O peso da infância: arranhões psicológicos, feridas emocionais

A melancolia, a angústia, a falta de energia sem razão aparente. Os traumas de infância, os impactos na vida adulta. Como lidar com as emoções que moem a alma (e que não estão resolvidas)?

É necessário recuar à infância, ao passado, aos primeiros anos de vida. Há uma parte significativa de mazelas psicológicas que acontecem neste tempo em que tudo se absorve, sobretudo dentro de casa, junto da família. Alberto Lopes, neuropsicólogo, presidente da Associação Portuguesa de Hipnose Clínica e Hipnoanálise, autor de vários livros, diz com todas as letras. “O que acontece na infância não fica na infância.” Espalha-se pela vida adulta, molda comportamentos, afeta formas de sentir, de estar, de amar, de se relacionar consigo e com os outros. Por trás de um adulto que acredita em si, está uma criança que o fez primeiro – e uma família.

O contrário também acontece. Um adulto inseguro, pouco confiante, vulnerável e triste, revela uma criança sofrida, pouco amada. A estrutura familiar é o pilar, o verdadeiro suporte. O que espera um bebé e uma criança nos primeiros anos de vida? Amor, segurança, proteção, validação incondicional. Quando isso não acontece, há repercussões, traumas, mágoas, dor – que, muitas vezes, passam de geração em geração. “Quando a primeira geração não cura, a segunda carrega no corpo”, observa Alberto Lopes recorrendo a palavras ditas várias vezes por quem percebe do assunto. “A criança traumatizada continua viva na vida do adulto”, sublinha.

Há questões que podem gerar uma ferida emocional. Umas transitórias, outras permanentes. De qualquer forma, há sempre impacto a vários níveis. “O sofrimento psicológico faz parte do nosso dia a dia e da nossa existência enquanto seres humanos, mas quando é intenso pode constituir-se como um trauma e deixar marcas emocionais para toda a vida”, constata Catarina Lucas, psicóloga clínica e terapeuta de casal.

As emoções constroem-se ao longo do tempo, do desenvolvimento, da aprendizagem. As emoções adaptativas são saudáveis, protegem, ensinam a atuar, a encarar e a navegar pelo Mundo. As emoções desadaptativas são desreguladas, manifestam-se de diversas formas, seja através do medo intenso que permanece durante muito tempo, seja uma vergonha que é uma ferida emocional que nada diz como estar bem, nem o que fazer – eu não sou suficiente, eu sou fraco, eu não presto, eu não mereço nada. Nuno Mendes Duarte, psicólogo clínico, psicoterapeuta, diretor clínico da Oficina de Psicologia, autor do livro “Superar a ansiedade”, começa por aqui, pela essência, pelas origens normalmente associadas a “ambientes pesados e dolorosos”. Traumas vividos no passado, na infância, na adolescência, até mesmo episódios de negligência e violência. “Um trauma é uma aprendizagem disfuncional face a um contexto”, refere. As figuras de vinculação, os pais, avós, familiares mais próximos, são determinantes para essa construção, para definir e sustentar crenças e conceitos.

A dor que consome sem se ver tem causas e explicações. “A maioria destas feridas emocionais advém de situações traumáticas vividas ao longo do desenvolvimento, sobretudo na infância”, adianta Catarina Lucas. As suas raízes são profundas. “O medo do abandono, da rejeição e da traição são comummente tidos como feridas emocionais profundas”, especifica a psicóloga clínica. A injustiça e a humilhação também são arranhões emocionais comuns.

“As feridas psicológicas são como sementes plantadas no jardim pela própria pessoa”, repara Alberto Lopes. Onde tudo pode nascer e rebentar. “Essas ervas daninhas plantadas na infância que levam a autossabotagem nas relações e na vida profissional.” Há que perceber a origem desses arranhões, há que tentar encarar a situação e lidar de forma funcional com o que mói e remói as entranhas. O que nem sempre é fácil quando tudo isso está lá atrás, bem lá atrás, no passado – há até feridas herdadas de gerações antigas através de uma memória genética.

Ouvir, dar espaço, encontrar significado

O que vem de trás reflete-se mais à frente, causa mazelas internas, repercute-se em comportamentos disfuncionais, feridas emocionais abertas que se expressam de várias formas. O neuropsicólogo dá exemplos: medos irracionais, distúrbios de ansiedade, episódios de pânico, dificuldades de relacionamentos, perturbações impulsivas, até doenças físicas. As dores dão de si e vê-se baixa autoestima, isolamento, solidão, a sabotagem de si mesmo, a constante ligação às redes sociais para tentar mostrar o que não se é. “A imagem perfeita para esconder um vazio interior onde moram mazelas psicológicas”, assinala Alberto Lopes.

