A nova vida da filigrana

Os tempos mudaram, as coleções modernizaram-se e vão muito para além dos grandes corações de Viana e das caravelas. Designers e filigraneiros lançaram-se em peças contemporâneas, mais leves, de joalharia e não só. A antiga arte já estendeu os tentáculos ao têxtil, calçado e mobiliário. Agora, resta esperar pelos próximos episódios.

Diz muitas vezes, e não é mentira, que “já fazia filigrana na barriga da mãe”. A mãe de Conceição Neves era enchedeira, que é como quem diz, preenchia os esqueletos das peças com fios de ouro da espessura de um fio de cabelo torcidos sobre si em rendilhados perfeitos. E a história estava escrita nos genes. A mãe nunca lhe ensinou a técnica, não queria que a filha se fizesse filigraneira, mas Conceição, nascida e criada num dos berços da filigrana, Gondomar, aprendeu só de ver a mãe fazer. E do fascínio de uma miúda que não largava a buchela e a tesoura, não parecia haver outro destino. Aos 11 anos, já ganhava dinheiro e mais tarde acabaria por montar a própria empresa.

Conceição Neves investe em novos desenhos e até já criou uma coleção para aplicações em sapatos Louboutin
(Foto: Leonel de Castro/ Global Imagens)

Foi aí que quis reinventar uma arte de tanta tradição. “Via a minha mãe fazer corações e borboletas, laços e barquinhos rabelos. E não saíamos daquilo. Pouca gente usa essas peças no dia a dia e a filigrana não estava a dar muito. Pensei que tinha que ser renovada.” Novos desenhos, cristais Swarovski à mistura, “coisa que não se via antigamente, quem misturava pedras com filigrana era louco”. Foi brincando com as formas, “circunferências, triângulos”. Fez nascer coleções de anéis, pendentes, brincos, pulseiras, que “se usam no dia a dia, dos 8 aos 80”. Já teve pedidos da Gucci, que ainda não avançaram. E até fez protótipos de um relógio para a Chanel. Da joalharia ainda abriu os braços ao calçado. Criou uma coleção para um dos mais reconhecidos designers franceses: Christian Louboutin. “Dos sapatinhos da sola vermelha. Fiz peças de filigrana para aplicações em sandálias e botas.”

(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Tem 45 anos, está na sua oficina, Gondomar. É aí que desenha, cria, faz a produção, paredes-meias com um showroom que serve de montra aos turistas que percorrem a Rota da Filigrana. “Para verem que realmente trabalhamos a filigrana manualmente.” E já há pouca gente a fazê-lo. Conceição corre feiras, vende online através do Facebook, faz peças personalizadas. A pandemia foi golpe duro, mas nem assim se travam os altos voos da filigrana. “É uma questão de tempo até estar cada vez mais presente no têxtil, nos sapatos. A tradição, os nossos corações de Viana, não podemos deixar morrer. Mas a inovação é um passo fundamental.”

(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

E as figuras públicas que dão a cara pela tradicional arte da ourivesaria ajudam, e muito. Levam os novos ares da filigrana portuguesa para as bocas do Mundo. O exemplo mais recente é Cecilia Krull, conhecida por dar voz ao genérico da série da Netflix “La casa de papel”, que se tornou embaixadora da Filigrana de Gondomar. Mas é preciso entender a técnica ancestral para lhe acompanhar os passos da evolução. Em Portugal, o fabrico da filigrana foca-se sobretudo em dois núcleos: Gondomar e Póvoa de Lanhoso. Associa-se muito a Viana do Castelo porque é aí, nas Festas d’Agonia, que as jovens desfilam todo o ouro da família.

“A filigrana é uma técnica da ourivesaria, é a junção de dois fios muito finos de metal precioso que são, no fundo, misturados, torcidos. O que é muito português são os nossos desenhos. As caravelas, os corações, que não existem em mais lado nenhum”, explica Fátima Santos, secretária-geral da Associação de Ourivesaria e Relojoaria de Portugal (AORP). Desenvolveu-se como uma atividade muito local, quase cultural nestas duas regiões, mas foi caindo em desuso. Até recuperar fôlego nos últimos anos e redescobrir o esplendor. Designers de joalharia como Liliana Guerreiro ajudaram a partir os muros que se erguiam rígidos em torno da ideia da tradição. Vieram meter o bedelho, com respeito pela técnica, e arrojar. Abriram a porta a novos desenhos, novas aplicações e até incorporações noutros produtos – lá iremos. Como diz Fátima Santos, “isto é um garante de continuidade”.

