Joel Neto

Desculpa, filho


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Abres uma empresa com a tua mulher e, decidido a dar-lhe um nome adequado – isto é, em vez de “Paga e Leva, Lda”, “Uteklīv Pullmôn”, “SusAndreia Manicures” ou outro disponível -, escolhes esperar pela burocracia. Tens um contrato carente de assinatura, porque não há NIF nem existência formal, mas a dada altura já só te falta a Certidão Permanente. O teu contabilista diz:

– Já vi levar dois dias e duas semanas. É esperar.

Preparas-te para que leve duas semanas. Leva três, e traz problemas. Correcções ao objecto social, dúvidas nos gerentes, mas pouco mais – é rápido.

Portanto, a coisa avança. Recebes mais instruções do contabilista, do economista, do senhor das Finanças, de uma tia velha. Reúnes a Certidão Permanente e os cartões de cidadão dos gerentes. Aproveitas e juntas numa pastinha tudo o mais que há lá por casa: certificados, facturas, embrulhos de pastilhas elásticas. Conferes o estado da Cloud, onde tens mais documentos ainda – perdão, documentação, documentacionamentalização -, e fazes download de tudo, para não seres apanhado sem rede.

Agora já só precisas de abrir uma conta num banco, para teres um IBAN e uma prova do depósito do capital social, posto o que podes entregá-los nas Finanças, accionar a actividade da empresa e assinar a gaita do contrato, que até já tens medo de te cruzar com o senhorio. Estás quase lá. Mas falta o código RCBE.

– Como assim? Errequê?

– Registo Central de Beneficiário Efectivo.

Procuras na Cloud.

– Ah-há! Está aqui! Declaração de Beneficiário Efectivo. Eu sabia! Ainda bem que trouxe tudo.

Interiormente, fazes uma dancinha vitoriosa. Olhas a tua mulher com desdém. “Tu é que nunca te esquecias de nada, não era?”, murmuras. “Por acaso tinhas a Declaração de Beneficiário Efectivo? Ah, pois é, bebé.”

– Não serve. É o próprio RCBE. O código. Um código alfanumérico.

Ligas ao contabilista, já em desespero, e corres para um solicitador. Atropelas duas velhinhas. Nem cumprimentas o funcionário. Pedes pelo amor de Deus.

– Não há problema nenhum. Tratamos disso ainda hoje.

– Pode ser agora?

Pode ser agora. Estás quase lá. Depois é só ires com o alfanumérico ao banco, validares a Certidão Permanente e o RCBE, assinares os papéis todos, dares o IBAN e a prova de depósito ao contabilista, esperares que este os valide nas Finanças, receberes a confirmação do início de actividade e teres, enfim, autorização para usar o NIF. Quase lá! Além do mais, o assistente do solicitador é eficientíssimo. Tira fotocópias. Preenche papéis. Confere a documentacionamentalização. Pergunta se queres pagar já – e pede-te o NIF da empresa.

– Como?! Oh, por favor! O NIF não está activo, porque ainda não há actividade, porque não temos conta no banco, porque falta o RCBE, porque estou aqui à espera.

Mas ele sorri:

– Ah, não tem problema. Pode ser o seu.

E, quando enfim acabas de escrever isto, já recebeste o RCBE no email e está tudo mesmo quase. Mas permaneces sentado diante da rapariga do banco, que luta com o computador.

– Peço desculpa. Hoje andamos com problemas no sistema.

Como é que eu explico este mundo ao meu filho?

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)