Conectar o cérebro a telemóveis ou computadores. O futuro já mora aqui?

O implante cerebral anunciado pela Neuralink de Elon Musk não é novidade no mundo científico, mas abriu a porta ao debate. O objetivo é permitir que pessoas com incapacidades motoras consigam controlar dispositivos eletrónicos só com o pensamento. Um avanço importante. O problema é que esta tecnologia também pode vir a ser usada em indivíduos saudáveis, para enviar um SMS com a força da mente ou até para modificar a personalidade. A imaginação é o limite e o que aí vem augura tanto de bom como de assustador.

Um chip, do tamanho de uma moeda, implantado num cérebro humano poderá permitir que pessoas com problemas motores, nomeadamente doentes tetraplégicos ou com esclerose lateral amiotrófica, controlem dispositivos eletrónicos, seja um telemóvel ou um computador, só através dos pensamentos. O anúncio foi feito pela startup Neuralink, do multimilionário Elon Musk, que fez o seu primeiro implante deste chip em humanos e gerou burburinho por todo o Mundo. Um mar de dúvidas veio a reboque. É um avanço para a ciência ou uma preocupação para o que o futuro nos reserva? As máquinas vão conseguir ler-nos os pensamentos? Afinal, o que é que já existe em matéria de chips cerebrais?

Comecemos pelo princípio. Na verdade, esta tecnologia tem décadas, chama-se interface cérebro-máquina, já é usada para estudar a forma como os nossos neurónios comunicam e é uma ambição antiga do setor da saúde para conseguir tratar, por exemplo, doentes paralisados. Nesse campo, estes implantes cerebrais têm vindo a ser testados em ensaios clínicos nos últimos anos – ainda sem resultados para uma aplicação generalizada. Inclusive na Europa, da academia a empresas. É o caso do instituto Grenoble Clinatec, em França, ou da empresa neerlandesa Onward. “Estes interfaces são capazes de captar a atividade cerebral e de a transmitir a uma máquina, que traduz a ordem que o cérebro deu. Tomemos como exemplo um doente com uma mão paralisada. Quando pensa que quer levantar a mão direita, essa ordem não chega do cérebro à mão porque há uma lesão neurológica. Com um interface destes, a atividade cerebral pode ser transportada para uma máquina que é capaz de dar a ordem para mexer a mão”, simplifica Rui Vaz, neurocirurgião e antigo diretor do serviço de neurocirurgia do Hospital de São João, no Porto.

Então, o que traz de novo esta experiência de Elon Musk, o polémico dono da Tesla e do X (antigo Twitter)? “Há uma melhoria tecnológica importante. Os implantes são muito mais pequenos e são colocados debaixo do cérebro.” Além, nota, dos avanços no próprio dispositivo que recolhe as ondas cerebrais. E não só, na cirurgia, Musk diz que é um robô a fazer a implantação do chip e não um neurocirurgião, o que pode conferir mais precisão. Dito isto, “há esperança que seja feito um avanço para tratar estes doentes, que continuam sem solução”.

A startup Neuralink, de Elon Musk, implantou com sucesso um microchip num cérebro humano, o primeiro de um ensaio clínico que deverá levar seis anos
(Foto: Leon Neal/AFP)

Porém, a questão desenha-se muito para lá da saúde e é essa a grande interrogação neste momento. A FDA, agência reguladora norte-americana na área da saúde, deu autorização à empresa de Musk para testes em humanos, mas está limitada a casos específicos de doença (está previsto durar seis anos, antes a Neuralink já tinha feito testes em macacos, ovelhas e porcos). Contudo, é sabido que as ambições do magnata são bem maiores e o nome Telepathy (telepatia) do chip pode ser um prenúncio de tudo o resto, quem sabe para chegar ao chamado homem biónico. “A partir do momento em que se consegue registar atividade neuronal, essa atividade pode ser traduzida de qualquer forma. O chip funciona como um interface, que traduz essa informação para uma máquina. Pode servir para controlar uma cadeira de rodas, um braço robotizado, um jogo de computador, até um telemóvel para mandar um SMS usando simplesmente o poder da mente. A aplicação desta tecnologia só fica restringida à nossa imaginação”, alerta João Peça, neurocientista e professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. E sim, a telepatia não está assim tão distante. “Já foram feitos testes em animais, pelo médico e cientista brasileiro Miguel Nicolelis, que a certa altura colocou dois animais a comunicar apenas por atividade neuronal.”

