Amor em tempo de guerra

Iryna e Mariia chegaram a Lisboa em 2019, quiseram sair de uma Crimeia anexada pela Rússia para fugir à dureza do preconceito. Yaroslav e Rita trocaram cartas de amor à distância até juntarem os trapinhos em Albufeira. No amor que se desenha entre ucranianos e russos imigrantes no nosso país, a guerra não entra. E a paixão por Portugal é gigante.

As malas arrumadas, 2019, um destino: Lisboa. Iryna Hubanova e Mariia Iakubovich aterravam na capital portuguesa à procura de muito mais do que melhores condições de vida. “Estávamos à procura de um país com mente aberta. E aqui há bom tempo, mar”, conta Iryna, que já se desenrasca num português mergulhado em pronúncia de leste. É ucraniana, 37 anos, nascida e criada em Sevastopol, na Crimeia, ainda a União Soviética existia. Foi o amor por Mariia, jovem russa de 29 anos, que empurrou o casal para Portugal. Para o entender, temos de rebobinar a cassete até 2010, quando Mariia largou o norte da Rússia, ali paredes-meias com a Finlândia, para estudar Geografia em Sevastopol.

“Eram bons tempos para os russos na Ucrânia. Na verdade, os povos dão-se bem. E decidi ir. Porque gosto do país”, assume Mariia. Foi aí que a vida lhe pôs Iryna no caminho. Conheceram-se num clube de wrestling, praticavam as duas. Começaram a namorar em 2013 e nunca mais se largaram, numa história de vaivém entre cidades e países. Viveram juntas na Crimeia, chegaram a mudar-se para São Petersburgo, na Rússia, até voltarem à Crimeia. E nesse corrupio assistiram, na primeira fila, à tomada da Crimeia pela Rússia, em 2014. Estavam lá. “Pensávamos que não seria possível. E houve muitas mudanças. Já antes sentíamos o preconceito. Mas, depois disso, com o Governo russo, havia um novo ambiente político. Não eram só questões com a comunidade gay, qualquer pessoa que não gostava do Governo tinha problemas”, relata Iryna.

O turismo caiu a pique, a cidade onde cresceu estava a mudar. Mas, problemas: “Se tivéssemos um bom emprego, podíamos perdê-lo. Se nos acontecesse alguma coisa, a Polícia não nos protegia. Usavam a televisão para propaganda contra a comunidade gay. Por isso é que os homossexuais se escondem.” Enfiaram a vida em bagagens até Portugal, a irmã de Iryna já cá vivia. Gostam do clima, do mar, das pessoas. Iryna ainda trabalhou numa loja de comida russa até conseguir, finalmente, emprego como personal trainer num ginásio, quando começou a falar português. Mariia recorre-se do inglês, ainda lhe falta a confiança, tem dois empregos. Trabalha à distância, em part-time, como web-developer para uma companhia russa. E cá trabalha em suporte técnico em teleperformance. Já correram o país, renderam-se. Porto, Braga, Fátima, Portimão, Lagos, Sesimbra, Nazaré, a lista não tem fim. “Gosto muito de Portugal. Não temos muitos amigos portugueses. Todos os meus amigos são russos, ucranianos ou de outros países do Mundo. Mas adoro as pessoas daqui, são muito acolhedoras e de mente aberta”, diz Mariia. Os cabelos curtos e a postura denunciam uma mulher que respira liberdade, foi isso que encontrou em Portugal.

Mesmo carregando heranças diferentes, vestem as mesmas lentes quando olham para a guerra no leste europeu. “Cresci no norte da Rússia, tenho a minha família lá e ainda vivi em São Petersburgo. E, para mim, é inacreditável. Já em 2014 fiquei chocada. E agora, outra vez? Só consigo sentir vergonha. Mas sei que muitos russos apoiam isto. E até se orgulham”, confessa Mariia. Iryna tem família na Crimeia. Evita as longas discussões com a mãe. “Ela está lá e gosta de ser russa, acredita no que se diz na televisão. Sabe que não tem uma vida melhor agora, que até é mais difícil. Mas acredita que seria pior se a Crimeia voltasse a pertencer à Ucrânia.”

