Rodrigo Amarante: “As palavras, na música, têm de soar como a fala”

Rodrigo Amarante está a fazer uma turné europeia

O músico brasileiro regressa a Portugal com uma turné europeia que começou nos Açores e passa por Porto e Lisboa. Ponto de partida para uma conversa sobre o último disco, a escrita, a palavra e a melodia, as birras musicais, o genérico de “Narcos”, Carminho, o percurso a solo. Sem a barba farta de outrora, a partir de Los Angeles, onde vive desde 2008

“Drama” é o seu mais recente álbum que trouxe a Ponta Delgada, ao festival Tremor, nos Açores. O músico teve concerto no 18 de abril, na Casa da Música, no Porto, e no dia 19, no Cineteatro Capitólio, em Lisboa. Continua a dar vazão aos sentimentos e recusa-se a abafar a pulsão romântica. Para si, as palavras, na música, têm de soar como a fala ou como o pensamento. Aprecia o caos que as rimas provocam e não gosta quando os compositores desrespeitam as sílabas tónicas das palavras numa melodia. E está feliz por voltar.

“Drama” é o seu mais recente disco. Diz que nasceu de uma birra musical. Que birra foi essa?
Comecei a escrever com uma ideia bem diferente do que acabou por ser o disco. Comecei por querer fazer um disco menos harmónico, menos cheio de camadas, mais percussivo e menos dramático. Percebi, nessa intenção, uma psicologia, eu querendo esconder a minha pulsão romântica e o amor pela melodia e pela harmonia. A birra está aí, na minha mudança de direção, de resolver abraçar essa pulsão. Quis fazer o exercício de focar a melodia no ritmo, ou seja, não criar progressões de acordes superelaborados. Em dado momento, resolvi abraçar, exagerar, ir com tudo.

No fundo, foi dar vazão aos sentimentos?
Não sei se acredito na escrita como simplesmente uma coisa para si. E está aí a pulsão genuína de escrever. Mas, no fim das contas, a pulsão da escrita é para o outro – não quer dizer que escreva algo em que não acredito ou que seja para o gosto do outro. A escrita tem de ser um exercício de descoberta, é preciso que algo ali seja novo para mim, que sirva a mim. Mas, no fim das contas, é para o outro, uma pulsão de se oferecer algo.

Um processo de descoberta de si e dos outros?
Não dos outros, não acredito que é possível. A escrita deve ser um processo de descoberta de algo de si, mas a busca de algo universal, que sirva o outro. Uma história da minha infância que me toque, que me faça descobrir algo, imagino que contém algo que seja universal. Essa é a pulsão de cantar, de dividir algo que seja universal, que sirva o outro, que toque o outro, que seja bonito para o outro.

Compôs e escreveu o disco num contexto complexo, num tempo de pandemia. Isso influenciou-o?
É difícil separar a pandemia de qualquer outra coisa. Influenciou a minha culinária, o meu guarda-roupa. Mudou o rumo das coisas na feitura do disco porque a pandemia começou justamente no meio do processo. Não pude fazer as gravações ao vivo com a banda, como fiz na primeira metade. A segunda metade tive de voltar a fazer sozinho. O facto de estar sozinho com as canções ajudou-me a mudar esse rumo, a ver uma coisa que talvez não visse se estivesse gravando com a banda, que é essa coisa da pulsão, de dar espaço a essa coisa romântica (uma palavra um pouco bidimensional no sentido musical). Pude dar vazão a esse luxo dos arranjos superelaborados. Se não fosse a pandemia, talvez não tivesse caído nessa.

Foi navegando entre sorrisos e lamentos na criação do álbum?
A vida é isso.

Tem poemas e contos guardados na gaveta. São matéria-prima para as suas canções?
Não diria matéria-prima, é parte do exercício de tentar depurar uma ideia. Quando a gente verbaliza uma ideia ou conta uma história, revela-se algo ali, até para quem está contando, para quem está escrevendo. O exercício de escrever, para mim, é tentar sacudir uma ideia ou uma história e ver o que cai, o que aparece. Um poema também, brincar com as palavras e ver o que dali sai. Essas coisas são parte do processo. Ideias ou histórias assim acabam em canções. É como se a ideia fosse uma pedra e o fluxo da escrita é o rio. Essa pedra vai batendo para lá e para cá e vai perdendo as pontas, vai ficando mais redonda.

Há um equilíbrio entre a palavra e a melodia nas canções? Ou é cada uma por si?
Não, cada uma por si é o terror. É o que a gente chama de prosódia, esse equilíbrio delicado. A canção está aí, nesse equilíbrio. Odeio quando os compositores desrespeitam as sílabas tónicas das palavras numa melodia. Não gosto. É tão bom quando uma melodia reflete uma ideia ou quando uma ideia entra numa melodia e se ajusta. As palavras, na música, têm de soar como a fala ou como o pensamento. A canção é melodia e letra. O resto – acordes, arranjos – é ponto de vista. A canção está nesse casamento.

Entrar pelas tripas e amolecer o coração. É esta a fórmula quase perfeita de uma música?
Se eu soubesse… Não sei. Estou procurando, procurando.

