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As relíquias portuguesas de primeira classe

O coração do "rei-soldado", fechado a cinco chaves, está sob guarda da cidade do Porto e da Irmandade da Lapa

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A propósito do bicentenário da independência, o Brasil requisitou o coração de D. Pedro IV. Doado pelo próprio à cidade do Porto, o exemplar é o órgão preservado mais conhecido do nosso país, mas a vontade de manter prova física de quem já morreu não se fica por aí. Há corpos para estudo, órgãos de anónimos e ossos de santos. São as relíquias portuguesas de primeira classe.

No interior da Igreja da Lapa, no Porto, atrás de umas grades, numa caixa de madeira fechada, acautelado num estojo de veludo, dentro de um frasco de vidro rodeado por um escrínio de prata e submerso em formol, lá está ele. Para chegar ao coração de D. Pedro são necessárias cinco chaves guardadas por duas entidades distintas – a Câmara do Porto e a Irmandade da Lapa. É a relíquia mais bem guardada em Portugal e, também, o órgão mais famoso preservado em meio líquido.

O proprietário do coração dispensa apresentações pormenorizadas. Basta referi-lo pelo nome próprio e os primeiros pensamentos serão certeiros: falamos de D. Pedro IV de Portugal. Ou D. Pedro I do Brasil. O coração do “rei soldado”, como é conhecido, ficou a cargo da cidade do Porto ainda por decisão do próprio. Estávamos em 1834 e, no Palácio de Queluz, em Lisboa, D. Pedro começava a sentir-se demasiado doente para acreditar que sobreviveria mais uma noite. No leito da morte, deixou três vontades principais: que o seu coração fosse oferecido à “heroica cidade do Porto”, o corpo à cidade de Lisboa e ao Brasil deixou, afirma em testamento, o mais valioso dos tesouros – o próprio filho. Faleceu nessa mesma noite, a 24 de setembro. Até hoje, 188 anos volvidos, o coração é propriedade da cidade portuense e encontra-se na Capela-Mor da Igreja da Nossa Senhora da Lapa. A localização exata foi decisão da filha do falecido, D. Maria II, que à época respeitou a forte ligação que o pai tinha com aquela entidade religiosa.

Tendo D. Pedro morrido em Lisboa, o coração foi transportado para a cidade invicta cinco meses mais tarde. Chega ao Porto a 7 de fevereiro de 1835. A euforia é grande. Cerca de 12 mil pessoas, desde altas figuras da cidade aos cidadãos anónimos, juntam-se na Ribeira para assistir à chegada do órgão sinónimo de liberdade.

E é por vontade de ter presente o símbolo do liberalismo que o Brasil requereu oficialmente no final de maio deste ano que a relíquia fosse emprestada por Portugal para as comemorações do bicentenário da independência. O pedido de empréstimo realça, por estes dias, a importância para lá do próprio conteúdo que as relíquias ganham. É mais do que apenas um coração. Estão envolvidas questões históricas, sociais, diplomáticas e, claro, científicas. Mas antes de perceber a aura de devoção destes exemplares, é importante saber o que é, afinal, uma relíquia.

São cada vez mais raras as vezes em que o coração de D. Pedro IV é retirado da parede onde permanece guardado

Apesar de ser popularmente associado a algo valioso por ser raro ou antigo, “relíquia” tem origem na expressão do latim que significa “aquilo que sobra”. É maioritariamente utilizado em contexto religioso, ou seja, para se referir a algo que pertenceu a um santo. Mas nem só de relíquias sagradas se faz a história. Também as profanas têm algo para contar, como é o caso do coração que, sendo autorizado, viajará mais de 7500 quilómetros.

A vontade de manter vivo

“A relíquia é a tentativa de perdurar fisicamente algo que já não está presente.” Mais do que apenas restos, as relíquias foram sendo guardadas e prestadas a devoção um pouco por todo o Mundo devido, principalmente, às religiões, explica António Camões Gouveia. Mas o professor de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (Nova FCSH) realça que a vontade de lembrar (ou estudar, como veremos mais adiante) alguém que já não está presente extravasava o sagrado. Dentro das relíquias profanas existem as identitárias e as políticas, como é o caso do coração de D. Pedro. “No caso da cristandade, como os poderes eclesiásticos eram próximos dos poderes civis, essas relíquias identitárias tinham uma classificação religiosa.” As importantes tinham de ser “santas”. E foi assim que o órgão do “rei soldado” acabou guardado por uma entidade religiosa, apesar de não ser um santo.

O significado da palavra é mais lato ainda. As relíquias, realça António Camões Gouveia, podem até ser de cariz afetivo. “É, por exemplo, a peça de roupa que pertenceu ao avô ou à avó.” O que interessa para a classificação é ter sido alguém amado e da qual outras pessoas queiram lembrar. “Relíquias são memórias.”

Guardar uma memória de D. Pedro foi uma vontade expressa pelo próprio antes de morrer, mas muitas outras foram guardadas racionalmente, pela, já na altura reconhecida, dimensão social e histórica que uma peça do género transportava. Olhemos para um caso recente. A Irmã Lúcia, falecida em 2005, está ainda no processo de beatificação. Não é (ainda) santa, mas o historiador destaca que os seus pertences são já cuidadosamente guardados.

