Portugueses OzeArv, Regg e MrKas distinguidos pela Street Art Cities

Três obras de três portugueses estão nos cem melhores murais de arte urbana do Mundo numa lista da Street Art Cities, a maior comunidade digital da área. OzeArv, Regg e MrKas são os artistas distinguidos pelas peças de grande dimensão, duas em Lisboa, uma no México. O envolvimento da comunidade, novas perspetivas de olhar um bairro, outras formas de pensar o Mundo. Os detalhes das galerias a céu aberto.

Os murais não foram feitos do pé para a mão, nem de um dia para o outro. Demoraram tempo, deram trabalho, a dedicação compensou. No ranking dos cem melhores murais do Mundo de 2021, na lista da Street Art Cities, a maior comunidade digital de arte urbana, estão obras de três portugueses: José Carvalho (OzeArv) e Tiago Salgado (Regg), ambos de Lisboa, e MrKas, do Porto. Um pretexto para conversar sobre o estado da arte, conteúdos e estéticas, universos e referências, o processo criativo. Na rua e no ateliê.

A luz do sol já se foi e Tiago Salgado termina mais um dia de trabalho, anda a pintar um mural numa casa no Lumiar, ao lado do Museu do Traje, em Lisboa. Será uma guerra entre sexos, masculino e feminino, as ideias em constante ebulição, o artista gosta de arriscar. Há um pensamento inicial, normalmente as primeiras ideias acabam por não ser as melhores. Tal como aconteceu no mural “The Linen Ghost” no bairro 2 de Maio, na Ajuda, em Lisboa, um dos cem melhores do Mundo. Aquela parede podia ter sido uma pintura, foi outra. Foi um trabalho honesto, garante.

A história do bairro construído durante a ditadura para a Polícia do Estado, a PIDE, depois tomado pelo povo no 25 de Abril, as memórias e as lutas dos moradores daqueles prédios, na altura inacabados, fizeram parte do processo. “Ouvi as pessoas, os seus problemas, as suas dificuldades, relatos dos moradores mais antigos sobre as figuras encapuçadas que se mascaravam como fantasmas com lençóis e batiam às portas e janelas para assustar”, conta. Nunca souberam quem eram essas figuras. Tiago Salgado, artisticamente Regg – “R” de Robin Hood com lettering da Disney, “egg” de ovos da Páscoa e dos mistérios e segredos que guardam -, pintou esse fantasma, uma torre e um galo que simboliza a coragem dos primeiros residentes do bairro. “Deixei-me ir afetando pelo local e pelas pessoas. É um risco, como artista, e eu gosto disso.”

Tiago Salgado está satisfeito com o reconhecimento mundial. “E este mural em específico, viram qualquer coisa importante, a descrição da obra. Gosto muito desta peça.” Emocionou-se várias vezes em cima da grua, enquanto pintava e ouvia cânticos religiosos que saíam de uma igreja cigana ali em frente. Pintou mais dois murais no mesmo bairro com cebolas, busto de mármore, um sapato velho.

Tiago Salgado (Regg) explora novas técnicas no seu ateliê que quer levar para a rua – criar um tear na parede com fios de lã
(Foto: Diana Quintela/Global Imagens)

Noutro bairro de Lisboa, outro mural distinguido. José Carvalho namorou aquela parede no bairro da Graça, onde mora, frente ao lugar onde habitualmente toma café, durante anos. O prédio estava em mau estado, paredes a cair, reverteu-se a situação, a parede transformou-se em mural pintado por outro artista. Mais tarde, o prédio é vendido e restaurado. José Carvalho vislumbra a sua oportunidade, seguem-se conversas com o senhorio, Junta de Freguesia, Câmara de Lisboa, durante três anos. Em agosto do ano passado, chega a hora, salta para a grua, durante duas semanas pinta “Fado Tropical em Tons RGB”. Uma mulher negra numa floresta colorida de pássaros e plantas. “É a ideia de uma beleza sufocante, algo belo e atrativo ao olhar, mas quando o olhar fica preso na parede é quase sufocante. O fado tem isso mesmo, essa beleza sufocante, algo belo, mas sempre em dor”, descreve. Esse mural, dos melhores do Mundo, transmite a diversidade cultural de Lisboa, a chegada da comunidade brasileira, esse tropicalismo à vida da capital, as influências que se instalam. O RGB atira para o mundo digital, para os ecrãs, para um lugar onde a arte urbana também se mostra. No mesmo bairro, pintou a sua avó Maria Dolores, uma homenagem a uma mulher importante da sua vida que faleceu há dois anos.

José Carvalho é OzeArv, nome que formou com letras do seu nome e apelido, há quem lhe chame Zé, para construir uma identidade, é formado em Artes Plásticas, dá formação de murais em grafitti pela Europa, tem andado por Itália, Alemanha, Bélgica, Bósnia, Inglaterra, Espanha, Cabo Verde. É um artista visual. “A fachada é a minha tela preferida, a grua é o meu sítio favorito.” E o reconhecimento sabe sempre bem.