Sendo a Neuralink uma empresa com intuitos comerciais, João Peça não tem dúvidas que “isto abre outras portas”. “O que captura logo o nosso imaginário coletivo é a possibilidade de massificação desta tecnologia, quase como se pudéssemos colocar chips na cabeça da mesma forma que colocamos telemóveis nos bolsos.” E isso, claro, levanta uma série de questões éticas. “Até que ponto é viável colocar elétrodos no cérebro de indivíduos saudáveis? Até que ponto isto pode ser massificado?”, questiona. Lá iremos.

Mais memória, mudar personalidade, a ética

Antes disso, olhemos para estes implantes quando usados para estimular certas zonas do cérebro – e não apenas como um interface que recolhe e traduz a atividade neuronal para uma máquina -, que já são comuns na prática clínica para reduzir os sintomas de algumas doenças, como Parkinson ou epilepsia, com eficácia demonstrada. “O primeiro implante cerebral em Portugal fui eu que implantei, em 2002, num doente de Parkinson no São João”, realça Rui Vaz, que avisa que, em matéria de estimulação cerebral, entramos num terreno muito pantanoso, “se pensarmos que podemos utilizar estes implantes não apenas para tratar doenças, mas para modificar a personalidade”. Para aumentar a memória, para melhorar capacidades cognitivas, para alterar características comportamentais. “À luz do que se sabe hoje, isto seria possível. E claro que há muitas questões. Levando ao limite, seria ético usar um implante cerebral num serial killer para controlar a agressividade? Ou num toxicodependente para tratar a dependência?”, pergunta o neurocirurgião, que acredita que “tudo o que seja controlar a mente humana não deve ser permitido, tudo o que sirva para melhorar a qualidade de vida de doentes, claro que sim”.

Do tamanho de uma moeda, o chip da Neuralink foi implantado debaixo do cérebro
(Foto: Neuralink/Facebook)

João Peça tem as mesmas dúvidas. “O cérebro controla todos os aspetos do nosso comportamento, das nossas emoções e há uma capacidade enorme de o manipular que levanta muitas questões.” A propósito, lembra o caso de um estudo clínico que recorreu à estimulação cerebral para tentar tratar a obesidade mórbida. “O que aconteceu é que o indivíduo pareceu desenvolver uma memória prodigiosa. Estas estimulações precisam de ser muito bem afinadas.”

A ética está no centro de todos os debates que orbitam em torno do tema e Jorge Mateus, investigador do Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho, que está a concluir o doutoramento sobre melhoramento humano, reconhece que é “muito difícil definir a fronteira entre melhoramento e tratamento”. “O debate ético não dispensa toda uma reflexão filosófica sobre o papel do humano na sociedade e a sua interação com a tecnologia. Para que queremos estas tecnologias? À partida, quando pensamos em doenças, a utilidade parece óbvia”, refere. Mas, mesmo aí, a questão não é tão clara assim, levantam-se dúvidas sobre “o facto de serem altamente invasivas, sobre se haverá justiça no acesso, sobre a privacidade da informação cerebral recolhida – que são os nossos pensamentos -, onde fica armazenada, se pode ser vendida, a segurança, o consentimento”. “Devemos deixar nas mãos das empresas privadas este tipo de desenvolvimento tecnológico? E se formos manipulados pela própria máquina?”, questiona. É urgente discutir o tema “antes de os problemas surgirem, criar já regulamentação à cautela, antecipar potenciais interesses em melhoramentos cognitivos”.