Designers e filigraneiros de mãos dadas

Liliana Guerreiro nem precisa de pensar muito. Foi há 18 anos, num projeto que juntou designers a filigraneiros da Póvoa de Lanhoso, que encontrou os irmãos Joaquim e Guilherme Rodrigues. “Era um projeto para reavivar a filigrana em Portugal. Conheci aí uma oficina que já estava desativada, das mais antigas do país, onde estavam estes dois irmãos, que hoje já têm mais de 70 anos”, conta. Nunca mais os largou. De fazer experiências e testar novas formas até criar coleções contemporâneas com a filigrana, desenhadas por ela e produzidas pelos irmãos filigraneiros que lhe abriram as portas despidos de saudosismos conservadores (há muito que tinham deixado de vender as suas peças manuais à conta da industrialização do setor), foi um salto. Todas as semanas, Liliana, hoje com 47 anos, fazia cem quilómetros de estrada até Póvoa de Lanhoso. “Foi um projeto de vida.” Contas feitas, mais de 400 novos desenhos, que vende online com a sua marca “Liliana Guerreiro” – a fazer 20 anos agora – e no ateliê-loja que tem morada na Rua do Rosário, no Porto.

“Já vendi milhares de peças de filigrana. Pessoas que nunca usaram joias começaram a usar com esta minha coleção”, reconhece Liliana Guerreiro, designer de joalharia
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

As peças que vivem da simplicidade, da leveza, feitas à mão, ganharam fama, correram feiras do setor, venceram prémios. Já lá vão dezenas de coleções, incluindo filigrana com diamantes. Colares, pulseiras, brincos, botões de punho, tudo. “Já vendi milhares de peças de filigrana, vendi em 20 lojas. E tenho ótima reação dos clientes. Pessoas que nunca usaram joias começaram a usar com esta coleção de filigrana. E pago muito bem a estes senhores, porque este é um trabalho muito minucioso.” A designer viu os seus desenhos serem “copiados” por gigantes que os reproduzem “em grandes máquinas industriais”. “É impossível competir com o preço que praticam, as minhas peças são feitas à mão.” Mas não vai parar, isso é certo.

Liliana cria os desenhos e dois filigraneiros da Póvoa de Lanhoso produzem as peças
(Foto: Leonel de Castro/ Global Imagens)

São os riscos da modernização. “Quando um produto é muito desejado, tende a haver uma ânsia de massificação”, reconhece Fátima Santos, da AORP. Mas a certeza é uma: a filigrana soube reinventar-se, o que também “dignifica a tradição, porque acrescenta-lhe valor e atrai atenções”. O grande desafio é rejuvenescer a arte, as mãos de quem a faz. Hoje, haverá cerca de 30 empresas ligadas à filigrana, segundo a AORP. “E dentro destas, contam-se pelos dedos quem só produz filigrana manual.”

À boleia de coleções rejuvenescidas e da povoação de novos atores artísticos, a filigrana começou a estender os tentáculos a outras áreas. Não só ao calçado – como no caso da Louboutin -, também ao têxtil.

Do têxtil ao mobiliário

Um vestido, um desafio de longos anos de busca haveria de ver a luz do dia em 2021. A estilista Micaela Oliveira há muito que tinha esse sonho, há sete longos anos que andava à procura de um filigraneiro que embarcasse na loucura. “Queria fazer um vestido com filigrana e sabia exatamente como queria. Já tinha tentado vários artesãos, só que todos me diziam que era impossível.” Até conhecer Arlindo Moura, filigraneiro de Gondomar, que lhe disse ser “louca”, mas que acabaria por alinhar no devaneio. “Mostrei-lhe tudo o que tinha idealizado, todos os detalhes. Queria os socalcos vinhateiros, caravelas, calçada portuguesa, andorinhas, a palavra Saudade”, descreve Micaela. Daí até à Câmara de Gondomar, que muito tem feito pela promoção da filigrana, se aperceber da dimensão do projeto e lhes pedir para terem o vestido pronto a tempo de viajar para a Expo Dubai foi um instante.