MrKas é do Porto, “Kas” vem de Kastália, salão de jogos que existia na Rua da Torrinha, onde se encontrava com os amigos quando era miúdo. Viveu em vários países, Espanha (Canárias), Bélgica, Inglaterra, voltou há dois anos e meio às origens, ao Porto. A cidade tem a sua marca, do lado nascente da estação de metro da Lapa, pintou o seu pai e um homem negro no estilo que criou: o “puzzlelism”. “Trabalho com sombras, com volumes, 3D. Posso jogar com as formas do puzzle, na vertical, na horizontal, com as formas do muro, a presença e a ausência de certas partes de uma imagem”, explica. “Não queria ser mais um artista que pinta caras, queria algo diferente, ter identidade”, acrescenta.

O mural “The linen ghost” foi nomeado como um dos 100 melhores do Mundo
(Foto: Diana Quintela/Global Imagens)

O seu mural “Frida Kahlo”, na lista dos cem melhores do Mundo, é construído em puzzle na horizontal, em Cancún, no México. Pintou-o em novembro do ano passado, no país da artista retratada. “Tentei capturar a imensa profundidade e inquietação da sua alma, dos seus olhos”, revela. MrKas tem obra em várias cidades e países, Miami, Israel, Itália, Dubai, Indonésia, Dinamarca, Irlanda, França, Finlândia, entre outros. Agora anda com vontade de fazer uma exposição das telas que pinta em acrílico.

Conceitos, mensagens, estéticas

A casa de MrKas é o seu ateliê, o seu ateliê é a sua casa. Pinta rostos, Dalí, Frida, Luther King, e muitos outros, em tela, tem vários quadros pendurados nas paredes, ultimamente tem vendido para os Estados Unidos. Em dezembro do ano passado, esteve em Miami e quer lá voltar. Há fatores que valoriza: estética, originalidade, identidade, mensagem. “O mais é importante é que existe uma mensagem”, observa. E a junção da obra de arte com o espaço urbano deve ser feita de forma harmoniosa. “Inserir a peça de arte com o meio envolvente, com a luz, a arquitetura, as cores.”

Na rua, é arte a céu aberto que chega a todo o tipo de pessoas. “A memória visual é muito importante, é muito importante o contacto com os locais, o que me dá sempre uma alegria muito grande, acrescentar algo à comunidade de um bairro.” Influenciar o dia de alguém, como acontece com um velho pescador que de casa vê o mural “O lobo e o mar” de MrKas na Póvoa de Varzim. “Lembra-lhe a vida no mar, abre a janela e vê a sua história de vida.” Na fachada dos Bombeiros de Coimbrões, em Vila Nova de Gaia, pintou um bombeiro com uma criança ao colo.

MrKas voltou ao Porto depois de ter vivido em vários países. Continua a pintar telas em acrílico e quer fazer uma exposição
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

OzeArv mistura realismo com abstracionismo, tão real e, ao mesmo tempo, tão abstrato, tal como a Natureza. “É trazer cor à cidade, tenho alergia a paredes brancas, dão-me comichão. Uma cidade com mais cor é uma cidade mais saudável e mais oxigenada.” Dá-lhe prazer, sente-se mais feliz. No seu ateliê, pinta, faz ilustrações, anda a fazer um quadro com restos de cartão, a reciclar material que encontra por onde passa.

Arte é emoção, é reação, seja boa ou má. Arte urbana está disponível a todos. “É uma peça de arte que envolve a comunidade. A beleza da arte de rua não é esperar que as pessoas venham ver uma peça, é trazer arte para o dia a dia das pessoas”, diz. É motor de mudança, social e económica, que envaidece, que puxa pelo turismo.

OzeArv recua à Quinta do Mocho, em Loures, início da década passada, um bairro fechado, policiado, em que autocarros e táxis não entravam. As mais de cem paredes tornadas murais mudaram tudo. OzeArv também ali deixou a sua arte em 2014 num mural com uma rapariga a montar um alce como meio sonho, meio realidade, com a mensagem de que os sonhos são possíveis. Com as tintas que sobraram pintou a entrada do prédio, as caixas de correio, e os moradores juntaram-se para comprar um vidro novo para substituir o que estava partido há anos na porta de entrada. “O bairro é considerado um museu sem horário de funcionamento, que saiu em todos os jornais nacionais, no “The New York Times”.” Um exemplo de como a arte urbana agiu e influenciou diretamente o espaço público, como as casas se tornaram obras de arte. “Como se tivessem uma dentadura nova e não parassem de sorrir. A arte de rua, além de valorização cultural, traz uma beleza física ao espaço. Não é uma coisa que se come ou que se bebe, mas que traz uma vida mais alegre e que nos faz questionar o Mundo”, realça OzeArv. A beleza da arte, no fundo.

