Joel Neto

Os olhos que me sorriem


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

De que cor são os olhos do Artur?, pergunto-me muitas vezes. Porque, postos perante o desafio de se assumirem, os olhos do meu filho escolhem sempre reflectir a cor mais bela nas imediações. Se lhe vestimos uma t-shirt azul, parecem azuis e, ao optarmos por uma camisola verde, ficam verdes com a mesma facilidade. Até quando o vou passear entre o Fanal, o Monte Brasil e a Marina, a ele e aos cães, capturam a cor da bandana que lhe ponho ao pescoço – e às vezes a bandana até é cor-de-rosa, o que de início confundia as pessoas que passavam.

– Que beleza. Mas é menino ou menina?!

– Ai, que linda!

– Então, não era um rapazinho que o Joel tinha?!

O que me permitia dizer alguma tolice sexista, do tipo:

– É para ver se ele desenvolve o lado feminino.

Posto o que, então, sim, elas aproximavam o rosto, intrigadas:

– Mas que olhos são estes? Que cor é esta?!

Quem tinha uns olhos parecidos era a avó Teresa. Foi minha professora no sétimo ano, a primeira grande professora de Português que tive, e a única coisa mais evidente do que a sua elegância era que me metia medo. Nunca imaginei que o meu filho viesse a ser neto dela, e também não estou certo de que, se ela fosse viva quando eu e a Marta começámos a namorar, eu tivesse tido coragem de me aproximar da filha. Aqueles olhos carregavam esse poder.

A dúvida, pelo menos no caso do Artur, é que cor terão os olhos dele se um dia não encontrarem outra para reflectir. Por exemplo, predominando à volta o preto ou o branco, deixam vir ao de cima um cinzento quase metálico, mas, se lançarmos mão das jardineiras plúmbeas que já não sei quem nos ofereceu, e que com o chapéu de abas largas faz o Artur parecer o Huckleberry Finn naquela versão do Tom Sawyer que dava na nossa infância, assumem logo um cinzento furtivo, como que ansioso pela primeira oportunidade de se vestir de outra cor qualquer.

Já andei no Google à procura de um nome para essa cor, algures – diria eu – entre o RAL 7015 e o RAL 7024. Mas nenhuma paleta me apaziguou em definitivo. Nesta parece-me cinzento-crómio, talvez cinzento-níquel, e naquela cinza-elefante ou cinza-violino, o que já me levou a estabelecer tratar-se antes de um cinzento-tweed clássico, mas apenas por o nome ter mais estilo.

Num romance que publiquei há uns anos, havia um dilema em torno de uma cor assim. Luísa Bretão, a heroína, subia diariamente a ladeira em direcção a um miradouro para se pôr a olhar para a cor impossível de São Jorge ao crepúsculo: “Uma cor que não era castanho nem cinzento, nem verde sequer – que era isso tudo ao mesmo tempo e era rosa também, como o dia que se extinguia atrás dela”. Enamorado, José Artur Drumonde, o protagonista, acabava por desafiar um vendedor de tintas a decifrar as exactas proporções de uma mistura capaz de forjar aquela cor, e no fim chamava-lhe Umbria, porque também o fazia lembrar “as montanhas da Úmbria, com as suas aldeias medievais fortificadas”.

É aí que estou, agora, quando me ponho a pensar naqueles olhos que me sorriem: nessa espécie de cinzento inacessível entre verde, o carmesim e nem sei mais quantas tonalidades – a cor de São Jorge ao crepúsculo. Mas talvez comece a ser tempo de encarar a possibilidade de lhe chamar apenas cinzento-Artur, por ser a cor irrepetível dos olhos do meu filho.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)