O processo emocional é bastante complexo. O que se entranha bem cedo, torna-se difícil de gerir, de encaixar, de encarar. “Em todos esses traumas, nessas aprendizagens que fazemos em criança, aprendemos coisas sobre situações e sobre nós”, considera Nuno Mendes Duarte. E há pensamentos que não se vão embora. “Eu não sou bom, há qualquer coisa em mim estragado.” Nesse estado, não se consegue agir sobre o Mundo, há uma sensação de fraqueza que persiste. E vem a tristeza, não aquela tristeza que serve para arrumar as perdas, a tristeza útil, mas a tristeza desadaptativa, que prende, de dentro para dentro da mesma pessoa. A energia baixa, a autoestima também. Há pessoas que se isolam, que evitam o contacto, que controlam as emoções, que não as conseguem gerir.

“O que normalmente acontece é que estas emoções vão perdurando, como gatilhos que atraem essas reações”, realça o psicólogo clínico. Há também comportamentos autodestrutivos, quando as feridas emocionais são muito intensas, consumo de álcool e de drogas, sexualidade desregulada e pouco afetiva, automutilação. “Comportamentos que parecem que não fazem sentido, mas que trazem algum alívio.” Por um lado, um hipercontrolo, não se quer sentir a ferida, supressão total, evitamento social. Por outro, a desregulação emocional para contornar os arranhões psicológicos. “Aprender várias maneiras de não sentir dor que mais tarde são fontes de sofrimento”, sugere Nuno Mendes Duarte.

O corpo dá de si quando a cabeça não está bem. Catarina Lucas fala num processo introspetivo. “É preciso olhar para dentro, ouvir o corpo e a mente, dar atenção aos sinais.” Parar e escutar. “Chegados aí é preciso ouvir as nossas emoções e cognições, compreender a origem e atuar sobre o sintoma.” E, depois, agir. Muitas vezes, dar significado à dor e ao trauma exige um processo psicoterapêutico. Recuperar o sossego interior não é fácil. “Fazer psicoterapia é essencial, tanto para reconhecer as feridas, descobrir a sua origem, e aprender a lidar e libertar se delas.” “É preciso dar oportunidade de ouvir a dor e não apenas camuflar e fingir que não existe”, frisa Catarina Lucas.

“A empatia e aceitação são regras-chave, tanto em relação a nós como aos outros. O autoconhecimento e o autocuidado podem ajudar no nosso processo pessoal. Quando ocorre com outra pessoa, dificilmente conseguiremos ser o agente de mudança, todavia, conseguiremos estar ao lado e dar a mão a essa pessoa, mas sem pressionar”, diz Catarina Lucas.

Alberto Lopes fala em cinco passos. O primeiro é o autoconhecimento, saber que feridas do passado perturbam o presente. Segundo, procurar ajuda profissional especializada, terapeutas. Terceiro, libertar energias associadas a memórias traumáticas com terapias. Quarto, autocuidado, tempo para desligar, dormir, descansar, fazer o que se gosta. Quinto, exercer a compaixão, a gratidão. Fazer as pazes com o passado. “O perdão é o amor a contemplar o passado. O autocuidado, o amor-próprio, uma rede de apoio, funcionam como um analgésico natural para o nosso conhecimento e são um antídoto poderoso para a solidão”, refere Alberto Lopes. Resgatar a criança ajuda a resolver o adulto.

Nuno Mendes Duarte também fala em terapia. “Aprender a dar espaço para observar o que está a acontecer. Trabalhar essas emoções de zanga, de tristeza, as emoções desadaptativas. Desbravar as várias emoções para ver os significados que prendem de alguma maneira.” Tratar dos assuntos inacabados com terapia focada nas emoções, falar para uma cadeira vazia o que se quer dizer e tanto custa sair de dentro. Tratar emoções que estão presas. “Aumentar a tolerância à incerteza, ganhar novas ferramentas que não se aprendeu.” E tentar mudar, nas crenças, nos comportamentos. Procurar um novo olhar, encontrar novas emoções. Para tentar fechar as feridas que teimam em latejar.