Um país que acolheu e virou casa

Portugal é agora o lar do amor entre dois lados de uma guerra alimentada por divisões muito mais políticas do que sociais (apesar da forte propaganda do Kremlin a criar fraturas entre os povos). Os esquiadores russo e ucraniano que partilharam um abraço nos Jogos Olímpicos de Inverno são um retrato disso mesmo. E Iryna e Mariia querem ficar cá, têm poucas dúvidas. Não é de agora que o nosso país se tornou casa para muitos imigrantes ucranianos e russos. O início dos anos 2000 marcou a primeira grande onda de imigração dos países de leste, sobretudo da Ucrânia. Olhemos para o ano da viragem do século, segundo dados do SEF e do INE, eram pouco mais de 500 os residentes russos no nosso país e 163 os ucranianos. Dez anos depois, em 2010, um retrato mais revelador: já eram 49 500 os ucranianos e cinco mil os russos. Para o aumento brutal, muito contribuiu o ano de 2006 e os seguintes, quando Portugal deu a possibilidade de conversão das autorizações de permanência e dos vistos de longa duração em autorizações de residência.

Mesmo sem qualquer ligação linguística ou cultural, ucranianos e russos conseguiram encaixar-se. “Não foi fácil. A adaptação, a procura de emprego, a língua, o acesso às legalizações”, lembra Igor Khashin, natural da Rússia e ex-presidente da EDINSTVO – Associação de Imigrantes dos Países de Leste, com sede em Setúbal. Criaram-se programas de ensino da língua portuguesa para estrangeiros, o Alto Comissariado para as Migrações (ACM) divulgou informação sistematizada sobre questões legais, o país deu passos, evoluiu. “O processo de imigração foi muito bem gerido pelo Estado português ao longo do tempo. E a comunidade portuguesa é muito acolhedora.”

Muitos imigrantes de leste com altas qualificações foram trabalhar para empregos menos qualificados, devido à dificuldade em falar a língua, um fenómeno que ainda hoje, segundo Igor Khashin, acontece. “Mas, agora, até já há empresas de imigrantes de leste consolidadas.” Nataliya Khimil, presidente da Amizade – Associação de Imigrantes de Gondomar e representante da comunidade ucraniana no Conselho Consultivo do ACM, é o exemplo claro. Era professora de Biologia na Ucrânia, cá trabalhou numa fábrica e até como empregada de limpeza. “Foi difícil no início, mas os portugueses, muitos deles pobres, ajudaram-nos muito quando chegámos, com roupa, mobília, comida.”

Vinha só para amealhar dinheiro e acabou por ficar, apaixonou-se por Portugal. “Gostei e vou gostar sempre deste país. A política portuguesa tem vários programas de apoio a imigrantes, sentimo-nos bem e protegidos aqui.” Foram os portugueses que incentivaram a comunidade imigrante a criar a associação Amizade, que hoje já conta mais de três mil associados, de várias nacionalidades, e iniciativas na área da educação, apoio social, ocupação de tempos livres para crianças, grupos de dança tradicional de leste, apoio jurídico, e até aulas de ucraniano para quem já nasceu cá.

Nas últimas décadas, houve picos na imigração, é certo. Muitos ucranianos e russos deixaram Portugal durante a crise económica, mas, “entre quem cá ficou, 80% a 90% quer ficar para sempre”, calcula Igor Khashin. Em 2021, de acordo com os mais recentes dados cedidos pelo SEF à “Notícias Magazine”, havia 27 195 residentes ucranianos em Portugal e 5156 russos, que sempre tiveram menor expressão. E estão espalhados por todas as regiões. “Já percorremos o país de norte a sul e os imigrantes de leste estão por todo o lado. Desde as grandes cidades ao Alto Alentejo, Trás-os-Montes. Deslocaram-se para onde encontravam emprego”, explica Igor.

Da Rússia a Portugal de autocarro

O Algarve também pode entrar nessas contas, se pensarmos em Yaroslav Todoriko, 59 anos, que se mudou de armas e bagagens para Portugal em 1999, oito anos depois da proclamação da Ucrânia como estado independente. Vinha de um país desarrumado, a tentar organizar-se depois de anos e anos a lutar pela independência. Os ventos gritavam liberdade, mas não havia trabalho, a vida estava difícil. “Muitos ucranianos andavam por Espanha, Itália, sabia-se pouco sobre Portugal.” Mas veio. Era só um ou dois anos, e já lá vão 23 de um amor a um país de “mar e Natureza”, onde chegou a trabalhar na construção civil ainda ilegal e numa oficina de pintura de automóveis. Um amor que não chega, ainda assim, aos calcanhares da paixão assolapada por Rita Shvedchikova, 54 anos, a russa que conheceu por carta e telefonemas sem-fim.