Mas deve ser esse o impacto de uma canção?
Uma boa canção é a canção que toca. Há grandes canções que são super simples. Há grandes canções que são superelaboradas. No fim das contas, é aquela que toca.

Compor é um processo criativo doloroso? Ou um processo feliz?
As duas coisas. Não é nem fácil, nem difícil. Há uma alegria imensa quando agarro uma ideia que sinto que vale tanto musical quanto nas palavras. Mas, às vezes, é como um labirinto que não se sabe se há saída. Às vezes, entro com uma ideia musical, uma ideia de letra, e é preciso resolver para onde ir. E pode ser frustrante. Mas a alegria de terminar uma canção supera tudo.
Com frequência faço rimas internas, e coisas assim, outros esquemas de rimas que não são tão aparentes e que eu adoro fazer. E é divertido porque a rima introduz uma dose de caos à escrita, ao buscar uma rima encontram-se ideias que não ocorreriam não fosse essa avenida da rima. Não é só a razão, tem um elemento de caos que é introduzido na visita das rimas. É quase uma coisa mística de ir buscar uma rima e com isso oferecer ao santo uma oportunidade de participar na escrita. Mas não é sempre alegria, às vezes sento-me e não sai nada.

Fez parte de bandas, como Los Hermanos, sucesso da música brasileira. Entretanto, iniciou uma carreira a solo. É um caminho mais solitário e mais aborrecido ou mais tranquilo e confortável?
Nenhum dos dois. Não há mais tranquilidade em não participar de um grupo. É mais difícil por um lado. Entre Los Hermanos e a minha carreira a solo, teve outras coisas: Litlle Joy, Orquestra Imperial. Ter uma carreira a solo quer dizer não ter companheiros ou companheiras com quem refletir ideias e multiplicar. Há vantagem de não ter de debater ideias com os outros e há a desvantagem de não poder debater ideias com os outros. Quando me esqueço da parte chata de ter de encontrar um lugar-comum nas ideias, sinto falta dessa mesma coisa, de ter de compartilhar ideias e daí criar uma coisa conjunta. Uma coisa não é melhor do que a outra.

Como lida com as críticas ao seu trabalho musical?
Não penso muito sobre isso. Não fui muito atacado por este disco. Adoro quando alguém escreve algo interessante, é claro, é maravilhoso ver alguém interpretar de verdade, não só dizer ‘ah, esta música parece não sei o quê’, falar de referências musicais simplesmente, mas alguém entrar na onda é ótimo, é maravilhoso. Mas não perco o sono com isso.

O Brasil tem uma riqueza musical imensa. Ser um dos representantes desse legado é um fardo pesado?
Não. É uma alegria incrível. Não é para mim dizer se carrego ou não carrego, se faço parte e tal. Tenho estudado músicas brasileiras dos outros. Vou entrar nesta turné e quase nunca toco músicas dos outros e então pensei “bom, os meus mestres sempre tocaram músicas dos outros, porque não posso eu?” O que, de certa maneira, revela essa minha intenção de ser autor. Ou seja, revela uma coisa de eu querer fazer parte desse cânone brasileiro, de compositor, que é uma heresia total porque eu não chego nem perto daqueles que venero, dos grandes compositores da música brasileira. Mas eu sou um compositor e sou brasileiro e viajo o Mundo cantando as minhas canções. Não quer dizer que faço parte de cânone algum, claro, mas tenho a chance de cantar as minhas canções . E o resto, as outras pessoas é que decidem. Não é um fardo, pelo contrário, sinto-me muito privilegiado de poder fazer isso da vida, de poder ir aos Açores cantar as minhas canções, viajar pelo Mundo. Tento fazer o meu melhor. Não sou mais do que isso, alguém com muita sorte, e tento honrar essa oportunidade.

Já conhece o público português. É uma plateia calorosa e animada?
A gente divide muita coisa, principalmente eu, sendo carioca. Eu acho que o carioca é o brasileiro mais português que há. Essa sensação de visitar um primo, alguém com quem divido tanta coisa, mas que está longe, nunca passa. No sentido da canção, não só de visitar e dividir, para mim, tudo é uma coisa só, é um público que entende as minhas canções em português e que não é um público brasileiro, é europeu. É muito interessante e rico e maravilhoso de ver a interpretação do português, da minha escrita. O português é a nossa língua, temos essa cumplicidade. Há um carinho mútuo.

Há algum artista português com quem gostaria de cantar ou tocar?
A resposta vai ser um pouco óbvia. Agora muito mais óbvia do que quando a vi pela primeira vez. Há muitos anos, fui a uma casa de fado e vi cantar Carminho e foi uma loucura. Desde então, fantasio em cantar com ela. Tive o privilégio de conhecê-la rapidamente. Sou um admirador. Eu, e como se diz no Brasil, eu e a torcida do Flamengo.

O que mudou depois de compor e cantar o genérico da série “Narcos”, um sucesso internacional?
Como todo o sucesso, ampliou a visibilidade. Um exemplo: por conta do sucesso da série e da música na Turquia, fiz espetáculos em Istambul duas vezes. Não mudou o que eu faço, só entra um pouco mais de dinheiro e um pouco mais de gente para ouvir a música. O sucesso dessa música foi ótimo, não tenho reclamação alguma.