Atualmente, o catolicismo mantém a tradição das relíquias e da devoção às mesmas. Caso diferente é o do protestantismo. Na vaga da reforma protestante, que chegou até partes do território de França, mas não alcançou a Península Ibérica, no século XVI, as relíquias foram banidas. O mundo reformado, como clarifica Camões Gouveia, “não tem santos”. “Dá-se um poder mágico às relíquias” que a Igreja Protestante não podia permitir, por acreditar que se trataria de devoção a uma peça profana. Esta divisão religiosa faz com que, nos dias de hoje, seja notada uma diferença na quantidade de relíquias encontradas no norte e no sul da Europa. O primeiro praticamente sem vestígios de tais objetos e o segundo com uma extensa coleção deles – alguns até salvos da reforma protestante a norte e guardados noutros países que não os originários.

Como escolher guardar uma relíquia não é inocente, também a decisão sobre o que guardar não o é. O coração, salienta o professor da Nova FCSH, é sinónimo de afetos. Afeto esse, diz-se, que o rei nutria pela cidade. Mas há outros exemplos. No lado do sagrado, de Santo António, por exemplo, foi retirado para relíquia o aparelho fonador, como representativo dos sermões que este dava. Já nas relíquias profanas, a Rússia expõe o pénis de Grigori Rasputin, conselheiro czarista conhecido pelas suas aventuras sexuais.

Pelo contrário, em ambiente seco, são inúmeros os exemplares encontrados só em Portugal. Os fios de cabelo de São João Paulo II, no santuário de Santa Rita, o osso de Francisco e o cabelo de Jacinta, os pastorinhos, ou a mão de Santa Isabel, no Mosteiro de Santa Clara a Nova, entre tantos outros. Já Santo António, vê-se “dividido” um pouco por todo o país e Europa. Um dedo num local, um braço no outro. Há ainda um dente. As relíquias da Igreja Católica espalham-se e são motivo de devoção para muitos. Segundo Carlos Evaristo, as mais veneradas são as relíquias da Santa Cruz, ou seja, tudo o que esteve envolvido na crucificação de Jesus Cristo. Em Portugal, o especialista em relíquias e responsável pela Real Lipsanotheca (Fátima) – o maior acervo de relíquias fora do Vaticano – destaca a coleção na aldeia da Santa Cruz, no Alentejo, identificando as relíquias da coroa de espinhos como as mais procuradas para devoção.

Carlos Evaristo (na imagem, à direita) é especialista em relíquias e responsável pelo maior acervo do género fora do Vaticano

Para a Igreja Católica, as relíquias dividem-se em três categorias: partes de corpo do santo, objetos que pertenceram ao santo e exemplares que tocaram o santo ou objetos a ele pertencentes. Não há hierarquização de importância, mas as relíquias de primeira classe, aqui tratadas, são das que mais fiéis, turistas ou simples curiosos chamam. Dentro desta primeira classificação, são várias as relíquias encontradas. Ainda assim, a abundância de ossos, cabelos ou unhas é facilmente explicado: são os elementos menos perecíveis e mais facilmente preservados.

É possível guardar para sempre?

A preservação de partes moles, como é o caso do coração de D. Pedro IV, surgiu pela primeira vez pela mão do médico inglês William Croone, no século XVII. Eram dois embriões de cão mergulhados numa solução alcoólica. Em Portugal, o primeiro exemplar preservado em meio líquido ainda hoje existe. O documento original chama-lhe “O monstro bicorpóreo”. Duas gémeas siamesas, juntas pelo peito, foram consideradas uma aberração digna de estudo. Estávamos em 1788 e o líquido original era espírito de vinho, ou seja, o álcool retirado da bebida. Quem apresenta ambos os casos é Luís Ceríaco, curador do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto (MHNC-UP) e biólogo que dedica o estudo às preservações em meio líquido.

A ciência é uma das razões, para lá da religião, pela qual se acumulam mais relíquias. Quer seja para animais serem expostos em museus de história natural, para anomalias em partes do corpo serem dadas a conhecer ao público ou simplesmente para estudantes de Medicina testarem os conhecimentos, as universidades foram-se enchendo de corpos. No MHNC-UP encontram-se pelo menos duas relíquias semelhantes ao coração de D. Pedro IV, datadas da mesma época. Ceríaco conta que foram dois antigos professores da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto que doaram o coração à instituição. Um deles, até, “com grande relevância científica, já que tinha uma anomalia” que podia ser, assim, estudada. Mais a sul, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, é possível ver a cabeça de Diogo Alves, o último condenado à morte em Portugal e conhecido como “o assassino do Aqueduto das Águas Livres”. A parte do corpo foi guardada após a morte, no final do século XIX, para estudar a “mente” de um psicopata. Este exemplar, nota Luís Ceríaco, ao contrário de outros de cariz científico e do próprio coração de D. Pedro, gera alguma controvérsia, já que não é certo que esta seja realmente a sua cabeça.