Micaela Oliveira, estilista, e Arlindo Moura, filigraneiro
(Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

Aos 35 anos, Arlindo – sexta geração da família a seguir a arte – admite: foi a experiência mais brutal da carreira. O miúdo que passava horas e horas a ver o avô trabalhar na antiga oficina que hoje está a recuperar não imaginava isto. Tem a minúcia da filigrana entranhada no sangue e detesta fazer peças que já fez. Está sempre a inventar desenhos, a inovar. Tem a marca “Arlindo Moura Jewellery”. De arte mal paga, a filigrana feita à mão virou “excentricidade” e a procura por peças “realmente diferentes” disparou. Como não consegue concorrer com a industrialização, faz moldes novos, à medida, personalizados, como o cliente quer, peças únicas, exclusivas. “E há muita gente a querer. Se o cliente quer um anel, sento-me com ele e desenhamos os dois.” É na costumização que agora faz vida – muito mais do que em coleções próprias, já não lhe sobra tempo.

Micaela Oliveira, estilista, e Arlindo Moura, filigraneiro, trabalharam juntos no vestido com corpete em filigrana
(Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

Por ser tão moldável é que acabou a meter-se no desafio do vestido de Micaela Oliveira. Já tinha trabalhado com outros designers, colabora com “uma marca de sapatos alemã excêntrica”. Até já fez um isqueiro em filigrana personalizado para o rapper americano Wiz Khalifa e joias para outros grandes nomes internacionais. Mas um vestido, 115 peças de filigrana, 2040 horas de trabalho, nunca lhe tinha acontecido. “Aquilo era insano, uma ideia completamente maluca, surreal, mas era possível. Passei noites em claro até lhe dizer que sim.” Toda a sua equipa – cerca de dez pessoas – trabalhou no projeto, “de manhã à noite, sem feriados, sem fins de semana, foi muito intenso”. E Arlindo juntou os melhores dos melhores. “Sabia qual era a melhor pessoa para fazer cada forma. Chamei o mestre António Cardoso, que foi quem fez o coração da Sharon Stone, para fazer o coração para o vestido. Só ele o conseguiria fazer na qualidade que eu queria. Eu sou maluco, mas tive uma equipa de grandes comigo.”

O vestido com filigrana que esteve exposto na Expo Dubai fez tanto furor que os pedidos multiplicaram-se
(Foto: DR)

A grande dificuldade de Micaela Oliveira era que a filigrana, como é um material mais duro, se moldasse ao corpo. Por isso, ela e Arlindo criaram um puzzle de várias peças de ouro que se unem, bordadas no corpete e na saia, para ser mais “maleável”. “Todos tínhamos muitas dúvidas se seria possível, mas houve um empenho de tanta gente. Isto dá muito, muito trabalho. E agregar a inovação a esta arte tão bonita é lindo”, sublinha a designer. E é um caminho com pernas para andar. Não quer parar por aqui. “É possível fazer pequenos apontamentos, como uma alça em filigrana num vestido assimétrico. Há inúmeras formas de a usar coordenada com a moda. E é uma forma de lhe dar valor.” As ideias já borbulham. Aliás, depois da Expo Dubai, Micaela foi ao Bahrein e os pedidos multiplicaram-se. “Tenho muita vontade de criar corpetes até para o dia a dia. Demora tempo. É caro. Mas há mercado.”

O próprio Arlindo diz, sem desvendar muito, que já há um novo vestido na calha. A fusão da filigrana ao têxtil veio para ficar. E estende-se para lá disso. “Há espaço para várias coisas no setor do luxo”, realça o filigraneiro. A verdade é que já está a entrar em peças de decoração, em mobiliário, através de puxadores e outros pormenores. A marca portuguesa de mobiliário de luxo Boca do Lobo é o exemplo perfeito. No sonho de interpretar técnicas bem portuguesas em peças de design de produto exclusivas entrou a filigrana. Encontraram os artesãos perfeitos e começaram num piano de cauda, que lançaram em abril de 2020.

A técnica da filigrana está a invadir áreas para lá da joalharia, incluindo a decoração, como nesta moldura de espelho da Boca do Lobo

Desde então, já criaram espelhos e candeeiros com filigrana. Segundo Inês Rodrigues, relações públicas da Boca do Lobo, a ideia é chegar a “um público mais excêntrico, que procura uma peça de arte em forma de design de produto, que procura exclusividade e peças com unidades bastante limitadas”. E sobretudo que valorize peças produzidas à mão e artes raras. “Reinventar uma arte ancestral e representá-la em peças de mobiliário com design contemporâneo e único é uma aposta para manter.”