Para Regg, a leitura dos murais não é óbvia, veem-se coisas bonitas nas paredes, há interação com quem passa, mas só quando explica o que pinta é que a interpretação se aproxima do que tenta transmitir. A degustação da arte é um processo demorado e com várias camadas. Mas uma coisa é certa: “Quanto mais trabalho na rua, mais envolvido com as pessoas, melhor é o meu trabalho”. Uma alegria difícil de traduzir em palavras.

Regg fala num deserto com coisas muito estranhas, objetos que falam por si, alguém isolado. Sempre adorou Dalí. “O meu universo sempre foi o surreal porque tem mais poder, não é de borla.” Entusiasma-se com o que faz, anda em permanente stress, porque é assim que tem de ser, dá-lhe pica ser provocado, e assim quer que continue a ser.

(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

No ateliê, Regg pinta telas em acrílico, anda a trabalhar coisas que apanha na rua, madeiras e gavetas, está a explorar técnicas que quer levar para a rua. Coser telas nos murais, como um tear à frente da parede com fios de lã, projeção 3D, pintar. “Um artista é um gajo que arrisca”, reforça. Com a sua história, técnica, identidade, experiências, referências, memórias, pessoas.

Clandestinidade e visibilidade

OzeArv nasceu em Lisboa, cresceu em Oeiras, sempre teve uma queda pelo desenho e pela pintura, aos 14 anos, andava pelo grafitti, por concursos em Algés, aquela sensação de pegar numa lata e fazer o que queria. Essa arte clandestina é uma parte importante do seu percurso. Tirou o curso de Artes Plásticas nas Caldas da Rainha e a confirmação. “É isto que quero fazer, mas não sei como vou viver disto.” Em 2006, vai estudar para Berlim, contacto permanente com a arte de rua, volta para Portugal, começa a pintar bares, discotecas, casas. Em 2009, Lisboa coloca a calçada da Glória à disposição dos artistas, como uma galeria de arte urbana, concursos de seis em seis meses. “Enquanto todas as cidades proibiam, Lisboa apoiava”, lembra. Essa Lisboa que viria a tornar-se capital europeia da arte urbana.

No Porto, MrKas teve problemas com a Polícia, multas para pagar, andava sozinho, de mochila, com latas na mão, assegura que nunca pintou monumentos, ainda não sabia bem o que era o grafitti até ver um livro de Martha Cooper, fotojornalista que documentava o panorama do grafitti em Nova Iorque nas décadas de 1970 e 1980. Aos 19 anos, numa viagem de InterRail, foi a Paris ver grafitti como deve ser. Há dias, a mãe encontrou a sua primeira pintura feita em guache quando tinha sete anos. Chegou a tirar um curso técnico de Artes Gráficas. MrKas trabalhou em várias áreas em vários países, só que o bichinho da arte nunca adormeceu. Na Bélgica, à saída das compras, com dois sacos de supermercado nas mãos, encontrou uns miúdos a pintar grafitti, ainda hesitou, meteu conversa, contaram-lhe que dali a alguns dias haveria um festival de arte urbana. Apareceu e voltou a pegar nas latas de spray. “Ganhei o bichinho e nunca mais parei. Deixei o meu trabalho para seguir o meu sonho, decidi arriscar.” Pouco depois, estava num festival em Malta com os melhores do Mundo. “A partir daí, acreditei e quis seguir o meu sonho.”

José Carvalho (OzeArv) acredita que uma cidade com cor é um espaço mais alegre e oxigenado
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Olhando à volta, para a sua cidade, sente que o Porto está a desperdiçar uma oportunidade de se tornar grande na arte urbana. “Há pessoas a viajar pelo Mundo a fotografar murais.”

OzeArv quer ser pintor o resto da vida, mesmo que seja debaixo da ponte. Mas há coisas que não estão bem. “Quando menos de 1% do Orçamento do Estado é para a cultura, isso diz muito”, destaca. A arte urbana traz visibilidade, turismo, crescimento económico, mas o reconhecimento dos artistas é tímido, bastante ténue. “Há um grande retorno e um fraco investimento”, considera.

Regg estudou Design, Artes Plásticas, Pintura e Desenho desde criança, estudava a desenhar letras. Não andou pelo grafitti, percebe e não percebe esse universo, explica a sua perspetiva. “Sou um pintor que decidiu ir para a rua quando vi o documentário do Banksy.” Em 2010, estava na rua, nas traseiras de casa, a criar uma galeria de espelhos com personagens da Disney. Os anos passaram. “Gentrificou-se muito a street art. Há projetos felizes e há projetos mauzinhos que são uma autêntica salada de frutas.” A grande questão, para si, é esta: qual é o valor da arte urbana?