Por essa mesma altura, o especialista relata que, para a preservação, era utilizado álcool diluído com água e sulfatos de alumínio, nitratos de potássio, mercúrio, ácido sulfúrico ou vinagre com arsénico. “Ainda não sabemos ao certo como foi feita a primeira preservação do coração de D. Pedro, mas é provável que tenha sido com uma solução alcoólica com um destes elementos”, sustenta Ceríaco, referindo que são químicos ainda hoje utilizados como antisséticos. Estão presentes nos desodorizantes, por exemplo.

O objetivo é guardar para sempre e, por isso, a ciência procura evoluir na área da preservação. No caso da técnica do meio líquido, utilizada nos tecidos moles, o melhor elemento é o formol. Descoberto ainda no século XIX, foi só na viragem para o século XX que a sua utilização foi massificada. Deverá ter sido por essa altura, também, que a solução na qual estava mergulhado o coração de D. Pedro IV foi alterada para o novo composto descoberto, que se mantém até hoje.

“Para já só temos 200 anos de preservação em meio líquido, não sabemos como será daqui para a frente”, questiona-se o biólogo, que ressalva que, ainda hoje, “não há perfeita consciência de como estes líquidos impactam a preservação”. Uma área científica em crescimento que procurará guardar estes espécimes durante o “para sempre possível”.

A primeira preservação em meio líquido ocorreu em Portugal no século XVIII, com o corpo de gémeas siamesas

A preocupação com a integridade e preservação do coração foi o que fez com que o pedido do Brasil não fosse aceite de imediato. O aval da transladação do coração de D. Pedro IV do Porto para o Brasil está dependente de uma perícia, imposta pela Irmandade da Lapa como a única condição prévia para a deslocação, e requerida pela Câmara do Porto. Luís Ceríaco não vê riscos no transporte, dado que este exemplar cumpre os princípios fundamentais: recipiente devidamente selado, condições climáticas estáveis e não exposição à luz direta. O especialista em relíquias Carlos Evaristo corrobora, sublinhando que, pela sua experiência como conservador de relíquias e tendo em conta as boas condições de preservação, não haverá qualquer problema com o coração durante as viagens.

O milagre da multiplicação

No mundo das relíquias sagradas, são vários os historiadores e cientistas que levantam dúvidas quanto à veracidade de grande parte das relíquias católicas, já que, atualmente, estes exemplares se vão multiplicando. António Camões Gouveia considera que, para a Igreja Católica, “o problema do relicário não é a autenticidade das relíquias”. “A relíquia não interessa pelo que lá está, mas pela devoção que lhe é prestada.” Trata-se de um “sistema muito arquitetado” que tem como objetivo “não perder a presença do divino”. Assim, são diversos os casos em que as relíquias consideradas de terceira categoria – objetos que podem apenas ter tocado em outras relíquias pertencentes ao santo – vão aparecendo aqui e acolá, com bases históricas muitas vezes dúbias.

A reautenticação de relíquias é um dos trabalhos mais relevantes de Carlos Evaristo e que o tem levado a ser conhecido um pouco por todo o Mundo. “O que é importante é estudar as relíquias e dar-lhes o seu verdadeiro lugar.” O historiador pretende “desmistificar lendas e, com sensatez e sem fanatismo, reautenticar as relíquias”.

As questões de autenticidade das relíquias não são colocadas apenas por cientistas ou historiadores. Entre os críticos desta forma de devoção incentivada pela Igreja Católica estava, por exemplo, Eça de Queirós. O título da obra não deixa mentir sobre o assunto: “A Relíquia”. No romance realista, o autor português utiliza a ironia para afirmar que as relíquias são apenas construções ficcionais da religião.

Mas Eça de Queirós não é caso único no meio de artistas que criticavam avidamente a devoção de relíquias. Guilherme, uma das personagens principais do romance “O nome da rosa”, de Umberto Eco, “deita água fria no espanto” do amigo que admira uma relíquia. “Fragmentos de cruz vi muitos outros, noutras igrejas. Se fossem todos autênticos, Nosso Senhor não teria sido supliciado sobre duas hastes cruzadas, mas sobre uma floresta inteira.” No entanto, sem qualquer margem para dúvidas, coração de D. Pedro IV há só um. E, enquanto o formol assim o permitir, continuará guardado a cinco chaves, na cidade onde também se declarou liberdade pela voz deste rei.

Legendas:
O coração do “rei soldado”, fechado a cinco chaves, está sob guarda da cidade do Porto e da Irmandade da Lapa há 188 anos

São cada vez mais raras as vezes em que o coração de D. Pedro IV é retirado da parede onde permanece guardado. No mínimo, são necessárias sete pessoas para a operação

A primeira preservação em meio líquido ocorreu em Portugal no século XVIII, com o corpo de gémeas siamesas. Cerca de cem anos mais tarde, a cabeça de um assassino é guardada para estudar a mente de um psicopata

Carlos Evaristo (na imagem, à direita) é especialista em relíquias e responsável pelo maior acervo do género fora do Vaticano. Em baixo, relicário com osso de Santo António