. Desde a aceitação da perda, o reconhecimento do que aconteceu. Agora, se se faz de forma a finalizar um processo em que a perda de um filho deixa de ser sentida como uma memória terrível da vida da pessoa? Nessa perspetiva, nunca se faz. Não é possível apagar a memória de alguém tão importante.”

Conseguir entender as causas e dar um sentido à perda ajuda, “é a ideia de crescimento após a perda, de nos tornarmos melhores”. Contudo, também é verdade que, em muitas situações, “a intensidade da experiência é tão profunda, tão avassaladora, que não permite que se faça este trabalho, de todo”. A maior parte das pessoas que perdem filhos sofrem de stress traumático. “E quando não se consegue entender o que aconteceu, nós, humanos, tentamos encontrar a nossa própria explicação. É claro que quando há muita incerteza, dificulta-se o processo de luto.” Juntando a isso uma luta judicial, que se arrasta no tempo, “pode haver uma espécie de bloqueio, as pessoas podem ficar em suspenso nessa sensação de procura de respostas”. Além da revolta, da raiva, da amargura.

Há estratégias para reaprender a viver depois da dor maior, a psicologia ajuda nisso. Manter o filho vivo na memória, a relação também, imaginar uma conversa, escrever-lhe, “pode ser o conforto possível, não há a proximidade física, mas há uma proximidade simbólica”. Nisto, a nossa sociedade, do ponto de vista cultural, “tem evoluído muito, na capacidade de falarmos sobre o tema, há uns 30, 40 anos, era um tabu”. Manter a roupa, o quarto, os objetos do filho, como Fátima faz, pode ser positivo, mas só se não funcionar como forma de evitamento, de fugir à realidade. “Se for um sítio que funciona como um lugar de luto, como uma campa no cemitério, pode significar que estamos a arrumar as gavetas no nosso cérebro.” Sendo certo que a ajuda especializada é importante, “até porque estes casos são de uma sensibilidade enorme”.

Uma luta para a vida

Fernanda Cristóvão procurou-a. É mãe de Catarina Soares, que, tal como Pedro Negrão, perdeu a vida naquela madrugada de dezembro na praia do Meco. “Não conseguiria sobreviver a esta ausência física e a toda esta pressão sem apoio psiquiátrico. Não conseguia falar com esta clareza, nem trabalhar. Tomo medicação, não consigo largar.” Também se agarrou à partilha com outros pais na mesma situação. “Percebi que quem tem um filho está sempre a um passo de ser um pai ou uma mãe em luto.” Dez anos depois, está a viver uma fase difícil, o caminho não é linear, às vezes tem mais força, outras vezes vai-se abaixo. Carrega o cansaço de uma revolta sem igual. “Além de ter perdido fisicamente a minha filha, o que mais me entristece é nunca ter havido interesse em esclarecer o que aconteceu, é termos tido tantos obstáculos, é ainda estarmos à espera de alguma justiça.”

Fernanda Cristóvão e António Soares, pais de Catarina, uma das vítimas, em 2014, à entrada do Tribunal de Almada. São dos rostos mais visíveis da luta judicial que está a ser travada há dez anos e que ainda não acabou
(Foto: Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens)

Catarina tinha 22 anos, estava a estudar Turismo na Lusófona, o curso que sempre quis. Fernanda e o marido, António Soares, vivem a apanhar os cacos um do outro, ainda hoje tentam recuperar memórias, juntar pontas soltas. A mãe lembra-se de naquele domingo ler a notícia de uma tragédia com jovens no Meco em rodapé na televisão. “A Catarina tinha-me dito que ia para uma casa alugada em Sesimbra, ia preparar as praxes do ano seguinte. Como é óbvio, começámos a ficar inquietos e ela não atendia o telefone.” Moram no Barreiro, fizeram-se logo à estrada, “com os quatro piscas ligados”. Depararam-se com um aparato brutal, ainda rezaram para que o sobrevivente de que se falava fosse Catarina, até que a psicóloga do INEM lhes deu a notícia. “Entrei em negação, parecia que estava noutra dimensão, estava dormente. Depois vem a agonia, a falta de uma justificação lógica. Percebi que a minha vida tinha terminado ali, a minha felicidade tinha acabado”, relata Fernanda.

É um dos rostos mais conhecidos da batalha judicial que os pais têm travado, aguerrida, nunca baixou os braços. “Foi tudo tão cruel que só quando a poeira assenta e nos sentimos enganados é que partimos para a luta. Tinha de lutar. É uma missão que me tem alimentado, que tem feito com que ainda tenha coragem de acordar todos os dias.” Fernanda nunca tinha estado num tribunal antes, “e toda a pressão de lá estar, o medo, o ter de pedir dinheiro por um filho para saber o que aconteceu, a revolta adensa-se”. São os processos arquivados pelo caminho, os recursos, a impotência, o peso emocional, o financeiro. “São milhares de euros, não queremos recuperá-los, só queremos justiça.”

O escultor João Cutileiro criou um memorial, em forma de cruz, em homenagem aos seis jovens que morreram no Meco. Foi inaugurado em 2015 e está instalado no alto da praia
(Foto: A-gosto.com/Global Imagens)

O Papa Francisco recebeu Fernanda e os outros pais em 2015, na Páscoa, isso deu-lhe forças. Nunca conseguiu despedir-se da filha. Tem dois lugares de culto, a sepultura de Catarina, no Barreiro, e o memorial criado por João Cutileiro em homenagem às seis vítimas, no Meco. Em casa, Fernanda mantém o quarto de Catarina, guarda as roupas, os brincos, os colares, usa-os de vez em quando. “A minha filha continua a ser um elemento da família, tenho de conviver com o que era fisicamente dela e continuo sempre a falar dela.” Chama-lhe menina, sorri ao lembrar-se da alegria de viver de Catarina, “todos os momentos eram poucos para se divertir, onde havia festa ela estava”.

A alma ficou para sempre em ferida. E, dez anos volvidos, Fernanda tem algumas certezas. “Ela iria querer que eu lutasse. Esta luta é para a vida. Feliz já não consigo ser, agora é sobreviver. Mas nunca vou desistir. Tenho a sensação que a última coisa em que vou pensar quando fechar os olhos é nela.”