As indicações da FDA e da União Europeia para implantes cerebrais em humanos são idênticas e estão previstas para os casos que já têm provas de sucesso, nomeadamente a doença de Parkinson, distonia, tremor, epilepsia, transtorno obsessivo-compulsivo. Mas Jorge Mateus defende que há que antecipar rapidamente o futuro, pois estamos a assistir a uma “cyborficação, à nossa fusão crescente com a máquina” e “há um grande aceleramento no desenvolvimento destas tecnologias”. Atenta a isso, a própria UNESCO já pediu urgência na regulamentação e ética da neurotecnologia. “Hoje falamos em usar esta tecnologia em doenças graves, amanhã estaremos a falar em doenças não tão graves, depois em indivíduos saudáveis para conseguir, por exemplo, uma melhor performance no trabalho. E isso é que é perigoso.”

Interfaces não invasivos, jogar com a mente

Aqui chegados, há que fazer uma ressalva, também existem interfaces cérebro-máquina não invasivos, com recurso à eletroencefalografia, nomeadamente toucas com elétrodos que captam a atividade neuronal (embora os implantes colocados diretamente no cérebro permitam captar os estímulos de forma mais robusta). “Aí a lógica é ser mais acessível, e sem efeitos secundários. Nos ensaios com animais têm sido reportadas infeções na zona dos implantes cerebrais invasivos, há sempre riscos”, sublinha Miguel Castelo Branco, neurocientista, diretor do Coimbra Institute for Biomedical Imaging and Translational Research (CIBIT) e membro do Laboratório Associado de Sistemas Inteligentes (LASI).

O CIBIT vai começar em breve um ensaio clínico para pessoas com autismo com um interface cerebral não invasivo. Em que através de um jogo, e só com recurso ao pensamento, “treina-se a atenção, a capacidade de imaginar, de reconhecer emoções”. Mas, neste momento, assinala Miguel Castelo Branco, “também já há empresas, como a Emotiv, a testar estes interfaces para jogos destinados a pessoas saudáveis”. O objetivo é conseguir jogar apenas com a mente, sem comandos, sem movimentos, nem sequer voz.

Há empresas, como a Emotiv, a testar interfaces cérebro-máquina não invasivos (como o que se vê na imagem) para videojogos. O objetivo é tornar possível jogar apenas com a mente
(Foto: Emotiv/Instagram)

E para lá do cérebro, o que é que já existe em matéria de chips para humanos? “Estão a ser testados implantes para a retina, por exemplo, para quem tem degenerescência macular, um problema de perda visual”, aponta o neurocientista. Há muita coisa a acontecer, estamos a ultrapassar a barreira dos pensamentos, a entrar na nossa cabeça, a assistir à ambição de criar super-humanos com chips, autênticos cyborgs, a fusão do homem com a máquina. Para já, para tratar doenças que provocam incapacidades físicas. Mas há uma certeza: o futuro é um mundo de desafios à espreita.


Chips no corpo, a tecnologia debaixo da pele

A fusão do corpo com a tecnologia também já é usada para fins mais banais. Há empresas a comercializar microchips que são injetados sob a pele e que permitem fazer pagamentos contactless passando apenas a mão num terminal multibanco. É o caso da biotecnológica Walletmor, em Londres, que vende esta solução no seu site. Mas a implantação de chips nas mãos (com naturais riscos de infeção) também pode substituir cartões de identidade, de transporte, ou servir para abrir portas. Tudo para simplificar o dia a dia. E estará a vulgarizar-se em países como a Suécia, onde, em 2021, uma empresa criou até um microchip para implantar o certificado covid. Antes, em 2018, o país tinha sido notícia pelas mesmas razões: nesse ano já três mil suecos usavam este tipo de implantes.