O casal de imigrantes Yaroslav Todoriko, ucraniano, e Rita Shvedchikova, russa, mora no Algarve, onde criaram uma agência de viagens destinada a turistas que falem russo e ucraniano. Já são portugueses e sonham viver cá o resto da vida
(Foto: Carlos Vidigal Jr./Global Imagens)

Yaroslav, cabelos e bigode grisalho, está em Albufeira, fala pelos cotovelos, num português perfeito, e resume: “Uma conhecida minha veio a Portugal com o marido e eu estive a apresentar-lhe o Algarve. No final, perguntou-me se eu tinha namorada. E, na altura, com quase 40 anos, estava divorciado, solto. Disse-me ela que me ia arranjar uma namorada, era casamenteira”. Pouco tempo depois, recebeu uma chamada de Rita, vizinha da “casamenteira” em São Petersburgo. Falam os dois russo, resquícios de uma União Soviética desfeita há poucas décadas. Seguiram-se dois meses de telefonemas de horas e de trocas de cartas com fotografias. “Carregava o telefone todos os dias com dez euros”, recorda ele. Descobriram a coincidência de fazerem anos no mesmo dia: 27 de março. Até que Rita se enfiou num autocarro de São Petersburgo em direção a Coimbra. Três dias de viagem. “Eu sabia em que dia ela chegava, mas nem sabia ir para Coimbra, qual era o autocarro, estávamos em 2001, não havia smartphones, GPS. Tinha um carro velhinho e fui. O patrão da oficina onde estava deu-me uns dias de folga.”

Estão juntos, até hoje. Casaram cá, conseguiram naturalizar-se ao fim de muitos anos ilegais. São portugueses, dizem-no com tanto orgulho. Yaroslav aprendeu a falar com os colegas de trabalho, a ler jornais, a ver novelas – “Filha do mar”, “Jardins proibidos”, “Morangos com açúcar”, é ele quem enumera. Rita teve horas e horas de aulas, tem quatro certificados, ainda tem medo de arriscar falar. “A língua portuguesa não é uma língua, é uma ginástica para a língua”, brinca. Em 2012, em Albufeira, abriram uma agência de viagens, Girafa Sábia, dirigida a turistas que falam russo e ucraniano. Tiveram a ideia por altura do Euro 2004, quando contactaram com a equipa russa que lhes pediu para os irem apoiar, e perceberam que os russos nada sabiam sobre Portugal. “Achavam que era um cantinho de Espanha”, lembra Yaroslav.

Conhece bem a história de Portugal e do Algarve, “melhor do que alguns portugueses”. É curioso, procura saber tudo. “Aqui não é só praia e sol, há castelos, paisagens, histórias, lendas que conto aos turistas.” O negócio estava a crescer até 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e sofreu sanções. “Tinha muitos turistas de lá, mas o poder de compra deles caiu. Ao mesmo tempo, apareceram muitos dos países bálticos e também da Alemanha e dos Estados Unidos, pessoas que tinham fugido da União Soviética, que falam russo e que estão reformadas.”

Numa casa onde mora uma russa e um ucraniano, há poucas questões em que não se entendem. E o atual conflito? “Conhecemos muito bem a história dos nossos países e sabemos pensar pela nossa cabeça, não pelo que é dito pela propaganda televisiva, que é fortíssima e carregada de mentiras. A Rússia está a invadir a Ucrânia sem legitimidade nenhuma. Estamos em 2021, há fronteiras definidas, só a Rússia é que vive nos tempos medievais e acha que pode anexar territórios assim.” Rita acena com a cabeça, subscreve. Yaroslav tem uma irmã, professora de russo, e sobrinhos na Ucrânia, “numa cidade bem a oeste”. Mas está tranquilo, ele e Rita. “Só queria que lá houvesse paz. Mas hoje o nosso país é Portugal”, remata ele.